Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Sumários do STJ (Boletim) -
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ACSTJ de 23-02-2005
 Homicídio qualificado Especial censurabilidade e/ou perversidade Premeditação Frieza de ânimo Reflexão sobre os meios empregados Sequestro Medida da pena
I - A al. i) do art. 132.º, n.º 2, do CP, consagra o exemplo-padrão tradicionalmente chamado de premeditação, mas cuja referência omite, reunindo num só preceito entendimentos que à premeditação alguns autores conferiam, nele se congregando as hipóteses em que o agente manifestou firmeza, tenacidade, irrevogabilidade da resolução, indiciada pela persistência criminosa durante certo tempo e, como tal, reveladora de uma forte ideação de concretizar o projecto criminoso.
II - O STJ tem sempre reconduzido o conceito de frieza de ânimo à ideia de calma ou imperturbada reflexão no assumir da intenção de matar, evidenciando modo frio, indiferente ao valor da vida da vítima, a quem não deu condições de defesa, revelando uma forte intensidade da vontade criminosa, sangue frio, calma, firme e fria actuação, absolutamente indiferente ao resultado, total insensibilidade à vida do ofendido, denotando o somatório de condições envolventes e concomitantes do crime uma imagem global agravada, uma culpa acrescida, a reclamar punição mais severizada.
III - A reflexão nos meios empregados há-de consistir num estudo aprofundado dos meios de execução, na escolha dos que mais idóneos se mostrem à execução do crime, maior êxito trazendo à sua realização, por forma que enfraqueça, vulnerabilize a capacidade de defesa da vítima, suprimindo-lhe ou reduzindo-lhe a capacidade de defesa.
IV - Resultando da factualidade assente que:- o arguido projectou matar a vítima, formando esse desígnio nos primeiros dias de Novembro de 2002, despeitado por aquela o ter abandonado e não lhe restituir uma loja que lhe havia ofertado, traçando um plano pormenorizado para o efeito, procedendo a um levantamento da zona onde vivia, mandando espiar o seu local de trabalho por terceiros contratados por si, a fim de a amedrontarem, e como a ofendida persistisse em não lhe restituir a loja, congeminou o recurso a terceiros para lhe levarem à força a vítima, os quais, simulando um acidente de viação, aproveitando-se da colisão provocada e da saída da vítima para o exterior da sua viatura, acabam por a anestesiar, levando-a na viatura colidente, colocando-a, depois, na viatura do arguido que, no interior dela, face à recusa daquela, lhe suprimiu a vida em 25 de Novembro;tal vale por dizer que o arguido persistiu no intuito de matar a vítima por muito mais de 24 horas, surgindo a morte como culminância daquele desígnio temporalmente prolongado e alimentado na sua mente.- socorrendo-se de terceiros que procederam ao aluguer de uma viatura para nela levarem a vítima à força, depois de anestesiada (como previamente acordado entre todos), o arguido traçou um plano de improvável, para não dizer de impossível insucesso, para causar-lhe a morte, não só pela surpresa em que a vítima cai no acidente, pela sua inferioridade numérica face aos seus sequestradores, como ainda face ao reprovável uso do clorofórmio como anestésico, deixando-a voluntariamente bloqueada, fragilizada fisicamente e mais facilmente à sua mercê, apresentando-se o desfecho letal resultado de uma reflexão cuidada em que, pela indefesa criada, a morte era inevitável;o homicídio é qualificado pela circunstância no art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP, pela evidência de frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados e premeditação.
V - E não se diga que ela se verifica somente em relação ao crime de sequestro, porque a frieza de ânimo, aquela reflexão sobre os meios empregados e premeditação abrangem, atravessam, todo o processo global e executivo que conduziu à morte, não sendo caso de violação do princípio ne bis in idem, que proíbe que as circunstâncias que façam parte do tipo sejam valoradas duas vezes na medida da pena: o condicionalismo agravativo é abrangente de toda a acção, pluriofensiva de distintos valores jurídicos fundamentais, sendo valorada uma só vez.
VI - A realização do facto no plano global mostra-se particularmente desvaliosa, ético-moralmente em alto grau, e documenta aspectos de uma personalidade altamente desconformada com os valores de subsistência comunitária, reveladora da prática de um crime de homicídio com especial censurabilidade e perversidade.
VII - Tendo ainda em consideração:- que o arguido agiu com dolo directo, muito intenso, resultante de meditada deliberação, e motivado por despeito e vingança;- os valores ofendidos, situados no topo da pirâmide dos direitos fundamentais: o da privação do direito à liberdade ambulatória, no crime de sequestro, e a vida, no de homicídio;- as necessidades de prevenção geral, de elevada premência, face ao número em crescendo de homicídios cometidos sobre pessoas do sexo feminino, fora e dentro do ambiente familiar;- as necessidades de prevenção especial, que, não avultando (ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais, apesar de não possuir bom comportamento anterior - porque não se provou ser pessoa pacífica e ordeira, honesta nos seus negócios, educado e portador de princípios morais), reclamam ainda intervenção, face a uma personalidade insensível, em vista de o fazer interiorizar os graves malefícios do seu acto;- o grau de ilicitude, elevadíssimo, já pela importância dos valores jurídicos violados, já pela forma de cometimento dos crimes, já pelos sentimentos revelados pelo arguido, sem esquecer o instrumento de agressão utilizado na morte da vítima, sua companheira durante 15 anos, uma arma de fogo, em situação de manifesta superioridade física.- que não revelou qualquer arrependimento ou emoção, sendo que, apesar de o facto de se ter posteriormente apresentado no Posto da GNR dizendo ter desferido um tiro na mulher e entregando a arma do crime ter algum valor atenuativo, a circunstância de manter a vítima em situação de agonia no veículo onde se conduziu aquele Posto retira substancial alcance e mérito a tal atitude e permite reeditar ainda laivos de personalidade de estilo 'racional e frio' e de indiferença para com o sofrimento físico que causou;é de manter a pena imposta pelo crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1, do CP, de 2 anos de prisão, e de fixar em 17 anos de prisão a pena pela prática do crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132.º, n.º 2, al. i), do CP, aplicando-se a pena unitária de 18 anos de prisão.
Proc. n.º 4302/04 - 3.ª Secção Armindo Monteiro (relator) Sousa Fonte Rua Dias Pires Salpico