Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) -
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ACSTJ de 16-02-2005
 Recurso da matéria de facto Especificação dos pontos de facto incorrectamente julgados Indicação dos meios de prova que fundam decisão diversa Convite ao aperfeiçoamento Rejeição de recurso Transcriç
I - Se o recorrente quer impugnar validamente a matéria de facto, gravada em audiência, em vista da sua modificabilidade pela Relação, ao abrigo do art. 431.º, al. b), do CPP, por a entender incorrectamente julgada, cabe-lhe o incontornável ónus de especificar os pontos de facto incorrectamente julgados, as provas que fundam decisão diversa da proferida, a sua identificação nos suportes técnicos das provas, havendo lugar a transcrição, que incumbe ao tribunal recorrido, nos termos dos n.ºs 3, als. a) e b), e 4, do art. 412.º do CPP.
II - E a especificação a que alude o preceito - que apresenta paralelismo quase coincidente com o art. 690.º-A, n.º 1, als. a) e b), do CPC - é a indicação individualizada, ponto por ponto, do facto, não bastando a remissão genérica para as provas e factos globalmente fixados pelo tribunal.
III - Tendo o Mº Juiz Desembargador relator convidado o arguido a dar cumprimento a tal ónus, sob cominação de rejeição do recurso quanto à matéria de facto, dando-lhe conhecimento, nesse mesmo despacho, de que as transcrições dos depoimentos prestados em audiência de julgamento se mostravam incorporadas nos autos, estava o arguido em plenas condições de corresponder à estruturação do recurso nas condições legais.
IV - Aliás o arguido nem sequer carecia de conhecer as transcrições - bastando-lhe que indicasse nas conclusões os locais dos suportes magnéticos onde figuram os factos incorrectamente provados e os meios de prova a justificar diversa fixação -, pois as transcrições servem, apenas, para o tribunal de recurso analisar a prova que daquelas resulta, não sendo motivo impeditivo do direito ao recurso a sua falta e nem de suspensão do prazo peremptório de interposição de recurso.
V - Tendo o recorrente preferido requerer à Relação que lhe fossem remetidas as cópias das transcrições e não tendo reagido perante a resposta da sua disponibilidade no processo, onde podiam ser consultadas, só a si se devem imputar as consequências da inobservância do art. 412.º, n.ºs 3, als. a) e b), e 4, do CPP, conducente à rejeição do recurso em sede de matéria de facto, após lhe ter sido dada a oportunidade de corrigir as deficiências de que enfermava a respectiva petição.
VI - O CP, no seu art. 30.º, n.º 2, partilha, na estruturação do crime continuado, do entendimento da criação de condições exteriores ao agente reduzindo-lhe a culpa, redução que não é possível focalizar na convivência mantida entre o arguido e a vítima, em condições análogas às dos cônjuges e na conjugal, isto porque preponderam mais tratos físicos e psíquicos de forma repetida e em grau crescente de gravidade, trazendo, por essa praticabilidade, maior ilicitude e culpa mais censurável.
VII - Se o agente do crime, 'em crescendo', faz desencadear, durante anos a fio, sem emenda, uma personalidade violenta, que nunca recua ante a ofensa e pelo contrário mais a agudiza, desrespeitadora de regras basilares de convivência entre aquela que, primeiro, foi sua companheira e depois esposa, não é descortinável uma situação exterior ao crime, que diminua consideravelmente a culpa do agente, em grau elevadíssimo, a menos que, contraditoriamente, se houvesse de entender dever funcionar a vida em comum como que um palco autorizando a prática de violência física e psíquica.
VIII - O crime continuado está reservado para situações em que se criou, após a primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos à prática do crime, uma outra situação é voltar a verificar-se a mesma oportunidade que já foi aproveitada ou arrastou o agente para a primeira conduta criminosa ou uma solicitação criminosa exercida sobre o agente em consequência da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa, enquadramento factual inteiramente de arredar.
IX - Sendo de excluir a natureza continuada do crime de maus tratos, este integra um só ilícito, materializado numa pluralidade de factos praticados ao longo de vinte anos, unificados por uma mesma resolução criminosa, reafirmada e mantida ao longo dos anos de convivência entre o arguido e sua falecida esposa - é uma prática criminosa reiterada, não continuada no sentido técnico-jurídico.
X - A consagração de qualquer das circunstâncias enunciadas no art. 132.º, n.º 2, do CP, desencadeia o grupo valorativo dos casos agravados de homicídio, e para detecção de qualquer dos efeitos-padrão ali enumerados usa-se o método que atende ao princípio da ponderação global do facto e do autor.
XI - Significa, assim (escreve Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, - Tipo de Culpa e Medida da Pena, Ed. Almedina, 2003. pág. 67), que só a existência de circunstâncias especiais no facto ou na pessoa do agente podem atenuar substancialmente o conteúdo do ilícito ou da culpa, de tal modo que se imponha a revogação do efeito de indício, e essas circunstâncias só logram afastar os exemplos-padrão se possuírem um significado essencial alterando a imagem global do facto, convergindo na pessoa do agente do crime ou sua acção circunstâncias extraordinárias que destaquem a sua ilicitude ou a sua culpa, claramente, do exemplo-padrão.
XII - O STJ tem vindo a fixar jurisprudência no sentido de que, para a ocorrência do 'motivo fútil', além da desproporção manifesta entre a gravidade do facto e o motivo que impeliu à acção, deve acrescer a mais alta insensibilidade moral, manifestada na brutal malvadez do agente, que se traduz em motivos subjectivos ou antecedentes psicológicos que, pela sua insignificância ou frivolidade, sejam desproporcionados com a acção; motivo fútil é aquele que não tem relevo, que não chega a ser motivo, a ausência de motivo, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) a conduta criminosa.
XIII - O abandono do lar conjugal por parte de um dos cônjuges, sem justificar de modo algum a supressão do direito à vida do outro ou maus tratos, é, segundo as regras da experiência comum, fonte de grave perturbação pessoal e, como o divórcio, à luz das concepções sociais dominantes, nem sempre e por todos bem aceite, e é, igualmente, produtor, por vezes, de reflexos socialmente negativos para o atingido, pelo que, no desencadear da acção homicida, não se pode ver natureza frívola, fútil.
XIV - Não obsta à verificação da qualificativa prevista no art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP (persistência na ideação criminosa por mais de 24 horas) a circunstância de o arguido ter municiado a arma, instrumento do crime, no 'dia do acto fatal', antes de matar a esposa, porque esse acto é resultante daquele desígnio criminoso pré-formado, ao pormenor, dias antes, maneira de lhe assegurar praticabilidade, nada tendo de inconciliável com tal qualificativa, inscrevendo-se no seu processo executivo, sem o interromper: o desígnio criminoso foi formado mais de 7 dias sobre a morte, preparada ao pormenor, desde logo pelo seguimento prévio dos passos e movimentos da vítima, escolha do local de consumação, em local ermo, descampado, onde o auxílio à vítima era impensável e a sua indefesa uma realidade certa, colhendo-a de surpresa, fazendo-lhe uma espera, pelo uso de uma arma, que sabia manusear bem, em obediência a um plano previamente reflectido sobre os meios de execução, frio, infalível, calculista e inflexível no propósito homicida, próprio de uma personalidade violenta, fria e embotada, no domínio da relação familiar, especialmente censurável, que também evidencia especial perversidade quando, vendo a vítima tombada no solo, já depois de a ter atingido com dois tiros, para se certificar que não escaparia à sua intenção homicida, dispara sobre ela ainda mais dois sobre a cabeça.
Proc. n.º 3131/04 - 3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Sousa Fonte Pires Salpico Rua Dias