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Processo n.º 596/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A insolvente Fábrica de Balões A., Lda., intentou em 20 de março de 2009, inicialmente como injunção, a agora ação declarativa de condenação, com processo comum ordinário, demandando B., Gmbh, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 21.099,15, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal aplicável aos créditos comerciais sobre o capital em dívida, contados a partir de 14.03.2009, e até integral e efetivo pagamento.
A Ré contestou, deduzindo pedido reconvencional.
Após realização de audiência de julgamento, foi proferida sentença que condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 20442,83, acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva aplicável aos créditos comerciais que sucessivamente vigorar, contados desde 07.10.2008 e até efetivo e integral pagamento, tendo absolvido a Autora do pedido reconvencional.
A Ré recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, impugnando, além do mais, a decisão sobre a matéria de facto, o qual, por acórdão proferido em 17 de outubro de 2011, julgou a apelação improcedente.
Após não ter sido conhecido o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, a Ré recorreu daquela decisão para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
Este Recurso é interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do Artigo 70.º da L.C.T., e destina-se a apreciar a inconstitucionalidade da interpretação dada pela 1.ª Instância e pelo Tribunal da Relação do Porto ao Regulamento (CE) N.º 1206/2001 do Conselho de 28 de maio de 2001 e ao disposto no Artigo 621.º do C. P. C., e a apreciação da existência da discriminação de que foram alvo as testemunhas estrangeiras com violação dos princípios da igualdade, do contraditório e do acesso ao direito.
O Artigo 621.º do C. P. C. prevê a inquirição das testemunhas por Carta Rogatória atribuindo-lhe a mesma força probatória.
A obtenção de prova em matéria civil e comercial nos Estados da União Europeia está regulada pelo Regulamento (CE) N.º 1206/2001 do Conselho de 28 de maio de 2001, que no Artigo 10.º n.º 2 dispõe que o Tribunal requerido executará o pedido de acordo com a legislação do seu Estado-Membro.
Admitindo a lei a inquirição das testemunhas por Carta Rogatória, não pode o Tribunal, como aconteceu neste processo, ignorar e desvalorizar o depoimento de seis testemunhas estrangeiras só porque esse depoimento foi obtido através de Carta Rogatória com o argumento de falta de naturalidade e espontaneidade.
Na apreciação da prova o Tribunal não usou de critérios iguais para as testemunhas portuguesas e estrangeiras, descriminando as testemunhas estrangeiras ouvidas por Carta Rogatória, e considerando apenas credíveis os depoimentos das testemunhas portuguesas ouvidas em audiência de julgamento.
Esta interpretação da 1.ª Instância sufragada pelo douto Tribunal da Relação do Porto do Artigo 621.º do C. P. C. e Regulamento (CE) n.º 1206/2001 do Conselho de 28 de maio de 2001 viola claramente o principio da igualdade previsto no Artigo 13.º n.º 1 e n.º 2, da C.R.P. o princípio do acesso ao direito e contraditório previstos nos Artigos 2.º e 3.º, 3.º-A do C.P.C. e Artigo 20.º n.º 1 e 4 da C.R.P., isto porque o poder do Mmo. Juiz de apreciar a prova livremente não exclui que o tenha feito discriminando testemunhas em razão da sua nacionalidade, atribuindo menos credibilidade a testemunhas estrangeiras por não terem deposto perante o Tribunal Português em audiência de julgamento.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso com a seguinte fundamentação:
“No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Ora, conforme resulta da leitura do requerimento de interposição de recurso, a Recorrente não pretende que o tribunal fiscalize um qualquer critério normativo que o tribunal recorrido tenha adotado como fundamento da decisão recorrida, mas sim a própria decisão na parte relativa ao conhecimento da impugnação da fixação da matéria de facto.
Na verdade, a Recorrente entende que na apreciação da prova o Tribunal não usou de critérios iguais para as testemunhas portuguesas e estrangeiras, descriminando as testemunhas estrangeiras ouvidas por Carta Rogatória, e considerando apenas credíveis os depoimentos das testemunhas portuguesas ouvidas em audiência de julgamento, alegando que esse juízo viola princípios constitucionais.
É, pois, o concreto julgamento do Tribunal recorrido da impugnação da matéria de facto que é arguido de inconstitucional e não qualquer critério geral e abstrato que aquele Tribunal tenha utilizado como fundamento da sua decisão, pelo que, tendo o recurso de constitucionalidade um cariz necessariamente normativo, não pode este recurso ser conhecido.
Deste modo deve ser proferida decisão sumária nesse sentido, conforme permite o artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.”
A Recorrente reclamou desta decisão nos seguintes termos:
“O Mmo. Juiz Relator na decisão sumária de 06 de novembro de 2012 decidiu não tomar conhecimento do Recurso interposto por entender que a Recorrente: “... não pretende que o tribunal fiscalize um qualquer critério normativo que o tribunal recorrido tenha adotado como fundamento da decisão recorrida, mas sim a própria decisão na parte relativa ao conhecimento da impugnação da fixação da matéria de facto.”
Salvo o devido respeito, a Reclamante não concorda com este argumento.
O Recurso foi interposto nos termos da alínea b) do Artigo 70.º da L. C. T.
A lei faz depender a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional previsto na alínea b) do Artigo 70.º de três requisitos cumulativos:
1) - que da decisão recorrida não seja possível interpor recurso ordinário;
2) - que a decisão recorrida tenha aplicado normas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo;
3) - e que tenha sido o recorrente a suscitar a questão de inconstitucionalidade;
Afigura-se à Reclamante que no caso concreto se encontram verificados estes três requisitos.
A decisão do Tribunal da Relação do Porto não admitia recurso ordinário, como foi decidido peio Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
A questão da inconstitucionalidade foi suscitada pela Recorrente no Recurso de Apelação para o douto Tribunal da Relação do Porto.
O que se pretende, e resulta do requerimento de interposição do Recurso, é que esse douto Tribunal aprecie e fiscalize a inconstitucionalidade da interpretação que foi feita pelo Tribunal da 1ª Instância e pelo Tribunal da Relação do Porto ao Artigo 621.º do C. P. C. e ao Regulamento (CE) n.º 1206/2001 do Conselho de 28 de maio de 2001.
No entender da Reclamante a interpretação das referidas normas violou o princípio da igualdade previsto no Artigo 13.º n.º 1 e n.º 2 da C. R. P., o princípio do acesso ao direito e contraditório previstos nos Artigos 2.º, 3.º e 3.º - A do C. P. C. e Artigo 20.º n.º 1 e 4 da C.R.P.
Não se pretende pois a fiscalização da decisão recorrida
Em conclusão:
Estando verificados, no entender da Reclamante todos os pressupostos processuais de admissibilidade deste Recurso, deverá o mesmo ser admitido e apreciado por esse douto Tribunal, o que aqui se requer.”
Fundamentação
Conforme se refere na decisão reclamada, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas.
Ora, a “interpretação” imputada à decisão recorrida, que a Recorrente pretende que seja fiscalizada não tem um cunho normativo, reportando-se antes a um juízo concreto de apreciação da prova produzida.
Sendo, pois, o concreto julgamento do Tribunal recorrido da impugnação da matéria de facto que é arguido de inconstitucional e não qualquer critério geral e abstrato que aquele Tribunal tenha utilizado como fundamento da sua decisão, revela-se correto o não conhecimento do mérito do recurso, pelo que deve ser indeferida a reclamação.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por B., Gmbh.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 5 de dezembro de 2012.- João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.