ACSTJ de 02-09-2009
Concurso de infracções Cúmulo por arrastamento Cúmulo jurídico Omissão de pronúncia Nulidade Fundamentação Pluriocasionalidade Fórmulas tabelares
I- O caso de concurso por conhecimento superveniente tem lugar quando, posteriormente à condenação, se vem a verificar que o agente anteriormente àquela condenação praticou outro ou outros crimes. Nestes casos são aplicáveis as regras do disposto nos arts. 77.°, n.º 2, e 78.°, n.º 1, do CP, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas. II- Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. III - Sobre o conhecimento superveniente do concurso, dispunha o art. 78.°, n.º 1, do CP, na redacção anterior (de 1995) que 'Se, depois de uma condenação transitada em julgado, mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior'. IV - Com a 23.a alteração ao CP, introduzida com a Lei 59/2007, de 04-09, entrada em vigor em 15 seguinte, e vigente à data da decisão recorrida, o n.º 1 do art. 78.º, passou a ter a seguinte redacção: 'Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes'. V - A nova redacção do art. 78.º, n.º 1, do CP, com a supressão do trecho 'mas antes de a respectiva pena estar cumprida, prescrita ou extinta', diversamente do que ocorria dantes, veio prescrever que o conhecimento superveniente de novo crime que se integre no concurso não exclui, antes passa a abranger, as penas já cumpridas, prescritas ou extintas, procedendo-se ao desconto da pena já cumprida. Neste sentido pronunciava-se alguma jurisprudência, como por exemplo, os Acs. do STJ de 24-05-00, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 204, e de 30-05-01, CJSTJ 2001, tomo 2, pág. 211; em sentido oposto, podem ver-se, os Acs. de 08-07-98, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 248; de 24-02-00, Proc. n.º 1202/99-Y (as penas cumpridas, extintas e prescritas não podem ser consideradas para efeito de elaboração de cúmulo); de 09-02-05, CJSTJ 2005, tomo 1, pág.194; de 08-06-06, Proc. n.º 1558/06 -5.a; de 22-06-06, Proc. n.º 1570/06 -5.a (este com um voto de vencido), e de 1511-06, Proc. n.º1795/06 -3.a. VI - A primeira decisão transitada é, assim, o elemento aglutinador de todos os crimes que estejam em relação de concurso, englobando-os em cúmulo, demarcando as fronteiras do círculo de condenações objecto de unificação. VII - O momento temporal decisivo para a questão de saber se o crime agora conhecido foi ou não anterior à condenação é o momento em que esta foi proferida – e em que o tribunal teria ainda podido condenar numa pena conjunta – não o do seu trânsito em julgado. VIII - Se os crimes conhecidos forem vários, tendo uns ocorrido antes de proferida a condenação anterior e outros depois dela, o tribunal proferirá duas penas conjuntas, uma a corrigir a condenação anterior, outra relativa aos crimes praticados depois daquela condenação; a ideia de que o tribunal deveria ainda aqui proferir uma só pena conjunta contraria expressamente a lei e não se adequaria ao sistema legal de distinção entre punição do concurso de crimes e da reincidência. IX - Como o STJ tem vindo a entender, não são de admitir os cúmulos por arrastamento, citando-se, entre muitos outros, o Ac. de 20-06-96, publicado no BMJ, 458, 119, onde se decidiu que as penas dos crimes cometidos depois de uma condenação transitada em julgado não podem cumular-se com as penas dos crimes cometidos anteriormente a essa condenação, sendo pressuposto da aplicação do regime de punição do concurso de crimes, ou da formação da pena do concurso, é que os crimes tenham sido praticados antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles. X - A posterioridade do conhecimento «do concurso», que é a circunstância que introduz as dúvidas, não pode ter a virtualidade de modificar a natureza dos pressupostos da pena única, que são de ordem substancial. O conhecimento posterior (art. 78.°, n.º 1, do CP) apenas define o momento de apreciação, processual e contingente. XI - A superveniência do conhecimento não pode, no âmbito material, produzir uma decisão que não pudesse ter sido proferida no momento da primeira apreciação da responsabilidade penal do agente (cf. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 293294). XII - Há, assim, para a determinação da pena única, como que uma ficção de contemporaneidade. A decisão proferida na sequência do conhecimento superveniente do concurso deve sê-lo nos mesmos termos e com os mesmos pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta, para a formação da pena única, os crimes anteriormente praticados; a decisão posterior projecta-se no passado, como se fosse tomada a esse tempo, relativamente a um crime que poderia ser trazido à colação no primeiro processo para a determinação da pena única, se o tribunal tivesse tido, nesse momento, conhecimento da prática desse crime. XIII - Constitui posição sedimentada e segura neste Supremo Tribunal a de que, na decisão que efectua o cúmulo de penas estamos perante uma especial necessidade de fundamentação, na decorrência do que dispõem os arts. 71.º n.º 3, do CP, e 97.º, n.º 5 e 375.°, n.º 1, do CPP, em aplicação do comando constitucional ínsito no art. 205.º, n.º 1, da CRP, onde se proclama que 'As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei'. XIV - Como estabelece o art. 71.°, n.º 3, do CP, na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, decorrendo, por seu turno, do art. 97.°, n.º 5, do CPP, que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão e do art. 375.°, n.º 1, do mesmo código, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. XV - Estabelece o art. 374.°, n.º 2, do CPP, que «Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal». XVI - A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes. XVII - O STJ tem vindo a considerar impor-se um dever especial de fundamentação na elaboração da pena conjunta, não se podendo ficar a decisão cumulatória pelo emprego de fórmulas genéricas, tabelares ou conclusivas, sem reporte a uma efectiva ponderação abrangente da situação global e relacionação das condutas apuradas com a personalidade do agente, seu autor, sob pena de inquinação da decisão com o vício de nulidade, nos termos dos arts. 374.°, n.º 2, e 379.°, n.º 1, als. a ) e c), do CPP. XVIII - Assim, na determinação da pena conjunta é essencial a indicação de dados imprescindíveis, cuja conformação deverá estar presente desde que se decide avançar para a realização do cúmulo, congregando os elementos indispensáveis constantes de certidões completas, onde se certifiquem, com rigor, os elementos essenciais à realização do cúmulo, procedendo-se à indicação dos processos onde teve lugar a condenação, à enumeração dos crimes cometidos, datas de comissão dos crimes, datas das decisões condenatórias, datas de trânsito em julgado dessas decisões, a indicação das penas cominadas, bem como dados relativos a eventuais causas extintivas de penas aplicadas e actualmente referências a penas já cumpridas, para além de outros que em cada caso concreto se mostrem necessários ou se colha como aconselhável a sua inclusão. XIX - Para além destes 'requisitos primários', impõe-se a inserção na fundamentação de facto de outros elementos, igualmente factuais, resultantes da análise da história de vida delitual presente no caso, que concita a particular atenção do julgador, determinando inclusive, a realização de uma audiência marcada para o efeito, com observância do contraditório, e que tem por objectivo a aplicação de uma pena final, de síntese, que corresponda ao sancionar de um conjunto de factos cometidos num determinado trecho de vida, interligados por um elo de contemporaneidade, de que o tribunal tem conhecimento apenas mais tarde (muito embora, por vezes sem grande esforço, se pudesse detectar a multiplicidade muito a tempo de ter lugar o julgamento conjunto), que poderiam/deveriam ter sido julgados em conjunto se se mostrassem reunidas as condições para tal. XX - Perante concurso de crimes e de penas há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, através duma visão ou imagem global do facto, encarado na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado e atender ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projecção nos crimes praticados, enfim, há que proceder a uma ponderação da personalidade do agente e correlação desta com os factos ajuizados, a uma análise da função e da interdependência entre os dois elementos do binómio, não sendo despicienda a consideração da natureza dos crimes, da verificação ou não da identidade dos bens jurídicos. XXI - O que interessa e releva considerar é a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido. XXII -A utilização de fórmulas tabelares, como o 'número', a 'natureza' e a 'gravidade', não são uma 'exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito', mas expressões vazias de conteúdo e que nada acrescentam de útil. XXIII -A decisão que se limita a utilizar essas fórmulas tabelares para proceder ao cúmulo jurídico de penas anteriores transitadas em julgado, viola o disposto no n.º 1, do art. 77.°, do CP e n.º 2 do art. 374.º do CPP e padece da nulidade prevista no art. 379.°, n.º 1, al. a), do CPP. XXIV -Ocorre omissão de pronúncia sobre a existência de decisão condenatória, cuja pena deve ser englobada no cúmulo, geradora de nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 379.°, n.º 1, al. c), do CPP, que importa sanar, quando no acórdão recorrido, para além das omissões apontadas relativamente aos requisitos primários, como as datas de trânsito, indicação do tempo de pena cumprida e da existência de uma outra decisão condenatória, seja omitida a necessária avaliação global, na medida em que há ausência de posicionamento ou decisão pelo tribunal em relação a questão em que a lei impõe que o juiz tome posição expressa, no caso deixando de se pronunciar sobre a especial fundamentação da pena conjunta.
Proc. n.º 181/03.1GAVNG.S1 -3.ª Secção
Raul Borges (relator)
Fernando Fróis
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