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Processo n.º 617/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., Lda., Reclamante nos presentes autos em que figura como Reclamado o Ministério Público, inconformada com a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional, veio dizer o seguinte:
“A Arguida apresentou em 12 de dezembro de 2011, impugnação judicial, os termos do preceituado no artigo 59° do Dec. Lei n.° 433/82 de 27 de outubro, da decisão aplicada pelo Ministério do Ambiente e Ordenamento do Território; A referida impugnação Judicial/Recurso foi remetida ao Tribunal Judicial de Guimarães para competente decisão judicial; O Mmo. Juiz do Tribunal a quo julgou totalmente improcedente o pedido apresentado pela Arguida, tendo proferido de imediato sentença; A Arguida não se conformando com tal decisão datada de 10 de abril de 2004, apresentou em 03 de maio de 2012, as suas Motivações de Recurso; Sucede que o Mmo. Juiz, considerou o recurso interposto inadmissível, alegando a sua extemporaneidade; A Recorrente não se conformando Reclamou para o Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães; Alegando para o efeito que existe jurisprudência, no sentido, de que o prazo de interposição do recurso da sentença em processo contra ordenação é do previsto no C. Processo Penal, ou seja 20 dias; Nomeadamente, Acórdão da Relação de Guimarães de 27-06-2011, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 27/2006; Sendo que este último declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.° 1 do artigo 74.° do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de outubro; Em resposta à reclamação apresenta veio o Presidente do Tribunal da Relação afirmar que a mesma não poderia ser atendida, fundamentando que: A decisão por aquele proferida em 27-06-2011, e firmada pelo Acórdão Constitucional supra mencionado, teve como pressuposto que o Tribunal Constitucional considerar o prazo para recurso era de 2 dias, e tal pressuposto estava errado; Mais afirma que o alcance do refendo acórdão será apenas e tão só, que o prazo de resposta ao recurso não pode ser inferior ao próprio recurso; A Recorrente não se conformando com resposta à reclamação, interpôs Recurso para o Tribunal Constitucional. Alegando: Que a norma constante artigo 74° do R.G.C.O foi declarada inconstitucional pelo acórdão 27/2006 do Tribunal Constitucional; Que existe Jurisprudência, no sentido de que o prazo de interposição do recurso da sentença em processo contra ordenação é do previsto no C. Processo Penal - Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2011; A referida interposição e recurso foi rejeitada pelo Tribunal Recorrido, com a seguinte fundamentação; A Recorrente não identifica as normas que considera inconstitucionais, não fundamentando assim o seu pedido de recurso; Mais refere que a jurisprudência invocada em sede de Reclamação e posterior interposição de recurso, assenta num pressuposto erradamente considerado pelo seu subscritor; A aqui Reclamante não aceita nem pode aceitar o conteúdo do despacho que indefere a sua pretensão de recurso: Vejamos, A decisão declarada inconstitucional, emana do mesmo órgão que profere a presente decisão; Uma vez que, o Relator da resposta à Reclamação apresentada pela Recorrente, é o mesmo que subscreve a decisão que indefere a interposição de Recurso para o Tribunal Constitucional; Bem como é o subscritor da decisão, que fundamenta a alegação da Recorrente, ou seja o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 2006; Salvo o devido respeito, tal questão poderá pôr em crise o Princípio da Imparcialidade, uma vez que o Relator do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2011, refere que alterou a sua posição relativamente à inconstitucionalidade do artigo 74° do R.G.C.O.; Pese embora o venerando Desembargador, fundamentar que à data atendeu a sua decisão numa análise errónea, da interpretação dada à questão pelo Tribunal Constitucional; Certo é que a jurisprudência, faz fé em juízo; Mais, invocando os princípios Constitucionalmente consagrados, e como tão bem relata o Acórdão, Face aos princípios da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, corolários do princípio do estado de direito (artigo 2° da CRP) o prazo aplicável à interposição do recurso, em processo de contraordenação, deve ser o mais favorável ao arguido, ou seja o de 20 dias; Não o fazendo, o Tribunal Reclamado põem em causa o direito à defesa da Reclamante, ferindo seriamente os seus interesses; Não pode igualmente a Reclamante aceitar a alegação de falta de fundamentação, uma vez que no seu pedido de recurso indicou as normas que considera estarem em contradição com a decisão proferida, bem como a norma declarada inconstitucional. Nomeadamente, e como se pode aferir na interposição de recurso, alega a Reclamante que foi aplicada pelo Tribunal Recorrido, norma que havia já sido declarada inconstitucional - artigo 74.º n.° 1 e 4 do RGCO, no ano de 2006; inconstitucionalidade essa que foi acolhida pelo Tribunal Recorrido - Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2011, como supra se descreveu e alegou. Assim entende a Reclamante que as constantes posições contraditórias, tomadas nos presentes autos, ferem seriamente os seus interesses impedindo de forma reiterada o seu Direito à Defesa e o seu Direito ao Recurso; Acima de tudo a incerteza jurídica, que o Tribunal de 2.ª instância gerou, é manifestamente inconstitucional, por violação dos direitos supra mencionados de Defesa, Recurso e segurança Jurídica; Nesse sentido e por todo o exposto, desde já se requer que seja revogado o despacho que indefere a interposição de recurso, bem como seja atendida a questão suscitada da imparcialidade do Venerando Desembargador, subscritor da referida decisão.”
2. O despacho reclamado tem o seguinte teor:
“Inconformada com a decisão que lhe desatendeu a reclamação que apresentou nos termos do artigo 405° do CPP, em que sustentou que o prazo para o recurso em processo de contraordenação é de 20 dias e não o de 10 previsto no artigo 74°, n.°s 1 e 4 do RGCO, louvando-se na jurisprudência firmada no Acórdão do Tribunal Constitucional n° 27/ 2006 e no decidido, em sede de reclamação, pelo presidente deste Tribunal da Relação de Guimarães em 27-06-2011 (e não num acórdão), vem a acoimada A., Lda. interpor recurso para aquele Tribunal, afirmando que «a incerteza jurídica resultante das contraditórias decisões do Tribunal de 2.ª instância são manifestamente inconstitucionais, por violação do direito de recurso e da proibição da não defesa, consagrados no artigo 20º e 2° da Constituição da República Portuguesa». Nos termos do artigo 76°, n° 1 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respetivo recurso e, neste caso, ao presidente da Relação, de harmonia com o disposto no n° 3 do artigo 70°. Ora como tem repetidamente sublinhado o Tribunal Constitucional, para que possa conhecer do recurso para ele interposto é necessário que o recorrente esclareça, tanto perante o tribunal recorrido como no requerimento do recurso, qual a interpretação de determinada norma ou normas — na espécie o artigo 74° do RGCO — suscetível de configurar uma questão de constitucionalidade normativa, idónea a constituir objeto de um recurso de constitucionalidade. Sendo certo que o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade do preceito contido no artigo 74°, n.°s 1 e 4 da RGCO, se interpretados no sentido de que o prazo para a resposta ao recurso poderia ser superior ao prazo de interposição do próprio recurso, a verdade é que jamais o Tribunal sustentou que o prazo para recorrer fosse o de 20 dias. Como se deixou explicado na decisão ora recorrida, já após a publicação do Acórdão do TC n.º 27/2006 veio o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão Uniformizador n.º 1/2009, firmar jurisprudência no sentido de que, em processo de contraordenação, é de dez dias quer o prazo para a interposição do recurso para a Relação quer o de apresentação da respetiva resposta, nos termos dos artigos 74°, n.ºs 1 e 4 e 41° do Regime Geral das Contraordenações. Tal jurisprudência não foi considerada inconstitucional, nem verdadeiramente a recorrente se lhe refere. Assim sendo, não tendo a recorrente identificado com precisão o sentido da norma que considera inconstitucional e que pretende submeter a julgamento, de modo a que o TC possa enunciar a sua decisão, rejeita-se o recurso interposto, ao abrigo do estatuído nos artigos 70°, n° 1, alíneas b) e g) e 75°-A, n° 2 da LOFPTC.”
3. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
4. Notificada para se pronunciar sobre a eventualidade de o recurso não ser objeto de conhecimento por falta de idoneidade do seu objeto, a Reclamante, reiterando a fundamentação anteriormente expendida, veio agora identificar o objeto do recurso como sendo a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 74.º, n.os 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. No Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade com fundamento na não indicação pelo recorrente do sentido da norma que considera inconstitucional.
Inconformada, a Recorrente reclamou para o Tribunal Constitucional da não admissão do recurso de inconstitucionalidade interposto.
Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
6. No que ora importa reter, o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade refere o seguinte:
“Entende a Recorrente, salvo o devido respeito, que a decisão ora proferida, é manifestamente inconstitucional; Com efeito a Arguida apresentou no processo em epígrafe que correu termos no 3° Juízo Criminal o Tribunal, as suas motivações de recurso nos 20 dias subsequentes à decisão;
O Tribunal de 1.ª instância considerou o recurso interposto inadmissível, alegando extemporaneidade, face à norma constante do artigo 74.º n.° 1 e 4 do RGCO, ou seja, que o prazo para a interposição do recurso era de 10 dias;
Acontece que a norma constante artigo 74.º do R.G.C.O foi declarada inconstitucional pelo acórdão n.º 27/2006 do Tribunal Constitucional;
inclusivé existe Jurisprudência no sentido de que o prazo de interposição do recurso da sentença em processo contra ordenação é do previsto no C. Processo Penal;
Nomeadamente Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2011;
Que entende que Face aos princípios da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, corolários do princípio do estado de direito (artigo 2° da CRP) o prazo aplicável à interposição do recurso, em processo de contraordenação, deve ser o mais favorável ao arguido, ou seja o de 20 dias.
Decisão agora contrariada, pelo referido Tribunal de Segunda Instância, que refere erradamente que o pressuposto fixado pelo Tribunal Constitucional era o de fixar o prazo de recurso em 20 dias;
Ora tal decisão além de contraditória, fere seriamente os interesses da Recorrente, que se baseou em decisão e jurisprudência assentes, para elaborar a sua defesa (recurso);
Ora a incerteza jurídica resultante das contraditórias decisões do Tribunal de 2.ª Instância são manifestamente inconstitucionais, por violação do direito de recurso e da proibição da não defesa consagrados nos artigos 20° e 2° da Constituição da República Portuguesa”
7. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional tem natureza estritamente normativa, não contemplando a apreciação da conformidade constitucional da decisão judicialmente proferida. Em conformidade, os recursos de constitucionalidade interpostos de decisões de outros tribunais apenas podem ter por objeto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com caráter de generalidade, e nessa medida suscetíveis de aplicação a outras situações, independentemente, pois, das particularidades do caso concreto. A respetiva admissibilidade depende, assim, da identificação da interpretação ou critério normativos - uma regra abstratamente enunciável vocacionada para uma aplicação para lá do caso concreto – cuja desconformidade constitucional se suscita.
8. Ora tal não ocorre no presente recurso, onde a Recorrente começa por situar a inconstitucionalidade na própria decisão proferida que classifica de «manifestamente inconstitucional». De seguida, identificando jurisprudência que considera ser de sentido contrário à decisão recorrida, onde inclui jurisprudência proferida pelo tribunal recorrido, conclui que a «incerteza jurídica resultante das contraditórias decisões do Tribunal de 2ª Instância são manifestamente inconstitucionais, por violação do direito de recurso e da proibição da não defesa consagrados nos artigos 20º e 2º da Constituição da República Portuguesa».
A pretensão assim formulada não identifica nenhuma interpretação normativa, limitando-se a remeter para o resultado da interpretação efetuada pelo tribunal. Desta forma, o presente recurso não apresenta no seu objeto as características de «normatividade» indispensáveis à realização de um controlo de constitucionalidade.
De nada vale a identificação do objeto do recurso por referência à norma constante do artigo 74.º, n.os 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, feita pela Reclamante em resposta à notificação que lhe foi feita já neste Tribunal para se pronunciar tendo em vista a possibilidade de o recurso não ser admitido por falta de conteúdo normativo, não constituindo este o meio ou tempo adequados para suprir a inidoneidade do seu objeto, nem bastando, para o efeito, a mera indicação de um preceito legal.
Cumpre, assim, indeferir a reclamação apresentada, confirmando-se a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade interposto, ainda que por fundamento diferente do invocado na decisão reclamada.
9. Sem prejuízo, – tendo em conta que o despacho reclamado invoca ainda a não verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso quando interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC - será ainda oportuno salientar que o sentido do Acórdão n.º 27/2006 do Tribunal Constitucional, que a Recorrente invoca em sustentação da sua pretensão, não coincide com a interpretação que do mesmo apresenta. Na verdade, o que estava em causa naquele acórdão era saber se a existência de dois prazos processuais distintos para motivar e responder no processo de contraordenação violava o princípio da igualdade na dimensão de igualdade de armas, à luz do artigo 13.º da Constituição República Portuguesa, o que manifestamente não integra a questão que se coloca nos presentes autos traduzida na determinação de qual o prazo para a interposição de recurso em processo de contraordenação (se o fixado na lei especial que estabelece o regime do processo de contraordenações, como decidido pelo tribunal recorrido, se o prazo mais largo fixado no Código de Processo Penal para os processos comuns, como pretendido pela recorrente).
III - Decisão
10. Pelo exposto, indeferindo-se a reclamação apresentada, confirma-se a não admissão do recurso de inconstitucionalidade interposto.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.