ACSTJ de 01-03-2000
Furto qualificado Veículo automóvel Arrombamento Chave falsa Coisa transportada em veículo Roubo Ofensa à integridade física Especial censurabilidade do agente Meio insidioso Concurso de in
I - O elemento 'outro espaço fechado', referido no art.º 204.º, n.º 2, al. e), do CP, só pode considerar-se integrado por qualquer espaço fechado semelhante à 'habitação' ou 'estabelecimento comercial ou industrial' ou dependente de um destes tipos de 'casa'. II - Considerar que a circunstância 'chave falsa' implicaria uma agravação, nos termos do art.º 204.º, n.º 2, al. e), do CP, que o 'arrombamento' e o 'escalamento' não determinam, seria ilógico e injustificado, à luz dos valores e razões de política criminal subjacentes à relevância das citadas agravantes qualificativas, pois que, do ponto de vista do grau de ofensividade pressuposto da agravação, nada justifica essa diferença de tratamento. III - O cerne do problema não está nas diferenças dos referidos meios de 'penetração', mas na natureza do local onde esta se verifica por qualquer desses meios. Esse local não pode deixar de ser, no critério teleológico que nos deve orientar na apreensão do conteúdo dessa noção, 'casa' ou espaço fechado dela dependente, entendida aquela como todo o espaço físico, fechado, apto a ser habitado ou onde se desenvolvam outras actividades humanas para que, histórico-culturalmente foi criado. IV - Não pode pretender-se que um veículo automóvel, não usado como habitação ou como estabelecimento comercial mas antes na sua utilização habitual como meio de transporte, possa considerar-se abrangido no grupo valorativo das realidades integráveis naquela noção de 'espaço fechado'. V - Elemento comum às diversas situações típicas da alínea b) do n.º 1 do art.º 204.º, do CP, é que a coisa móvel se encontre numa relação de transporte com um veículo e não numa qualquer outra relação com este, designadamente a derivada da circunstância de a coisa móvel ter sido deixada no veículo. VI - O veículo automóvel, quando ao serviço da sua normal utilização, mesmo quando fechado e contendo objectos aí deixados, não deve ser considerado 'receptáculo' para os efeitos da alínea e) do n.º 1 do referido art.º 204.º, do CP, pois tal conceito está intimamente conexionado, na economia do preceito, com as outras previsões dele constantes: 'fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo...'. VII - Sob pena de extensão para além dos limites pressupostos pelo legislador ao usar aquela expressão genérica, o sentido em que é tomada no contexto específico da respectiva alínea exige naturalmente que a previsão do preceito só possa ser integrada por 'outros receptáculos' que tenham um mínimo de semelhança material com os especificamente enunciados na norma, como, relativamente ao veículo automóvel, poderá eventualmente suceder com o 'porta-luvas' e a 'mala' ou 'bagageira', se fechados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à segurança. VIII - Assim, a apropriação ilícita de bens, que se encontravam no interior de dois veículos, e a tentativa de apropriação de bens encontrados num terceiro veículo, todos de proprietários diferentes, mediante a introdução do arguido nessas viaturas após abrir uma das portas com instrumento não apurado, nos dois primeiros casos e após extracção de um vidro, no terceiro caso, integra a prática de três crimes de furto simples, sendo um deles na forma tentada. IX - Comete o crime de roubo, na forma consumada, p. p. pelo art.º 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), referido aos art.º 203.º e 204.º, n.º 2, al. f), do CP, o arguido que, apontando ao pescoço do ofendido uma navalha, intimou este a entregar-lhe a quantia de Esc. 3610$00 e retirou do automóvel em que o ofendido se encontrava um telemóvel com valor superior a Esc. 20000$00, com intenção de se apropriar de tais bens, sendo certo que quando o arguido já se encontrava na posse de tais bens o ofendido, abandonando a viatura, decidiu oferecer-lhe resistência, envolvendo-se em disputa física com aquele, tendo, passado algum tempo e em consequência de tais factos, comparecido no local dois soldados da GNR, que detiveram o arguido. X - Porque, no decurso do envolvimento físico entre o arguido e o ofendido, aquele, com o desígnio de se eximir à acção da justiça e de manter na sua posse os bens de que acabara de se apoderar, com a mencionada navalha desferiu vários golpes atingindo o ofendido, provocando-lhe várias lesões determinantes de oito dias de doença com quatro de incapacidade para o trabalho, cometeu o arguido, ainda, um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. p. pelo art.º 146.º, n.ºs 1 e 2, referido aos art.ºs 143.º e 132.º, n.º 2, al. e) - actual al. f), após a Lei 65/98 - do CP/95, sendo a especial censurabilidade da atitude do arguido traduzida na persistência e escalada da sua actuação agressiva para com o ofendido, como meio de obter a estabilidade do seu domínio de facto sobre os bens roubados e eximir-se à acção da justiça. XI - Aquele crime de ofensa à integridade física qualificada, constituído por factos também integrantes do crime de roubo, está numa relação de concurso aparente e não efectivo com este. XII - No entanto, a utilização da navalha não constituiu, por si só, nas circunstâncias supra descritas, um 'meio insidioso' para os efeitos do exemplo-padrão da al. f) do n.º 2 do art.º 132.º do CP (redacção anterior à Lei 65/98, de 2-9), porque, tendo ela sido usada imediatamente antes para constranger o ofendido a entregar o dinheiro, não se traduziu para este num meio de carácter enganador, sub-reptício, dissimulado ou oculto, caracterizador da insídia que a agravante pressupõe. XIII - A conduta integradora do crime de roubo não pode considerar-se estar numa relação de continuação criminosa com as que preenchem os crimes de furto, faltando desde logo um requisito essencial do crime continuado: implicando a natureza complexa do crime de roubo a ofensa não só de bens jurídicos patrimoniais, como acontece no furto, mas também pessoais, e considerando que o ofendido do roubo não é o mesmo em qualquer dos crimes de furto, falta a identidade fundamental do bem jurídico protegido pelo crime ou pelos vários tipos de crime que os factos integram de forma plúrima. XIV - Por outro lado, apesar da grande proximidade das condutas integradoras dos crimes de furto e a identidade do bem jurídico protegido, também aqui não se verifica uma situação de crime continuado, pois não houve, no terceiro caso (furto tentado) o requisito da homogeneidade da conduta e nos demais casos falta o requisito essencial da existência de uma mesma situação exterior que haja diminuído consideravelmente a culpa do arguido, pois quanto ao segundo veículo o arguido teve de afastar de novo a inibição e a dificuldade resultantes de o veículo se encontrar fechado, circunstância a revelar um quadro exterior que não pressionava a repetição, antes a desincentivava, exigindo uma renovação de determinação dolosa acentuada. XV - O Tribunal, ao fazer o juízo sobre a aplicabilidade do art.º 4.º, do DL 401/82, de 23-09, não pode atender de forma exclusiva ou desproporcionada à gravidade da ilicitude ou da culpa do arguido. Tem de considerar a globalidade da actuação e da situação do jovem, por forma a que, embora concluindo porventura pela necessidade da prisão 'para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade', possa adequar a pena concreta aos seus fins de 'protecção dos bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade' (art. 40.º do CP), na consideração ajustada das exigências especiais dessa reintegração resultante de o agente ser um jovem imputável.
Proc. 17/2000 - 3.ª Secção Armando Leandro (relator) Virgílio Oliveira Leonardo Dias Mariano Per
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