Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) - Criminal
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ACSTJ de 10-09-2009
 Mandado de detenção europeu Princípio do reconhecimento mútuo Extradição Recusa facultativa da execução Omissão de pronúncia Nulidade insanável
I -O MDE previsto na Decisão-Quadro constitui a primeira concretização no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo, que o Conselho Europeu qualificou de «pedra angular» da cooperação judiciária.
II - O MDE deverá substituir, nas relações entre os Estados-Membros, todos os anteriores instrumentos em matéria de extradição.
III - As referências fundamentais do regime e que moldam os conteúdos material e operativo resumem-se a dois pressupostos base: o afastamento, como regra, do princípio da dupla incriminação, substituído por um elenco alargado em catálogo de infracções penais e a abolição da regra, típica da extradição, da não entrega ou extradição de nacionais.
IV - Moldadas na finalidade do instrumento específico de cooperação e nos pressupostos essenciais que lhe estão subjacentes (mútuo reconhecimento; substituição da extradição), as normas aplicáveis a cada situação têm de ser interpretadas no contexto dos referidos âmbito e finalidades e na conjugação ainda entre as exigências decorrentes do reconhecimento mútuo e os deveres assumidos e a permanência de alguns espaços de soberania estadual em matéria penal.
V - Tratando-se, no caso, de um modelo de substituição integral da extradição, simplificado e inteiramente jurisdicionalizado, tudo quanto fosse anteriormente regulado pelo regime da extradição, deve ser integrado no regime do MDE no que respeita ao respectivo âmbito objectivo e subjectivo de aplicação.
VI - A leitura das causas de recusa facultativa de execução exige-se, por isso, na convergência entre a defesa de alguns valores nacionais e a abertura ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões.
VII - As causas de recusa facultativa de execução, constantes das alíneas a) a h) do n.º 1 do art. 12°. da Lei 65/2003, de 23-08, têm todas, como se salientou, em diversas perspectivas, fundamentos ainda ligados, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.
VIII - Nesta perspectiva, as causas de recusa facultativa não podem (não devem) ser vistas isoladamente, mas, antes, consideradas e aplicadas tendo como critérios de decisão os feixes referenciais que constituem a teleologia da categoria no regime de execução do instrumento europeu de cooperação.
IX - Teleologia essencial relacionada com a possibilidade deixada aos estados de salvaguarda de alguns interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição.
X - A lei não define, no entanto, no que respeita a algumas das causas, os fundamentos e os critérios para o exercício da faculdade, que é faculdade do Estado português como Estado da execução, como resulta da expressão da lei -a execução «pode» ser recusada.
XI - Não são, porém, causas cuja aplicação releve da vontade ou do arbítrio. Poder recusar é, no contexto, faculdade vinculada se o tribunal considerar que se verificam as circunstâncias que fundamentam a recusa de execução; a faculdade não significa exercício discricionário, nem arbítrio, mas obrigação de decisão segundo critérios e vinculações normativos.
XII - As causas de recusa facultativa de execução constantes do art. 12.º, n.º 1, da Lei 65/2003, de 23-08, têm, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal: não incriminação fora do catálogo, competência material do Estado Português para procedimento pelos factos que estejam em causa, ou nacionalidade portuguesa ou residência em Portugal da pessoa procurada.
XIII - A al. g) do n.º 1, da referida disposição habilita as autoridades nacionais a recusarem a execução do mandado quando “a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa em residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”.
XIV - A disposição tem de ser interpretada teleologicamente e específica de um determinado modelo operativo de cooperação, deve ser sistematicamente compreendida nos limites do regime do MDE.
XV - A reserva de soberania que está implícita na norma e na faculdade compromissória que prevê e que a justifica, apenas se compreende pela ligação subjectiva e relacional entre a pessoa procurada e o Estado da execução.
XVI - A norma contém, verdadeiramente, um contraponto facultativo ou um mecanismo para protecção de nacionais, que no contexto pretende reequilibrar o desaparecimento total ou a desvinculação no regime do MDE do princípio tradicional da não entrega (e da não extradição) de nacionais -princípio, porém, já excepcionalmente atenuado com a revisão constitucional de 1997 e a alteração do art. 33.°, n.º 3, da Constituição, e posteriormente com a alteração de 2001, em que ficou ressalvada a aplicação de normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia.
XVII - A faculdade de recusa de execução, prevista na referida al. g) do n.º 1 do art. 12.° da Lei 65/2003, constitui, assim, uma espécie de “válvula de segurança”, que, aliás, constava já materialmente – aí não como faculdade, mas como exigência de garantia e como condição do regime de extradição do art. 32.°, n.º 3, da Lei 144/99, de 31-08, nos casos em que, em limitadas situações, se admite a extradição de nacionais: a extradição só terá lugar para procedimento “se o Estado requerente der a garantia da devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe venha a ser aplicada, após revisão e confirmação nos termos do direito português, salvo se essa pessoa se opuser à devolução por declaração expressa”.
XVIII - No fundo de reserva de soberania, a al. g) do n.º 1 do referido art. 12.°, concede ao Estado da execução a faculdade de recusar a execução no caso de mandado para cumprimento de uma pena, desde que, face à ligação da pessoa procurada, sendo seu nacional, este Estado se comprometa a executar a pena.
XIX - A decisão é, assim, deixada inteiramente ao critério do Estado da execução, que satisfará as suas vinculações europeias executando a pena aplicada a um seu nacional ou a pessoa que tenha residência nesse Estado, em lugar de dar execução ao mandado entregando a pessoa procurada ao Estado da emissão para execução da pena nesse Estado.
XX - A competência para decidir se está verificada uma causa de recusa de execução pertence ao tribunal, uma ver que o regime do MDE está inteiramente jurisdicionalizado, não estando prevista qualquer intervenção ou competência prévia, condicionante ou acessória de qualquer outra entidade.
XXI - Por isso, no caso da al. g) do n.º 1 do art. 12.° da Lei 65/2003, de 23-08, o tribunal é o órgão do Estado competente para determinar a execução da pena em Portugal como condição de recusa facultativa de execução; a competência no regime do mandado cabe aos órgãos que forem competentes segundo a lei interna, e a lei sobre a execução do mandado fixou a natureza inteiramente jurisdicional do respectivo regime, sem a concorrência de competências de outras entidades do Estado. XXII -A decisão de recusa da execução constitui faculdade do Estado da execução; o estabelecimento de critérios não releva da natureza dos compromissos, mas do espaço de livre decisão interna em função da reserva de soberania implicada na referida causa de recusa facultativa de execução. XXIII -Fixando a lei causa de recusa deixada à faculdade do Estado de execução, o plano da lei só se completará com o estabelecimento de critérios que permitam integrar a função da norma, com base em princípios que se não remetam a discricionariedade ou oportunidade simples sem suporte. Não estando fixados tais critérios, manifesta-se uma incompletude contrária a um plano que se traduz numa lacuna, que o juiz deve integrar segundo os critérios injuntivos para a integração de lacunas definidos no art. 10.º do CC, seja por recurso a casos análogos, seja por apelo a princípios operativos compreendidos na unidade do sistema. XXIV -Haverá que integrar a lacuna resultante da omissão legislativa, enunciando os fundamentos, motivos e critérios que, na perspectiva das valorações inerentes imponham ou justifiquem a execução ou, diversamente, a recusa de execução, seja por motivos de política criminal, de eficácia projectiva sobre o melhor exercício, de ponderação com outros valores, ou da realização de direitos ou de interesses relevantes que ao Estado da execução cumpra garantir. XXV -Não estando directamente fixados, tais critérios internos hão-de ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena. XXVI -Uma primeira projecção sistemática poderá encontrar-se no art. 40.º, n.º 1, do CP e na afirmação da reintegração do agente na sociedade como uma das finalidades das penas. Nesta perspectiva, pode haver maior eficácia das finalidades das penas se forem executadas no país da nacionalidade ou da residência; a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais. XXVII -De igual modo, o art. 18.°, n.º 2, da Lei 144/99, de 31-08, ao estabelecer critérios para a denegação facultativa da cooperação internacional, contém indicações com projecção geral de aplicação também aos casos, com dimensão subjectiva e objectiva aproximada, de recusa facultativa de execução do MDE: quando a execução da pena no Estado da emissão relativamente a um nacional do Estado de execução possa implicar consequências graves para a pessoa visada, em razão da idade, estado de saúde ou de outros motivos de carácter pessoal. XXVIII -Perante a questão que lhe foi deferida para decisão, a autoridade judicial competente – o Tribunal da Relação – deveria verificar se, perante a situação, as condições de vida da pessoa procurada e as finalidades da execução da pena, se justificaria a recusa de execução do mandado, por haver vantagens no cumprimento da pena em Portugal segundo a legislação interna, na sequência do pedido formulado pela pessoa procurada. XXIX - Não se tendo pronunciado sobre tais pressupostos, o tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre questão que lhe era deferida, ou seja a existência de causa de recusa facultativa de execução, a qual integra a nulidade do acórdão – art. 379.°, n.º 1, al. c), do CPP.
Proc. n.º 134/09.6YREVR -3.ª Secção Henriques Gaspar (relator) Armindo Monteiro