ACSTJ de 13-07-2009
Infracção de regras de construção Desmoronamento de construção Pedido de indemnização civil Indemnização Liquidação em execução de sentença Crimes de perigo Crimes de dano Agravação pelo resultado Morte Dolo directo Dolo necessário Medida concr
I -O facto de o art. 564.º, n.º 2, do CC prever que, na fixação da indemnização, o tribunal pode atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis, e que se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior, não implica, necessariamente, que a liquidação do montante indemnizatório, em execução de sentença, fique confinada aos danos futuros. II - O tribunal penal pode decidir, com trânsito em julgado, que é devida indemnização e, oficiosamente, pode decidir que a liquidação se fará em execução de sentença (art. 82.º, n.º 1, do CPP); a remessa para tribunal cível fica a dever-se à falta de elementos bastantes para o tribunal penal se pronunciar, tudo para se evitar que a recolha dos necessários elementos provoque um excessivo retardamento da acção penal. III - A dogmática penal acolheu um princípio de ofensividade e não de ofensa dos bens jurídicos, porque a tutela destes bens reclama, não só a punição de quem os viole, como de quem, pelo seu comportamento, represente apenas uma potencial lesão desses bens jurídicos. Tal antecipação de tutela aflora, por exemplo, na punição da tentativa, sendo patente na criação dos crimes de perigo. IV - Quanto ao “perigo”, atenta a formulação da jurisprudência alemã, com a maior aceitação entre nós, deveremos atender a “uma situação não habitual e irregular em que, segundo uma apreciação especializada, e de acordo com as circunstâncias concretas do caso, surge como provável a produção de um dano e está próxima a possibilidade do mesmo” (cit. in Jescheck, “Tratado de Derecho Penal, Parte General”, pág. 282). V - Enquanto que nos crimes de dano ou de lesão a consumação típica da agressão representa uma perda directa de valor, nos crimes de perigo o crime consuma-se havendo apenas um risco de lesão de interesses. Depois, enquanto que certas condutas, segundo a experiência comum, criam um perigo que lhes é próximo, porque é uma sua resultante normal, outras existem em que a acção básica não gera, sem mais, um potencial dano ulterior. Ali, o perigo não precisa de ser elemento do tipo porque se presume juris et de jure, é só o motivo da incriminação, e o crime é de perigo abstracto. Aqui, será preciso demonstrar, em cada caso, que alguém ou algo correu um efectivo perigo. O resultado da acção é o perigo para o bem jurídico, e o perigo torna-se elemento do tipo, que é dum crime de perigo concreto. Em relação a esta última espécie de infracções, o elemento subjectivo tem que ser preenchido, a título de dolo ou de negligência, tanto em relação à acção básica como em relação ao perigo concreto que ela gerou. VI - Na previsão do art. 272.º, n.º 1, al. f), do CP a acção básica cifra-se em “Provocar desmoronamento ou desabamento de construção”. Quanto ao perigo concreto resultará de, deste modo, se criar “perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado”. O n.º 3 do preceito prevê uma acção básica negligente e o n.º 2 um perigo criado por negligência. VII - Quanto ao art. 277.º, n.º 1, al. a), do CP, está aí em causa uma acção que se cifra em “(…) No âmbito da sua actividade profissional [o agente] infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação (…)”. O perigo continua a ser “para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado”. Do mesmo modo, o n.º 3 do preceito prevê uma acção básica negligente e o n.º 2 um perigo criado por negligência. VIII - Em qualquer dos casos, de acordo com o art. 285.º do CP, se do crime “(…) resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”. IX - Os factos provados que mais interessam a este ponto, são: -o arguido AP decidiu retirar totalmente a banqueta de terra que se encontrava junto ao edifício que confinava de norte com o terreno escavado, o que mandou fazer ao arguido HC no dia 02-12-2003; -a retirada da banqueta de terra foi então efectuada pelo arguido HC, no dia 02-12-2003, em obediência àquela ordem do arguido AP, sem que as sapatas e os pilares do edifício a construir estivessem armados e cheios, existindo apenas betão na base dos pilares, deixando o terreno totalmente escavado até à face deste edifício, e sem que fosse colocado outro qualquer mecanismo de escoramento ou suporte das terras que o suportavam e que ficaram sem qualquer escoramento em toda a sua extensão (de cerca de 17 metros); -por volta das 16h55 do dia 02-12-2003, aquele prédio desabou e desmoronou-se, tendo essa derrocada provocado a queda da empena sul, a queda parcial dos tectos dos pisos térreo e superior, o arrancamento de grande parte dos tirantes que ligavam as paredes exteriores, o que se traduziu no desmoronar de toda a parte sul do edifício, o qual teve que ser demolido na parte restante, pois ficou em risco de ruína completa e irrecuperável; -naquela parte do edifício desmoronado, nesse momento, encontravam-se PP e MA, os quais foram arrastados pelo desabamento do prédio, tendo ficado soterrados nos escombros; -encontravam-se ainda no 1.º andar daquela parte do edifício EA e uma sua neta de 3 anos, que o abandonaram, levando a EA a neta ao colo, quando aquela EA começou a ouvir barulhos estranhos na casa e se apercebeu do surgimento de rachas nas paredes, tendo a parte do edifício onde se encontrava, com a sua neta, ruído assim que chegaram ao fim das escadas que dão acesso à cobertura do edifício, em zona que não ruiu e onde aquela EA e a neta se refugiaram; -a MA sofreu lesões vértebro-medulares de extrema gravidade e o PP lesões ósseas por compressão sobre o corpo e lesões obstrutivas respiratórias por terra, que lhe provocou asfixia, que lhes determinaram, como consequência directa e necessária, a morte; -o arguido AP era o responsável técnico da obra quer na demolição quer na construção civil e betão armado; -ao técnico responsável pela obra cabe, além de outras funções, dirigir e fiscalizar os trabalhos em obra e identificar os erros de execução e corrigi-los; -o arguido AP, ao dar a ordem indicada, voluntária e conscientemente, sabia que assim seria retirada a banqueta nas condições aí descritas, o que quis alcançar, sabendo igualmente que assim infringia as regras técnicas de construção referidas nos n.ºs 17 e 18 dos factos provados, o que igualmente quis; -o arguido AP sabia que existia um estabelecimento comercial no rés do chão do edifício contíguo (a norte), na parte que confina com a zona escavada, onde se encontravam pessoas, e bem assim que no 1.º andar desse edifício viviam pessoas, que se poderiam encontrar em casa; -sabia ainda que, ao fazer retirar a banqueta e por força do desconfinamento lateral, passava a existir uma possibilidade elevada de o edifício contíguo ruir como consequência daquela acção, possibilidade aquela que aceitou; -confiou, contudo, em que, pese embora esse desconfinamento lateral e a possibilidade da queda do edifício, tal queda não chegaria a ocorrer nem, desse modo, se causariam danos no edifício nem se atingiriam as pessoas que se encontrariam no edifício; -sabia que o desrespeito de regras técnicas associadas à construção e a criação de perigo para coisas ou pessoas é proibida pela lei penal, sabendo igualmente que a lei penal proíbe a destruição de coisas ou produção da morte de pessoas de forma negligente tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento. X - Em relação ao preenchimento dos elementos típicos do art. 277.º, n.º 1, al. a), do CP, não oferece dúvidas de que o arguido AP violou uma regra técnica e regulamentar que devia ter sido seguida, na construção do prédio. A violação dessa regra cifrou-se num comportamento comissivo por acção, consistente na ordem para retirada da banqueta, cuja função era impedir o desmoronamento do prédio contíguo e que de facto teve lugar. Com tal comportamento criou-se um perigo efectivo para um círculo específico (“concreto”) de pessoas e bens, perigo que se transmutaria em lesão, para as vítimas que sucumbiram na derrocada ou ficaram patrimonialmente lesadas. Esse perigo foi real também para aquelas a quem isso não aconteceu. Assim, paradigmaticamente, em relação às duas pessoas que tiveram de fugir. XI - Houve dolo directo em relação à acção básica e dolo necessário em relação à criação do perigo. O arguido aceitou a possibilidade do ruir do edifício, portanto, da criação de uma situação de perigo, para todo um leque de pessoas e bens. Mais, o arguido teve que configurar, que o perigo surgiria necessariamente, como decorrência do seu comportamento. XII - Mas o facto de o arguido aceitar pôr necessariamente em perigo pessoas ou bens, não implica que lhe fosse indiferente e se conformasse com a perda de vidas, ou os danos que poderiam sobrevir, caso em que seríamos até remetidos para previsões típicas de homicídio, ou dano, sob a forma de dolo eventual. Daí ser possível concluir que o agente confiou em que, não se atingiriam pessoas ou bens, como consequência de um desabamento, desabamento esse apenas admitido como possível. E assim, o ter havido vítimas que perderam a vida, ficaram sem bens, ou de qualquer maneira prejudicadas, é relegado para uma circunstância qualificativa agravativa, prevista no art. 285.º do CP, ou geral, sem que esse facto constitua elemento necessário ao preenchimento do tipo fundamental. XIII - Em relação ao preenchimento do crime do art. 272.º, n.º 3, do CP, importa ter em conta que, de facto, o arguido provocou um desabamento de uma construção. Ora, a configuração de um dolo eventual no tocante ao desabamento, aceitar o desabamento (subsequente à violação de regras de construção), não se confunde com aceitar ou conformar-se com pôr em perigo pessoas e bens. Simplesmente porque, este pôr em perigo, pode ter lugar antes do desabamento. Daí que, para integração do elemento típico da al. f) do n.º 1 do art. 272.º, só com muita dificuldade se poderia ver preenchido o elemento “dolo” sob qualquer das suas modalidades, em relação à acção básica, dado que os factos provados retratam um dolo em relação ao perigo, e não ao desabamento, o qual implicaria já o resultado danoso. XIV - Não oferece reparo a qualificação jurídica do comportamento do arguido AP operada pelas instâncias [a Relação confirmou o acórdão proferido na 1.ª instância, que condenou o arguido pela prática de um crime de infracção de regras de construção, p. e p. pelo art. 277.º, n.º 1, al. a), agravado nos termos do art. 285.º, ambos do CP] e tem-se por justa a pena de 4 anos de prisão aplicada. XV - No que respeita à possibilidade de suspensão da execução da pena aplicada, cumpre considerar que no caso em apreciação, não se colocam preocupações de monta ao nível da reinserção social do arguido; nada se pode apontar quanto ao seu comportamento anterior ao crime, ou posterior ao mesmo, na medida em que continua com o registo criminal limpo, mais de 5 anos volvidos sobre os factos destes autos (03-12-2003); assume relevo o tempo decorrido desde que o recorrente praticou os factos. No entanto, mostra-se importante fazer sentir ao agora condenado os efeitos da condenação; o seu comportamento foi altamente censurável, e o recorrente não pode deixar de o interiorizar. Tanto mais que, em termos de prevenção geral, a reacção penal aos factos em apreço poderá mostrar-se suficiente, optando-se pela suspensão da pena, mas desde que condicionada ao pagamento de indemnizações devidas. XVI - Mostra-se adequado suspender a pena de 4 anos de prisão aplicada ao arguido AP, por igual período de tempo, o qual ficará obrigatoriamente sujeito a regime de prova, de acordo com os arts. 53.º e 54.º do CP. Além disso, a suspensão da execução da pena deverá ficar subordinada ao cumprimento dos deveres de: -fazer prova nos autos, dentro de 1 mês contado do trânsito em julgado desta decisão, de já ter pago o montante indemnizatório global de € 232 000, a que se obrigou, nos termos da transacção homologada por decisão do Tribunal da Relação de 13-05-2008, devido a AN e EN; -fazer prova nos autos de ter pago, no prazo de 3 meses contados do trânsito em julgado da presente decisão, pelo menos o montante já liquidado da indemnização devida a MC; -fazer prova nos autos de ter pago a quantia de € 211 669,22, devida a JP e CP, a título de indemnização, e em que foi condenado, no prazo máximo de 6 meses contados do trânsito em julgado do presente acórdão.
Proc. n.º 3702/08 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
Soares Ramos (vencido «porquanto, reportando-me, em especial, aos pontos de facto n.ºs
31 a 34, configurando dolo eventual no conjunto da actuação do recorrente, confirmaria
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