ACSTJ de 18-07-2008
Homicídio Tentativa Detenção de arma proibida Alteração substancial dos factos Alteração não substancial dos factos Princípio do acusatório Vícios do art. 410.º do Código de Processo Penal Recurso da matéria de facto Recurso da matéria de direito
I -Quando a al. f) do art. 1.º do CPP nos diz que alteração substancial dos factos é aquela que «tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis», e deixando de lado esta última hipótese, pensada para situações em que os factos novos representam agravantes qualificativas especiais, somos confrontados com a necessidade de estabelecer um sentido para o conceito de “crime diverso”. Só assim poderemos constatar se houve ou não alteração substancial dos factos, o mesmo é dizer, se ocorreu ou não, por essa via, uma modificação intolerável do objecto do processo. II - Duas notas são de adiantar, a tal propósito: -por um lado, o conceito de “crime diverso” terá que ter uma natureza processual e não substantiva, porque ao serviço do apuramento da alteração substancial dos factos, que por sua vez presta homenagem ao princípio acusatório, e, no fundo, serve os interesses da defesa; de tal modo que não se poderá confundir com a ideia de tipo legal de crime diverso (poderemos estar perante “crime diverso” mantendo-se o tipo legal, e poderemos não estar perante “crime diverso” pese embora a mudança de tipo); -por outro lado, importará recorrer, na determinação do conceito, tanto a um critério normativo, jurídico-penal, como a um critério simplesmente sociológico, que se centre sobre o facto histórico ocorrido. III - Haverá que apurar, como ponto de partida, com recurso a um critério normativo, se o significado jurídico-penal da primeira representação hipotética do acontecimento, confrontada com representações ulteriores, não configurará a lesão de outra categoria de bem jurídico, ou seja, se não surgirá entre ambas uma relação de concurso aparente, com o que, em princípio se não estará perante um “crime diverso”. IV - Só que, sempre importará averiguar se o acontecimento histórico, de acordo com uma tal segunda representação do ocorrido, se distingue radicalmente da primeira versão do mesmo. No sentido de que o evento histórico será radicalmente diferente quando, numa abordagem pré-jurídica da factualidade, possamos dizer que partimos de um facto para chegar a outro que nada tem a ver com o primeiro. Devido a circunstâncias materiais objectivas, como o tempo ou o lugar, ou subjectivas, como a identidade do agente, e isto mesmo que se esteja, exactamente, perante o mesmo tipo legal de crime. V - Por último, será ainda com recurso a critérios não normativos, que se terá que concluir pela não diversidade do crime, nas situações em que os factos novos impliquem lesão de bens jurídicos diferentes, e portanto um concurso efectivo de crimes, designadamente ideal, mas os factos antes adquiridos para o processo formem com os novos uma “unidade natural” forte. Um pedaço de vida com a mesma imagem social, ou seja, valorado socialmente em termos muito semelhantes. VI - No caso dos autos começou por se imputar ao recorrente a subtracção de duas armas, a sua detenção e o uso de uma delas, disparando-a contra três pessoas, com o fito de as matar. Apurou-se depois que o arguido não tinha, naturalmente, licença de uso e porte de arma de caça, o que representa porém, em termos de qualificação jurídica do seu comportamento global, a prática de mais um crime. No entanto, este novo facto (negativo), conjugado com os outros, não origina uma valoração social (também negativa), substancialmente diferente da que é desencadeada pelo furto e pelos homicídios, em termos de se poder dizer que afinal ocorreu “crime diverso” (obviamente em sentido processual). Para além de se integrar numa unidade natural histórica, não será por certo a falta de licença que levará, no contexto em apreço, a uma desaprovação social do comportamento do recorrente, significativamente acrescida. VII - Afastada a ocorrência de uma alteração substancial dos factos, será de ter em conta o disposto no n.º 2 do art. 358.º do CPP, o que envolve a desnecessidade de observância do disposto no n.º 1 do preceito, já que o facto novo, falta de licença, foi revelado pelo próprio recorrente em audiência. VIII - O conhecimento de recurso em matéria de facto, interposto de decisão final do tribunal colectivo, é só da competência do Tribunal da Relação, mesmo tratando-se da mera invocação dos vícios do art. 410.º do CPP. Quando o art. 434.º do CPP nos diz que o recurso para o STJ visa exclusivamente matéria de direito, «sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º», não pretende, sem mais, com esta afirmação, que o recurso interposto para o STJ possa visar sempre a invocação dos vícios previstos neste artigo. Pretende simplesmente admitir o conhecimento dos vícios mencionados pelo STJ, oficiosamente, mesmo não se tratando de matéria de direito. IX - O âmbito dos poderes de cognição do STJ é-nos revelado pela al. c), hoje al. d), do n.º 1 do art. 432.º, que restringe o conhecimento do STJ a matéria de direito. E refira-se que as alterações do CPP operadas pela Lei 48/2007, de 29-08, não modificaram os preceitos em causa (al. c), depois d), do art. 432.º e art. 434.º), de modo a justificar-se uma inflexão da orientação seguida neste STJ. X - Mesmo que se defenda a garantia, de incidência constitucional, de um duplo grau de jurisdição, também em matéria de facto, ela fica também preservada, devendo simplesmente, se for o caso, optar o recorrente pela interposição do recurso para a Relação, quando invocar os vícios do art. 410.º do CPP. XI - Ao pronunciar-se de direito, nos recursos que para si se interponham, o STJ tem que dispor de uma base factual escorreita, no sentido de se apresentar expurgada de eventuais insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos. Por isso conhece dos vícios aludidos por sua iniciativa. Aliás, tem mesmo de os conhecer, nos termos do Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 19-10-1995, do Pleno das Secções Criminais deste STJ (Proc. n.º 46580 -3.ª, publicado no DR n.º 298, I-A, de 2812-1995). XII - O erro notório na apreciação da prova, como tem sido repetido à saciedade na jurisprudência deste STJ, tem que decorrer da decisão recorrida ela mesma. Por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. Tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente o entendimento que possa traduzir-se numa leitura possível, aceitável, razoável, da prova produzida. XIII - Como qualquer facto do foro psicológico, a conclusão de ter ocorrido intenção de matar terá que deduzir-se de factos externos que a revelem.
Proc. n.º 102/08 -5.ª Secção
Souto Moura (relator) **
António Colaço
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