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Processo n.º 562/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
A., inconformado com a decisão sumária proferida a 27 de setembro de 2012, vem dela reclamar dizendo o seguinte:
«A douta decisão sumária houve por bem não conhecer do objeto do recurso, invocando a circunstância de que a decisão recorrida …não aplicou, todavia, uma tal interpretação das normas do CPP..., tal como referenciadas pelo Recorrente. Tendo entendido que … Diferentemente do pretendido pelo Recorrente, o que resulta do acórdão recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu a reclamação apresentada contra decisão sumária de rejeição do recurso interposto para aquele tribunal) é a consideração expressa de que recurso em apreciação em nada se subsume na previsão do invocado artigo 412, n.ºs 3, al. b) e 4 do CPP pelo que não estando em causa a reapreciação de prova gravada, o prazo para a interposição do recurso é de 20 dias, como resulta do artigo 411., n 1 do mesmo diploma legal ... Considerando, assim, que … o Tribunal da Relação entendeu que o recurso interposto não traduzia impugnação da matéria de facto nos termos previstos no artigo 412 do CPP, não respeitando designadamente o ónus de impugnação previsto nos números 3 e 4 da citada disposição legal. Salvo o devido respeito, a douta decisão sumária acabou por incidir em involuntário equívoco, na consideração dos fundamentos da douta decisão recorrida. Involuntário equívoco que, permissa venia, talvez encontre razão, desde logo, na exígua fundamentação do douto acórdão recorrido que, limitando-se a adotar os fundamentos da douta decisão sumária, então objeto de reclamação, proferiu como fundamento a única afirmação de que, …não estando aqui em causa a reapreciação da prova gravada, o prazo para a interposição do recurso é de 20 dias… tal como apontado pelo Recorrente. Desde logo, salvo sempre o devido respeito, é possível constatar o involuntário equívoco perpetrado pela douta decisão sumária, em razão de que, em momento algum o douto acórdão recorrido - assim como a douta decisão sumária reclamada, que lhe deu origem, por ele adotada - consignou expressamente em seu texto, que não estavam atendidos os ónus de impugnação da matéria de facto. Até porque, para manifestar tal entendimento, antes teria sido necessário dar cumprimento ao disposto pelo artigo 417, n.º 3, do CPP, ou seja, só após não atendido um eventual convite ao aperfeiçoamento, poder-se-ia chegar a tal conclusão, bem ainda de forma expressa. E ainda assim, salvo sempre o devido respeito, teria o douto acórdão recorrido que fazer expressa alusão, igualmente, à falta de motivação do recurso, no que respeita à matéria de facto, como fundamento da sua rejeição, atento o disposto pelo artigo 414, n.º 2, do CPP, na sua parte final. Salvo sempre o devido respeito, o próprio uso da expressão … não estando aqui em causa a reapreciação da prova gravada … por si só, afasta a conclusão a que chegou, por involuntário equívoco, a douta decisão sumária. O douto acórdão recorrido não usou a expressão …não estando aqui em causa a reapreciação da prova … mas sim afirmou que não estaria em causa a reapreciação da … prova gravada... Salvo sempre o devido respeito, dúvida não há que é naturalmente diverso, afirmar-se não estar em causa a reapreciação da prova – situação em que está completamente excluído, o recurso em matéria de facto – do que afirmar-se não estar em causa a reapreciação da prova gravada situação em que este recurso existe, mas apenas não é decidido com fundamento em provas objeto de gravação. Assim, se o douto acórdão recorrido consignou a expressão reapreciação da prova gravada ao invés de reapreciação da prova, na realidade não excluiu o recurso em matéria de facto, mas entendeu por bem não decidi-lo com fundamento nas declarações gravadas do arguido, em sede de audiência de cúmulo jurídico, tendo por tal razão incidido na inconstitucionalidade material das apontadas disposições do CPP, tal como referenciado pelo Recorrente, salvo sempre o devido respeito. Salvo sempre o devido respeito, o douto acórdão recorrido não emitiu consideração expressa, de que o recurso em apreciação em nada se subsume na previsão do invocado artigo 412, n.º 3, al. b) e 4 do CPP, conforme concluiu a douta decisão sumária. Limitou-se o douto acórdão recorrido a adotar, como seus, os fundamentos da douta decisão sumária proferida no Tribunal da Relação, como é possível verificar do seu texto, quando consignou: ... Porém, o sem fundamento desta é por demais evidente, sendo as razões para assim se concluir aquelas que exaustivamente já se expuseram na respetiva decisão sumária, as quais aqui se reproduzem: … Reiterando, novamente, na sua parte final, a exclusiva adoção das razões invocadas na douta decisão sumária, nos seguintes termos: ... E porque assim se continua a entender, sendo de todo descabida a arguição agora apresentada, a qual em nada se subsume na previsão do invocado artigo 412, n.ºs 3, al. b) e 4 do C.P.P., acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em ratificar a decisão sumária em causa, rejeitando o recurso interposto pelo arguido... Salvo sempre o devido respeito, como se verifica do texto do douto acórdão recorrido, este não emitiu ..consideração expressa de que o recurso em apreciação em nada se subsume na previsão do invocado artigo 412., n9s 3, aI. b) e 4 do CPP... como concluiu, por involuntário equívoco, a douta decisão sumária. Ao reportar-se ao referido artigo 412, n.ºs 3, al. b) e 4 do CPP, o douto acórdão recorrido pronunciou-se sobre a arguição de inconstitucionalidade material suscitada pelo Recorrente, na reclamação - … a arguição agora apresentada... - e não ao … recurso em apreciação..., como entendeu, por involuntário equívoco, a douta decisão sumária. O próprio uso da expressão … arguição agora apresentada, a qual… nunca se poderia referir ao … recurso em apreciação… como entendeu a douta decisão sumária, salvo sempre o devido respeito. Assim, salvo sempre o devido respeito, a douta decisão sumária, ante a já referenciada total exiguidade, da fundamentação do douto acórdão recorrido, acabou por incidir em involuntário equívoco, extraindo do texto do douto acórdão, um fundamento que dele não constou expressamente. Se o douto acórdão recorrido tivesse realmente considerado não satisfeito o ónus de impugnação da matéria de facto, como entendeu a douta decisão sumária, porque simplesmente não o disse expressamente, utilizando expressões como as de que …o recurso não pode ser decidido em matéria de facto, porque não atendido o ónus de impugnação previsto pelo artigo 412 do CPP…? Porque então não foi, antes, dado cumprimento ao disposto pelo artigo 417, n.º 3, do CPP? Porque no texto da douta decisão sumária, por ele integralmente adotada e reafirmada, o artigo 412 do CPP, nem mesmo é mencionado? Assim, salvo sempre o devido respeito, douta decisão sumária incidiu em involuntário equívoco, acabando por transportar a referência feita à arguição de inconstitucionalidade material suscitada (…arguição agora apresentada...), para o recurso anteriormente interposto. E ainda que se pudesse cogitar de uma eventual razoável dúvida, quanto ao alcance do teor da exígua fundamentação, do douto acórdão recorrido, salvo sempre o devido respeito, esta deve ser resolvida em favor do direito ao recurso, do recorrente. Com a finalidade de não alongar em demasia a presente, o recorrente pede a devida vénia de Vossas Excelências, para dar aqui, por reproduzidos, os termos da sua reclamação apresentada no Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, que afasta eventual dúvida sobre o alcance do douto acórdão recorrido, que é o apontado no recurso interposto, salvo sempre o devido respeito. Por tudo quanto exposto, pede o Recorrente que, ponderando novamente a questão, por via da presente, seja esta atendida, revogando a douta decisão sumária, Vossas Excelências possam conceder a legal oportunidade de apresentação das suas alegações, decidindo pelo conhecimento do recurso interposto que, salvo o devido respeito, acredita - venha a merecer provimento, com o reconhecimento da suscitada inconstitucionalidade material, das referenciadas disposições do CPP, efetivamente aplicadas pelo douto acórdão recorrido, nos termos apontados no recurso, salvo sempre o devido respeito.»
2. A decisão reclamada, no que ora importa, tem o seguinte teor:
«O Recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional invocando a alínea b) do artigo 70.º, n.º1 da LTC.
Nos termos desta disposição legal, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Indispensável é, assim, que a norma, ou o critério normativo cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional não prevê o «recurso de amparo» ou «queixa constitucional». Tendo natureza estritamente normativa, o recurso de constitucionalidade não contempla a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida, razão pela qual não pode conhecer-se do presente recurso.
Na verdade, como fundamentação do recurso de constitucionalidade interposto, o Recorrente invoca que o acórdão recorrido «interpretou e aplicou os artigos 411.º, n.º 4 e 412.º, n.º 3, “b)” e n.º 4, ambos do Código de Processo Penal, no sentido de que “…No recurso em que se especifica como incorretamente julgados concretos pontos de facto, de um douto acórdão que fixou pena em sede de cúmulo jurídico, nos termos do artigo 472.º, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal, a especificação das declarações gravadas do arguido, como concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não implica a “reapreciação de prova gravada”, mantendo-se o prazo de 20 dias previsto pelo nº 1, do artigo 411.º, do CPP, para a sua interposição…”».
A decisão recorrida não aplicou, todavia, uma tal interpretação das normas do CPP.
Diferentemente do pretendido pelo Recorrente, o que resulta do acórdão recorrido (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que decidiu a reclamação apresentada contra decisão sumária de rejeição do recurso interposto para aquele tribunal) é a consideração expressa de que o recurso em apreciação «em nada se subsume na previsão do invocado artigo 412.º, n.ºs 3, al. b) e 4 do CPP», pelo que, «não estando em causa a reapreciação de prova gravada, o prazo para a interposição do recurso é de 20 dias, como resulta do artigo 411.º, n.º 1» do mesmo diploma legal. Numa decisão cuja bondade não cabe aqui avaliar por não competir ao Tribunal Constitucional sindicar o mérito das decisões proferidas pelos outros tribunais, o Tribunal da Relação entendeu que o recurso interposto não traduzia impugnação da matéria de facto nos termos previstos no art. 412.º do CPP, não respeitando designadamente os ónus de impugnação previstos nos números 3 e 4 da citada disposição legal (especificação dos concretos factos considerados incorretamente julgados, das concretas provas que impõem decisão diversa e das provas a renovar, por um lado, e, por outro, indicação das passagens das provas gravadas em que se funda a impugnação). Assim, diferentemente do pretendido pelo recorrente, não foi por considerar que num «recurso em que se especifica como incorretamente julgados concretos pontos de facto, de um acórdão que fixou pena de cúmulo jurídico (…), a especificação das declarações gravadas do arguido, como concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não implica reapreciação da prova gravada», que o Tribunal recorrido considerou o prazo aplicável para a interposição do recurso como sendo o previsto no n.º 1 do artigo 411.º CPP e não o previsto no seu n.º 4, como pretendia o recorrente. A razão pela qual o Tribunal assim decidiu residiu precisamente na consideração do pressuposto inverso ao invocado pelo recorrente, concretamente, na consideração de que não se impugnava devidamente a matéria de facto, pelo que o prazo do recurso não podia deixar de ser o prazo normal.
Desta forma, é a uma interpretação e aplicação dos arts. 411.º e 412.º do CPP, com a qual não se conforma, que o recorrente imputa a desconformidade constitucional, e não ao ordenamento jurídico infraconstitucional que toma por violado como, de resto, reconhece na reclamação apresentada ao Tribunal da Relação ao concluir que «ainda que este Venerando Tribunal da Relação venha, eventualmente, a entender que as apontadas declarações gravadas do arguido, não têm a virtualidade de justificar a alteração da matéria de facto, nos termos requeridos no recurso (…) não pode deixar de considerar que constituem um meio de prova, que implica necessariamente a reapreciação da prova gravada, razão porque deve ser revogada a douta decisão sumária, que decidiu pela sua rejeição» (fls. 1399).
Impõe-se, assim, concluir que a ratio do decidido não encontra base de sustentação na interpretação das normas invocada pelo recorrente como violadora da Constituição».
3. O Exmo. Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por falta de verificação do requisito da aplicação pelo tribunal recorrido, como razão de decidir, das normas indicadas no requerimento de interposição.
No recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional o recorrente requereu a apreciação da inconstitucionalidade material dos artigos 411.º, n.º 4 e 412.º, n.º 3, b) e n.º 4 do Código Processo Penal (CPP) no sentido de que no recurso em que se especifica como incorretamente julgados concretos pontos de facto, de um acórdão que fixou pena em sede de cúmulo jurídico, nos termos do artigo 472.º, n.os 1 e 2 do Código Penal, a especificação das declarações gravadas do arguido, como concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, não implica a reapreciação de prova gravada, mantendo-se o prazo de 20 dias previsto pelo n.º 1, do artigo 411.º do CPP, para a sua interposição.
Na decisão reclamada concluiu-se que o tribunal a quo não aplicou, como ratio decidendi, uma tal interpretação das normas do CPP indicadas. Antes tendo aplicado estritamente o artigo 411.º, n.º 1 do CPP, por entender não estar em causa a reapreciação da prova gravada.
Resta, portanto, concluir: sendo um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional «a aplicação pelo tribunal recorrido, como ratio decidendi, da norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada, considerada esta norma na sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, mediatizada pela decisão recorrida» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2002, in www.tribunalconstitucional.pt), não pode ser admitido o recurso interposto, por no caso, o recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade de uma interpretação das normas do CPP invocadas que não corresponde à aplicada pelo tribunal a quo.
Em face do exposto, impõe-se confirmar a decisão reclamada.
A reclamação deduzida carece de fundamento.
III – Decisão
5. Assim, acordam, em conferência, indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido de não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelo Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.