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Processo n.º 604/2012
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., melhor identificada nos autos, reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo Relator que decidiu não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
«(...)
A., recorrente nos autos, tendo sido notificada da douta decisão sumária nº 429/2012 que ao abrigo do nº 1 do artigo 78º A da LTC decidiu não conhecer do objeto do recurso, vem, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 78º-A da Lei 28/82 de 15/11 dela
RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA
O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
I
Vem proferida douta decisão e sumária que, ao abrigo do nº 1 do artigo 78º- A da LTC decidiu não conhecer do objeto do recurso.
II
Fê-lo, argumentando, em súmula que a questão suscitada perante o Tribunal recorrido, não tem caráter normativo e diverge da que foi e vem colocada à douta consideração do Tribunal Constitucional.
III
No ver da douta decisão sumária, faz esta consignar que a recorrente suscitou junto do STJ questão, substancialmente diferente daquela que é objeto do recurso interposto.
IV
Salvo o devido respeito pela douta opinião sufragada na não menos douta decisão sumária, a questão que foi suscitada no STJ e agora trazida a recurso é, mais palavra menos palavra, substancialmente a mesma.
V
A recorrente e ora reclamante pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 4º e 64º do DL 321/B/90 de 15/10 (RAU) interpretadas no sentido de que as obras levadas a cabo em parte do locado que habita, geraram deteriorações consideráveis suscetíveis de levar à extinção da relação locaticía, primordialmente habitacional, com a consequente resolução do contrato.
VI
Vistas as coisas “à letra” e numa interpretação puramente textual, e não mais do que gramatical, dá para ver que a reclamante, no segmento indicativo do objeto do recurso, transcreveu, nesta parte as correspondentes das alegações de recurso apresentadas no STJ, e entre ambas as redações, constatamos que naquela suprimiu as expressões literais no âmbito do exercício da industria doméstica (com referência às obras) e há já mais de 32 anos (com referência ao tempo de habitação do locado).
VII
Expurgada, a douta decisão dos purismos da “politica” gramatical, facilmente se conclui, que nas orações que compõem os segmentos narrativos do texto do requerimento de interposição do presente recurso e do texto que consta das conclusões das alegações apresentadas no STJ, a questão submetida à apreciação do TC é inequivocamente una e a temática despida da roupagem linguística, é substancialmente a mesma.
VIII
A questão suscitada agora junto do TC é a mesma que foi submetida à apreciação do STJ
IX
A reclamante pretende questionar no presente recurso, a inconstitucionalidade das normas citadas com a interpretação de que foram alvo e ao nível do conteúdo intrínseco das mesmas, num plano de generalidade e abstração, independentemente da sua aplicação ao caso concreto, na medida em que a interpretação alvo, viola, claramente, direitos, liberdades e garantias fundamentais de qualquer cidadão, chame- se ele A. ou B, C., D., E., F. ou G..
(...)»
3. Notificada para o efeito, Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de H. respondeu à reclamação, pugnando pelo respetivo indeferimento.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada tem a seguinte redação:
«(...)
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrida a Herança Ilíquida e Indivisa Aberta por Óbito de H., foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), nos seguintes termos:
«A., recorrente nos autos à margem identificados, não se conformando com a douta decisão / Acórdão do STJ que lhe foi notificada, vem dela interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos termos seguintes:
1º
O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 70.º da Lei 28/82 de 15/11, na redação dada pela Lei 143/85 de 26/11, Lei 85/89 de 07/09, Lei 88/95 de 01/09, e Lei 13.º- A/98 de 26/02.
2º
Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.ºe 64.º do DL 321/B/90 de 15/10, com a interpretação com que foram aplicadas no Acórdão recorrido que sufragou entendimento no sentido de que as obras levadas a cabo pela Ré, em parte do locado que habita, geraram deteriorações consideráveis, suscetíveis de levar à extinção da relação locatícia, primordialmente habitacional, com a consequente resolução do contrato, e que as referidas normas, e tal como interpretadas, mormente o fundamento de despejo previsto no artigo 64.º, n.º 1 alínea d) do RAU, não conflituam nem colidem com a tutela constitucional do direito à habitação.
3º
Na verdade, as referidas normas atrás citadas, salvo sempre outro e melhor entendimento, tal como interpretadas no douto Ac. do STJ, violam os artigos 65.º e 72.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que estes normativos integram o leque dos direitos, liberdades e garantias individuais e fundamentais.
4º
A questão da inconstitucionalidade que subjaz com o presente recurso, foi suscitada nos autos, e nas alegações de recurso de Apelação para o TRC, e posteriormente, nas alegações de recurso para esse Tribunal (STJ), no âmbito do recurso de Revista.
5º
O recurso ora interposto para o TC sobe nos próprios autos e com efeito suspensivo (art.º 78.º n.º 4 da Lei supra referida e com as sucessivas alterações).
Nestes termos e melhores de Direito, requer-se de V. Ex.ª se digne admitir o presente recurso, fazendo-o subir, com o efeito próprio, seguindo-se todos os demais termos legais aplicáveis.»
2. A questão que a recorrente suscitou perante o tribunal recorrido, para além de não ter caráter normativo, não coincide com a que agora indica como objeto do recurso.
No requerimento de interposição do recurso, a recorrente afirma pretender a apreciação da seguinte questão: «inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º e 64.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU), interpretadas no sentido de que «as obras levadas a cabo pela Ré, em parte do locado que habita, geraram deteriorações consideráveis, suscetíveis de levar à extinção da relação locatícia, primordialmente habitacional, com a consequente resolução do contrato».
Já nas alegações do recurso que apresentou junto do Supremo Tribunal de Justiça, a recorrente suscitou a seguinte questão de constitucionalidade: «inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º e 64.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU), interpretadas no sentido de que as obras levadas a cabo pela ré no âmbito do exercício da indústria doméstica, que exerce em parte do locado, onde também habita e há já mais de 32 anos, geraram deteriorações consideráveis, suscetíveis de induzirem à extinção de um contrato que é primordialmente habitacional.» (cfr. artigo 18.º das conclusões daquelas alegações).
O problema que se coloca não é o da diferente formulação linguística utilizada na enunciação da questão de constitucionalidade objeto do recurso e da questão suscitada perante o tribunal recorrido. O problema é que uma e outra traduzem questões substancialmente diferentes.
Assim, não consta, designadamente, do objeto do pedido apresentado no requerimento de recurso o segmento de que as obras aforam levadas a cabo “no âmbito do exercício da indústria doméstica”.
Deste modo, a questão suscitada junto do tribunal recorrido não pode ser conhecida, por não ter sido indicada, pelo recorrente, como objeto do recurso de constitucionalidade.
Note-se a latere que o acórdão recorrido – na linha, aliás, das decisões das instâncias recorridas – não deu como provado que as obras tenham sido executadas “no âmbito do exercício da indústria doméstica de cabeleireiro”, pelo que se a questão se tivesse mantido, tal como foi suscitada, não corresponderia à interpretação normativa efetivamente aplicada como ratio decidendi da decisão.
3. Por outro lado, a interpretação dos artigos 4.º e 64.º do RAU que vem enunciada como objeto do recurso não tem caráter normativo.
Diz-se no requerimento de interposição do recurso que o mesmo visa a apreciação da «inconstitucionalidade das normas dos artigos 4.º e 64.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU), interpretadas no sentido de que «as obras levadas a cabo pela Ré, em parte do locado que habita, geraram deteriorações consideráveis, suscetíveis de levar à extinção da relação locatícia, primordialmente habitacional, com a consequente resolução do contrato».
Nesta interpretação, embora sob a capa de uma dimensão de tipo “normativo”, o que a recorrente verdadeiramente questiona, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade, é o juízo valorativo contido na decisão recorrida que, em concreto, qualificou as obras levadas a cabo pela recorrente no locado como causadoras de “deteriorações consideráveis” e, como tal, suscetíveis de serem causa da resolução do contrato de arrendamento. Ou seja, o que vem questionado não é uma dimensão da norma, com caráter de generalidade e abstração, mas sim o resultado da aplicação, pelo tribunal recorrido, do direito ao caso concreto, através do preenchimento de um conceito indeterminado (“deteriorações consideráveis”).
Assim, também pela falta de natureza normativa da “interpretação” indicada como objeto do recurso, não pode o mesmo ser conhecido.
4. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
(...)»
5. Ora, nada na reclamação apresentada permite contestar o acerto da decisão sumária proferida.
Em primeiro lugar, o problema levantado pela então recorrente no requerimento de recurso de constitucionalidade apresentado não tem conteúdo normativo e, como tal, não se configura como uma questão de inconstitucionalidade normativa de que o Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento. Isto porque aquilo que a reclamante pretende ver reapreciado por este Tribunal é o juízo, efetuado pelo tribunal recorrido – o Supremo Tribunal de Justiça – de subsunção de um determinado conjunto de factos (a destruição do soalho e da sua estrutura de suporte, a putrefação do pavimento, entre outros) ao conceito indeterminado “deteriorações consideráveis”, constante do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro.
Como é bom de ver, tal juízo não entra no objeto normativo subjacente aos recursos de constitucionalidade, precisamente porque, como já por diversas vezes teve o Tribunal Constitucional ensejo de afirmar, “não importa cuidar do acerto lógico-jurídico da subsunção do caso sub judice à norma. O que está em causa são os critérios jurídicos autonomizados, genérica e abstratamente referidos pelo julgador para decidir quanto ao acerto constitucional de uma certa norma ou dimensão normativa do direito infraconstitucional, face ao texto constitucional” (v. o Acórdão n.º 551/01, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em segundo lugar, não assiste razão à reclamante quando sustenta que “a questão que foi suscitada no STJ e agora trazida a recurso é, mais palavra menos palavra, substancialmente a mesma.” A inclusão do segmento “no âmbito do exercício de indústria doméstica”, que consta das alegações de recurso apresentadas junto do STJ, mas que reclamante omite no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, está efetivamente longe de ser despicienda. Desde logo, o artigo 1043.º, do Código Civil, para o qual remete o artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, dispõe, no seu n.º 1, que “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato” (itálico nosso). Significa isto que o fim do contrato – in casu, um contrato de arrendamento em que um dos compartimentos do 1.º andar seria utilizado para o exercício de uma indústria doméstica, um salão de cabeleireiro – influi na apreciação das deteriorações que a coisa venha a sofrer. Assim, se acaso estivéssemos perante uma questão de inconstitucionalidade normativa – algo que não se verifica, pelos fundamentos já expostos – estaríamos necessariamente perante uma outra questão de inconstitucionalidade relativamente àquela que foi levantada, pela então recorrente, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Pelo que, não havendo questão de inconstitucionalidade normativa nem tampouco coincidência estrita entre a questão que o tribunal recorrido foi chamado a apreciar e o entendimento que a agora recorrente ambiciona ver examinado, não entra o presente recurso de constitucionalidade nos poderes de cognição do Tribunal Constitucional.
III. Decisão
6. Atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pela reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário concedido nos autos.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.