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Processo n.º 705/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão:
“1. O presente recurso vem interposto, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 11 de julho de 2012 (fls. 528: “não se conformando com a decisão que lhe foi notificada vem dela interpor recurso …”) e como tal foi admitido pelo relator do processo nesse Supremo Tribunal (fls. 552: artigo 76.º, n.º 1, da LTC). Tem em vista a apreciação da (in)constitucionalidade da norma da alínea a) do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade.
Ora, esse acórdão não recusou aplicação com fundamento em inconstitucionalidade [alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º], nem fez aplicação [alínea b) do n.º 1.º do artigo 9.º] da referida norma. Limitou-se a decidir que não se verificam os pressupostos do recurso excecional de revista previstos no artigo 150.º do CPTA.
Consequentemente, o recurso não pode prosseguir por não ter por objeto norma a que a decisão judicial recorrida tenha recusado ou de que tenha feito aplicação, como é exigido pelas normas ao abrigo das quais foi interposto.
2. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condenar o recorrente nas custas, com 7 UCs de taxa de justiça.”
2. O recorrente reclamou para a conferência com os fundamentos seguintes:
“Vem a presente reclamação apresentada na sequência da decisão sumária que considerou que “o acórdão (em crise) não recusou a aplicação com fundamento em inconstitucionalidade [alínea a) do n.º 1 do art. 70º], nem fez aplicação [alínea b) do n.º 1 do art. 79] da referida norma. Limitou-se a decidir que não se verificam os pressupostos do recurso excecional de revista previstos no art. 150° do CPTA.”, concluindo que “o recurso não pode prosseguir por não ter sido objeto norma a que a decisão judicial recorrida tenha recusado ou de que tenha feito aplicação, como é exigido pelas normas ao abrigo das quais foi interposto.”
1. Ora com o devido respeito, o recorrente não alegou que o douto acórdão do STA aplicou ou recusou aplicar norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada.
2. O recorrente alegou que “Ao longo das instâncias foram arguidas pelo recorrente várias inconstitucionalidades, no essencial relativas a interpretações do artº 9º, al. a) da Lei da Nacionalidade (Lei nº 37/81, de 3 de outubro).” (vd. Art. 2° do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional)
3. E, concretamente, alegou o recorrente a linhas 767 a 819 da 34 contestação e a linhas 718 a 770 e 1004 a 1009 das alegações de recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul) e respetivas conclusões que “a interpretação do art. 9° n.º 1 da Lei da Nacionalidade no sentido de que o requerente tem de fazer prova da ligação efetiva à comunidade nacional ofende, claramente o disposto na Convenção e, pour cause, o disposto no art. 8º, 2 da Constituição, pelo que se afigura inconstitucional.”
4. Mais referiu o recorrente no art. 4° do mesmo requerimento de interposição de recurso que “alegou-se, ao longo do processo, que a interpretação do art. 9º, al. a) no sentido de que é exigível a apresentação pelo interessado de provas de ligação à comunidade portuguesa é inconstitucional porque ofende os art°s 78°, 25°, 1 e 26°, 1 da Constituição da República.”
5. E, concretamente, alegou o recorrente a linhas 767 a 819 da contestação e a linhas 718 a 770 e 1004 a 1009 das alegações de recurso para o TCA Sul e respetivas conclusões que “o direito à aquisição da nacionalidade por parte de um filho menor de quem adquire a nacionalidade portuguesa constitui um direito fundamental, a que se aplica o regime do art. 18° da Constituição.
A douta decisão recorrida, tal como foi formulada, não encontra na lei nenhum suporte concreto, ofendendo o disposto no art.° 9°, al. a) da Lei da Nacionalidade, o art. 57°, 7 do Regulamento da Nacionalidade, e os art°s 18°, 26° e 36°,6 da Constituição.”
6. Referiu ainda no art 21° do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional que “alegou-se ainda que a solução adotada pelas instâncias é manifestamente racista e xenófoba, ofende de forma grosseira direitos constitucionais garantidos por normas de aplicação direta e imediata, a começar pelos art°s 25°, 1 e 26°,1.”
7. E, concretamente, alegou o recorrente a linhas 767 a 819 da contestação e a linhas 718 a 770 e 1004 a 1009 das alegações de recurso para o TCA Sul e respetivas conclusões que “a douta decisão recorrida, tal como foi formulada, não encontra na lei nenhum suporte concreto, ofendendo o disposto no art.° 9°, al. a) da Lei da Nacionalidade, o art. 57°, 7 do Regulamento da Nacionalidade, e os art°s 18°, 26° e 36°, 6 da Constituição.”
8. Conforme resulta do exposto, e ao contrário do que entendeu o Senhor Conselheiro Relator, o recorrente nunca alegou que as questões de inconstitucionalidade foram especificamente alegadas e decididas através do acórdão do STA.
9. Ao invés, sempre referiu que as questões de inconstitucionalidade foram suscitadas ao longo das instâncias.
10. Conforme resulta dos supra citados excertos e referências às peças processuais as questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo recorrente reconduzem-se ao previsto no art. 70°n° l al. b) da LTC.
11. Nos termos do disposto no art. 70° n° 2 da LTC, os recursos previstos nas alíneas b) e f) do art. 70° n° 1 apenas podem ser interpostos de decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que no caso cabiam.
12. No caso concreto, da decisão do TCA Sul cabia recurso de revista para o STA, nos termos do disposto no art. 150° do CPTA.
13. O referido recurso de revista é um recurso ordinário, como aliás decorre da sua inserção sistemática no Capítulo II (Recursos Ordinários) do CPTA.
14. Apesar de competir ao STA decidir se se verificam os pressupostos previstos no art. 150° n° 1 do CPTA para admissão do recurso — i.e. a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito - sempre se terá de reconhecer que, no caso concreto tal conclusão era (no mínimo) controversa, porquanto:
a. A questão central do recurso administrativo - o ónus de alegação e prova de factos demonstrativos da inexistência de ligação efetiva à comunidade portuguesa - é uma questão de direitos fundamentais - o direito à nacionalidade por parte de filhos de cidadão português - e, como tal, uma matéria particularmente importante e delicada;
b. O entendimento das instâncias - implicitamente sancionado pelo STA - foi de que cabia ao requerente alegar e provar factos que demonstrassem que possuía ligação efetiva à comunidade portuguesa pois, se o Ministério Público se opusesse à aquisição da nacionalidade e mesmo que não a1egasse factos demonstrativos da inexistência de ligação efetiva, tinha-se por demonstrada a inexistência de tal ligação efetiva se o requerente apenas impugnasse a oposição do Ministério Público, sem apresentar factos que, pela positiva, demonstrassem a existência de tal “ligação efetiva.”
c. Assim sendo, quer por se tratar de matéria sensível, quer por importar uma revolução coperniciana em termos de ónus de alegacão e prova de factos demonstrativos da inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional, é forçoso concluir a questão em recurso para o STA era de relevância jurídica e importância fundamental, sendo ainda certo que a admissão do recurso era claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente para alteração da jurisprudência em termos ónus de alegação e prova dos referidos factos.
d. Por fim, a intervenção estabilizadora do STA era fortemente aconselhável nesta matéria, uma vez que se trata de uma questão que afeta milhares de cidadãos filhos de portugueses nascidos no estrangeiro e que estão a ser lesados no seu direito à nacionalidade por decisões ilícitas, inconstitucionais e discriminatórias, de que as que foram proferidas pelas instâncias inferiores são um mero exemplo. Só o signatário patrocina mais de 48 ações semelhantes àquela a que se reporta o presente recurso.
15. A decisão do TCA Sul não era, pois, manifestamente irrecorrível, sendo portanto certo que o recorrente tinha o direito de apelar para a última instância da jurisdição administrativa, antes de recorrer ao Tribunal Constitucional.
16. Em todo o caso, ainda que tal recurso fosse manifestamente improcedente, sempre seria irrelevante para efeitos do início da contagem de prazo para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, uma vez que, nos termos do disposto no art. 75° nº 2 da LTC, interposto recurso ordinário que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.
17. Ora, a interposição do recurso para o STA impediu o trânsito em julgado do acórdão do TCA Sul.
18. Assim sendo, só após a comunicação da decisão do STA, e decorrido o prazo para a respetiva impugnação, é que se iniciou o decurso do prazo para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto no art. 75° n° 2 da LTC.
19. O recurso para o Tribunal Constitucional foi tempestivamente interposto, nos termos do disposto no art. 75 nº l da LTC.
20. Além de ter sido tempestivamente interposto, e tendo em conta que o STA não admitiu a revista, o recurso para o Tribunal Constitucional tem por objeto as inconstitucionalidades suscitadas em primeira e segunda instância, conforme supra referido e, bem assim, no requerimento de interposição de recurso apresentado e objeto da decisão sumária ora em crise.
[ …]”
3. O Ministério Público responde nos termos seguintes:
«1º
No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional, o recorrente começa por afirmar:
“(…) não se conformando com a decisão que lhe foi notificada, vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento no disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (…)”.
2º
A decisão que lhe havia sido notificada era o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, proferido em 11 de julho de 2012, que, por não se verificarem os pressupostos exigidos pelo artigo 150.º do CPTA, não admitiu a revista.
3º
Naturalmente que o mesmo requerimento de interposição do recurso foi dirigido e entregue no Supremo Tribunal Administrativo, tendo sido ali proferido o despacho a que alude o artigo 76.º, n.º 1, da LTC.
4º
Assim, parece-nos evidente que a decisão de que se pretendeu interpor e se interpôs recurso para este Tribunal Constitucional foi a proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo.
5º
O recorrente identifica como objeto do recurso a questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 9.º, alínea a), da Lei da Nacionalidade.
6º
Ora, é manifesto que a decisão recorrida não aplicou, nem podia aplicar aquela norma, mas apenas o artigo 150.º do CPTA, como e bem se entendeu na douta decisão reclamada.
7º
Faltando esse requisito de admissibilidade do recurso, é irrelevante que o recorrente, perante as diversas instâncias, tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade daquela norma da Lei da Nacionalidade, como argumenta na presente reclamação.
8º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
4. No sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade, instituído pelo artigo 280.º da Constituição e desenvolvido pelos artigos 69.º e segs. da LTC, acede-se ao Tribunal Constitucional por via de recurso das decisões dos demais tribunais. Neste recurso impugna-se determinada decisão (objeto do recurso em sentido processual), com um âmbito necessariamente circunscrito: a apreciação da inconstitucionalidade de determinada norma (objeto do recurso em sentido substantivo). A identificação do objeto do recurso, em qualquer destas vertentes, é ónus que o recorrente tem de cumprir logo no requerimento de interposição.
Aliás, na primeira vertente, nem sequer se trata de exigência especial do regime de recurso para o Tribunal Constitucional. Seja qual for a espécie de recurso, um ónus elementar tem o recorrente, que é o de indicar a decisão que pretende impugnar. Só ele sabe que ato jurisdicional quer impedir que transite em julgado, submetendo-o à apreciação do tribunal superior (hoc sensu). É um requisito que se cumpre mediante uma declaração formal. Aliás, de cumprimento facílimo.
Todavia, essa exigência comum de clareza e certeza na manifestação da vontade processual, assume no recurso de constitucionalidade uma importância e exige do interessado uma cautela acrescida por virtude de os pressupostos específicos de recorribilidade se determinarem por referência ao conteúdo de um determinado ato jurisdicional e, especialmente, pela possibilidade de o recurso poder respeitar à última da fileira de decisões judiciais ou a uma decisão anterior, de outro tribunal (cfr. n.º 2 do artigo 75.º da LTC). Opção que cabe ao recorrente e que tem decisiva repercussão na admissibilidade e no processamento do recurso.
Ora, o citado requerimento foi apresentado no Supremo Tribunal Administrativo, dirigido ao respetivo Conselheiro Relator, deduzido na sequência de acórdão que não admitiu o recurso excecional de revista e dizendo o recorrente que “não se conformando com a decisão que lhe foi notificada vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional”. Nenhum elemento externo da peça processual ou do seu contexto processual indiciava que a vontade processual do recorrente era a de erigir em objeto do recurso outro ato que não o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo que o antecedia. E assim o entendeu o despacho de admissão do recurso proferido no Supremo Tribunal Administrativo (cfr. n.º 1 do artigo 76.º da LTC). Pelas mesmas razões, foi relativamente a este acórdão que na decisão reclamada se analisou a verificação dos pressupostos do recurso interposto para o Tribunal Constitucional, concluindo pela negativa.
Ora, as razões alegadas pelo recorrente não são de molde a fazer reverter tal entendimento, que corresponde à interpretação do requerimento de interposição pelo padrão do sentido normal do ato em causa, atendendo ao seu teor literal, ao seu contexto e ao seu tipo legal.
Com efeito, o recurso não foi rejeitado com fundamento na falta de suscitação das questões de constitucionalidade, na intempestividade de interposição, ou na inidoneidade do objeto em sentido substantivo, isto é, da norma identificada no requerimento de interposição para apreciação pelo Tribunal. O que motivou a rejeição do recurso foi a circunstância de, face aos termos do requerimento de interposição, dever considerar-se que a decisão recorrida é o acórdão do Supremo e este não ter feito aplicação senão do artigo 150.º do CPTA.
E não há nesse acórdão, contra o que parece sustentar o recorrente [n.º 15, alínea b) da reclamação] – aliás de modo pouco harmónico com a argumentação anterior de que foi às instâncias que imputou a aplicação da norma com um sentido inconstitucional –, concordância implícita com o entendimento das instâncias relativamente à prova da ligação efetiva à comunidade nacional e, por essa via, aplicação das normas respetivas. Não admitindo o recurso, o Supremo nenhuma posição tomou quanto a essa questão senão a de que ela não justificava o recurso de revista excecional.
Por outro lado, no nosso sistema jurídico, o Tribunal Constitucional não se ocupa diretamente da violação de direitos fundamentais discutida no processo. Aprecia a constitucionalidade de determinadas normas aplicadas (ou desaplicadas com fundamento em inconstitucionalidade) por uma concreta decisão judicial. É para apreciação dessa questão de constitucionalidade, e não em continuação daquela discussão que o Tribunal intervém.
Nestes termos, não havendo razões objetivas para interpretar o requerimento de interposição de modo diverso – quanto à determinação da decisão impugnada, ou seja, do objeto do recurso em sentido processual – daquele que foi adotado pela decisão sumária reclamada, esta tem de ser confirmada. Não houve desaplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade – aspeto, aliás, não questionado –, nem esse acórdão fez aplicação da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 9.º da Lei da Nacionalidade.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.