ACSTJ de 07-05-2009
Questão de facto Questão de direito Descaracterização de acidente de trabalho Questão nova Culpa do sinistrado Infracção estradal Negligência grosseira
I – A norma do n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil (CPC), segundo a qual devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito, tem subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito. II – Para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei. III – No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos). IV – No mesmo âmbito, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio. V – Para se saber se um embate de veículos foi ou não violento, basta conjugar a percepção colhida pelos sentidos de quem a ele assiste com as regras gerais da experiência, sem necessidade de elaborar no domínio das normas de direito, daí que o vocábulo 'violentamente', utilizado para qualificar aquele fenómeno, representando um juízo não decorrente de qualquer operação de subsunção ou valoração jurídica e sem virtualidade para, por si só, fornecer a solução da controvérsia relativa à descaracterização de um acidente de trabalho, contém-se no domínio dos factos, não devendo, por conseguinte, aquele vocábulo ter-se por não escrito. VI – A afirmação de que 'O sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego' reporta-se a um estado ou situação do foro interno, psíquico, do sinistrado, realidade cujo conhecimento se pode alcançar mediante a apreensão, pelos sentidos, e interpretação à luz das regras de experiência, de sinais revelados por comportamentos visíveis por outrem, sem qualquer necessidade de operações lógicas de subsunção a regras de direito, situando-se no domínio dos factos. VII – Devem ter-se por não escritas, nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do CPC, a expressão 'sem que nada o justificasse', reportada à invasão pelo veículo do sinistrado da faixa de rodagem destinada à circulação de sentido contrário, bem como a expressão, referida ao comportamento da condutora do outro veículo interveniente na colisão, em relação à qual se disse, 'que em nada contribuiu para o acidente', pois que ambas as expressões encerram juízos de valor só possíveis de alcançar mediante o recurso a critérios de ordem jurídico-normativa aplicados a realidades factuais, juízos esses que permitem determinar, directamente, se se verificam os pressupostos de que a lei faz depender a descaracterização do acidente — a culpa grave e exclusiva do sinistrado — e, desse modo, contêm, em si, a solução jurídica do pleito. VIII – Por se tratar de questão nova, o Supremo Tribunal não pode conhecer da questão da descaracterização do acidente de trabalho com fundamento em «violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei» [artigo 7.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT)], se tal fundamento não foi apreciado pelas instâncias, perante as quais apenas foi alegada a descaracterização com fundamento em que o acidente proveio «exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado» (artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da LAT)». IX – Não basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado integrar uma infracção ao Código da Estrada, ainda que eventualmente qualificável como contra-ordenação grave ou muito grave para se dar como preenchido o requisito da negligência grosseira que integra a causa de descaracterização do acidente, pois que o regime jurídico dos acidentes de trabalho reclama mecanismos diferentes daqueles de que se socorre a legislação rodoviária: sendo aqui mais premente o interesse da prevenção geral – com o recurso a presunções de culpa e à punição de meras situações de perigo – jamais se poderiam transpor para a sinistralidade laboral os critérios de gravidade adoptados naquela legislação. X – Para excluir o direito à reparação nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT, é indispensável que o evento seja imputado, mediante o estabelecimento do nexo de causalidade, exclusivamente, ao comportamento grosseiramente negligente do sinistrado, o que implica a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção, impendendo o ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada. XI – Estando provado que o acidente consistiu na colisão do velocípede sem motor conduzido pelo sinistrado com um veículo automóvel, que circulavam em sentidos opostos, na semi-faixa de rodagem destinada à circulação do automóvel, em estrada de traçado rectilíneo e inclinação ascendente, atento o sentido do velocípede, com o piso seco e boas condições climatéricas; que o sinistrado circulava distraído, sem prestar atenção à sua condução e ao restante tráfego; que o sinistrado invadiu a faixa de rodagem destinada à circulação dos veículos em sentido contrário, vindo a embater violentamente no automóvel; e que a condutora do automóvel, quando se apercebeu de que o velocípede circulava pela sua hemi-faixa de rodagem, travou e tentou encostar este à sua berma direita, mas não conseguiu evitar a colisão, dada a proximidade do velocípede em que vinha o Autor, deve considerar-se que que, para a colisão dos veículos, contribuiu decisivamente o comportamento do sinistrado, traduzido na invasão da parte da faixa de rodagem destinada à circulação de sentido contrário, assim infringindo a norma de direito rodoviário que tal proíbe. XII – Porém, não se encontrando, na narração da matéria de facto provada, inequivocamente estabelecido o nexo causal entre a distracção e o facto de o velocípede ter invadido a semi-faixa de rodagem contrária, que pode ter acontecido por outras razões, que não a falta de atenção à condução e ao tráfego, não é possível qualificar de temerário, inútil, sem fundamento, o comportamento do sinistrado, o que afasta a consideração de que agiu com negligência grosseira. XIII – E desconhecendo-se a velocidade dos veículos, em especial a do automóvel, elemento de particular relevância para aquilatar da inexistência de culpa concorrente, ainda que de grau diminuto, da condutora do automóvel, na produção do sinistro, não é possível imputar, exclusivamente, ao comportamento do sinistrado a ocorrência do acidente.
Recurso n.º 3441/08 -4.ª Secção Vasques Dinis (Relator)* Bravo Serra Mário Pereira
|