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Processo n.º 37/12
Plenário
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Os deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores do grupo parlamentar do Partido Socialista requerem a declaração, com força obrigatória geral, «da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro – “Orçamento do Estado para 2012”, por violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º e no artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa».
O pedido tem os seguintes fundamentos:
«1. A Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2012, como decorre do seu artigo 1.º.
Dispõe o artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro:
(…)
3. O normativo acima plasmado colide com os seguintes preceitos constitucionais e/ou legais:
i. A Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º que as Regiões Autónomas têm o poder de “dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas”.
ii. O Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, “lei de valor reforçado”, na redacção da Lei n.º 2/2009, de 12 de Janeiro, estabelece no artigo 19.º, n.º 1 que “A Região dispõe, para as suas despesas, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, das receitas fiscais nela cobradas ou geradas, de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com o princípio da solidariedade nacional, bem como de outras receitas que lhes sejam atribuídas”.
iii. Acresce que o n.º 2, alínea b), do mesmo artigo refere que “Constituem, em especial, receitas da Região:
- Todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados no seu território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo”.
iv. A Lei de Finanças das Regiões Autónomas – Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de Fevereiro – também “lei com valor reforçado”, dispõe no artigo 15.º n.º 1 que “De harmonia com o disposto na Constituição e nos respectivos Estatutos Político- Administrativos, as Regiões Autónomas têm direito à entrega pelo Governo da República das receitas fiscais relativas aos impostos que devam pertencer-lhes, nos termos dos artigos seguintes, bem como a outras receitas que lhes sejam atribuídas por lei.”
v. Ainda em sede da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, cumpre mencionar o disposto no artigo 19.º alínea a), que estabelece que “Constitui receita de cada Região Autónoma o imposto sobre o rendimento das pessoas singulares:
- Devido por pessoas singulares consideradas fiscalmente residentes em cada Região, independentemente do local em que exerçam a respectiva actividade;”
vi. Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa, respectivamente no artigo 238.º (“Património e finanças locais”), dispõe no n.º 1, o seguinte:
“As autarquias locais têm património e finanças próprios.”
vii. Acrescentando o n.º 2 do artigo supra referido o seguinte:
“O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.”
viii. Por sua vez, a Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, na redacção da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro), diploma que consagra o preceito constitucional acima referido, dispõe na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º (“Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios”) o seguinte:
“A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objectivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
c) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respectiva circunscrição territorial, calculada sobre a respectiva colecta liquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.”
ix. Acresce que o artigo 10.º da Lei das Finanças Locais, sob a epígrafe “Receitas municipais”, dispõe na alínea d) o seguinte:
“Constituem receitas dos municípios:
d) O produto da participação nos recursos públicos determinada nos termos do disposto nos artigos 19.º e seguintes;”
x. Por fim, estatui o n.º 1 do artigo 25.º da Lei das Finanças Locais, o qual tem como epigrafe 'Transferências financeiras para os municípios”, o seguinte:
“São anualmente inscritos no Orçamento do Estado os montantes das transferências financeiras correspondentes às receitas municipais previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 19.º.”
4. Assim, atendendo a que o ordenamento jurídico vigente consagra, expressamente, a atribuição às Regiões das receitas de IRS nelas geradas, não se compreende, nem se pode aceitar que o Orçamento do Estado ouse dispor de receitas da titularidade da Região, atribuindo-as a sujeito jurídico distinto, mesmo que se trate de municípios da Região.
5. Nestes termos, a norma vertida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro, consubstancia, simultaneamente, uma inconstitucionalidade material por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j) e artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa e uma ilegalidade por violação dos normativos do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, Lei das Finanças das Regiões Autónomas e Lei das Finanças Locais supra mencionados».
2. Notificada para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos, a Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente e fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, procedeu-se à distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II. Fundamentação
1. Os requerentes pedem a declaração, com força obrigatória geral, «da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro – “Orçamento do Estado para 2012”, por violação do disposto na alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º e no artigo 238.º da Constituição da República Portuguesa».
A disposição legal em causa tem a seguinte redacção:
«Artigo 212.º
Norma interpretativa
Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, alterada pelas Leis n.ºs 22-A/2007, de 29 de Junho, 67-A/2007, de 31 de Dezembro, 3-B/2010, de 28 de Abril, e 55-A/2010, de 31 de Dezembro, a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega às autarquias locais».
Face ao teor do requerimento, é de concluir que a questão de constitucionalidade posta tem a ver com a conformidade constitucional do artigo 212.º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, na parte em que dispõe que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma». Não tem a ver propriamente com a parte da norma que estatui que cabe ao «Estado proceder directamente à sua entrega às autarquias locais». A argumentação dos requerentes centra-se toda ela na dedução daquela participação à receita de IRS cobrada na região autónoma, uma vez que entendem que «o ordenamento jurídico vigente consagra, expressamente, a atribuição às Regiões das receitas [de todas as receitas] de IRS nelas geradas». Uma argumentação deste tipo não deixa sequer margem para a questão de saber se a Constituição da República Portuguesa (CRP) permite ou não a entrega directa do Estado às autarquias locais.
2. O artigo 212.º da Lei do Orçamento de Estado para 2012, ao determinar que, para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei das Finanças Locais, «a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respectiva região autónoma», reproduz o conteúdo normativo do artigo 185.º-A, aditado pela Lei n.º 60-A/2011, à Lei do Orçamento de Estado para 2011.
Este artigo 185.º-A da Lei do Orçamento de Estado para 2011 já foi objecto de um pedido de fiscalização abstrata sucessiva, também por um grupo de deputados à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores (Processo n.º 910/11), tendo sido então convocados fundamentos perfeitamente idênticos aos que agora constam do presente pedido. A questão de constitucionalidade foi apreciada e decidida no Acórdão n.º 412/12 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) nos seguintes termos:
«7. A Lei n.º 60-A/2011 veio aditar ao Orçamento de Estado para 2011 o artigo 185.º-A que, segundo a própria epígrafe, é uma norma interpretativa. Interpretativa da alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º (Repartição de recursos públicos entre o Estado e os municípios) da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei n.º 7/2007, de 15 de janeiro, cuja redação é a seguinte:
«1 - A repartição dos recursos públicos entre o Estado e os municípios, tendo em vista atingir os objetivos de equilíbrio financeiro horizontal e vertical, é obtida através das seguintes formas de participação:
(…)
c) Uma participação variável de 5% no IRS, determinada nos termos do artigo 20.º, dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS».
O artigo 20.º (Participação variável no IRS) determina, para o que agora releva, que:
«1 - Os municípios têm direito, em cada ano, a uma participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, relativa aos rendimentos do ano imediatamente anterior, calculada sobre a respetiva coleta líquida das deduções previstas no n.º 1 do artigo 78.º do Código do IRS.
2 - A participação referida no número anterior depende de deliberação sobre a percentagem de IRS pretendida pelo município, a qual deve ser comunicada por via eletrónica pela respetiva câmara municipal à Direção-Geral dos Impostos, até 31 de dezembro do ano anterior àquele a que respeitam os rendimentos.
3 - A ausência da comunicação a que se refere o número anterior ou a receção da comunicação para além do prazo aí estabelecido equivale à falta de deliberação.
(…)
7 - O produto da participação variável no IRS é transferido para os municípios até ao último dia útil do mês seguinte ao do respetivo apuramento pela Direção-Geral dos Impostos».
Por seu turno, o artigo 63.º (Adaptação às Regiões Autónomas) da mesma lei dispõe, no n.º 3, que:
«A aplicação às Regiões Autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º da presente lei efetua-se mediante decreto legislativo regional».
A Lei n.º 60-A/2011, ao aditar o artigo 185.º-A à Lei do Orçamento de Estado para 2011, estabelece que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma, devendo o Estado proceder diretamente à sua entrega às autarquias locais». Significa isto que uma parte das receitas de IRS cobradas ou geradas nas regiões é entregue diretamente pelo Estado às autarquias locais da região autónoma respetiva e não à região autónoma.
Aquela norma está inserida no Orçamento de Estado para 2011, apontando no sentido de se tratar de uma disposição orçamental com vigência anual (artigo 106.º, n.º 1, da CRP), o que sai reforçado por o seu conteúdo ter sido replicado no artigo 212.º do Orçamento de Estado para 2012, aprovado pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro. Independentemente da questão de saber se a norma em causa tem natureza interpretativa ou se é apenas parcialmente interpretativa, por dispor que a «participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma», o conteúdo daquele artigo 185.º-A não coincide com o do artigo 63.º, n.º 3, da Lei das Finanças Locais, nos termos do qual a aplicação às regiões autónomas do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 19.º e no artigo 20.º desta lei se efetua mediante decreto legislativo regional. A razão de o Tribunal ter decidido não declarar a inconstitucionalidade dos artigos 19.º, n.º 1, alínea c), 20.º e 59.º da Lei das Finanças Locais, na sua aplicação aos Municípios da Região Autónoma da Madeira, assentou precisamente no estatuído naquele artigo 63.º, n.º 3, por fazer depender da «vontade expressa dos órgãos regionais, plasmada num decreto-legislativo regional» a entrega aos seus municípios da participação no IRS (Acórdão n.º 499/2008, já citado. Vai no mesmo sentido um Acórdão recente do Supremo Tribunal Administrativo, tirado em 28-06-2012 no Processo 0272/12, disponível em www.dgsi.pt).
A questão de constitucionalidade, tal como posta pelos requerentes, não tem a ver fundamentalmente com a parte da norma que se refere à entrega por parte do Estado da participação das autarquias locais da região autónoma respetiva no IRS. Tem antes a ver com a conformidade constitucional do artigo 185.º-A da Lei do Orçamento de Estado para 2011, na parte em que dispõe que «a participação variável de 5 % no IRS a favor das autarquias locais das regiões autónomas é deduzida à receita de IRS cobrada na respetiva região autónoma», face ao disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP.
7.1. A questão de constitucionalidade não é nova, se atentarmos no Parecer da Comissão Constitucional n.º 28/78, mediante o qual não houve pronúncia pela inconstitucionalidade de um Decreto da Assembleia da República sobre «Finanças locais» (Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7, 1980, p. 3 e ss.):
«19. A primeira questão que se pode suscitar é a de saber se ao atribuir aos municípios a totalidade do produto de certos impostos diretos cobrados na respetiva circunscrição e ao fazer participar a totalidade dos municípios numa determinada percentagem de outros impostos diretos cobrados no conjunto do país, o Decreto n.º 183/I não viola o preceituado na alínea f) do n.º 1 do artigo 229.º da Constituição [alínea j) do n.º 1 do artigo 227.º].
Esta última disposição determina que, entre as atribuições das regiões autónomas, a definir nos respetivos estatutos, se encontra a de «dispor das receitas fiscais nelas cobradas e de outras que lhes sejam atribuídas e afetá-las às suas despesas».
Ao atribuir diretamente aos municípios certas receitas fiscais cobradas nas regiões autónomas, estar-se-ia, assim, a subtrair a estas a faculdade de disposição que lhes é assegurada pela Lei Fundamental.
Como resulta da própria letra do artigo 229.º [227.º], é nos estatutos das regiões autónomas que se há de procurar a «definição» das atribuições nele enunciadas.
(…)
Verifica-se, assim, que o poder de disposição das receitas fiscais atribuído às regiões autónomas pelo artigo 229.º [227.º] foi sempre entendido como não prejudicando o regime das finanças locais a instituir posteriormente.
(…)
O problema reduz-se, assim, a saber como pode o Estado satisfazer simultaneamente o direito das regiões a dispor das receitas fiscais nelas cobradas e o direito dos municípios a participar nas receitas provenientes de impostos diretos.
Mas, quanto a esta questão, parece não poder levantar-se qualquer dúvida.
O direito atribuído às regiões não pode deixar de se encontrar negativamente delimitado pelo direito atribuído aos municípios.
É que, enquanto o artigo 229.º [227.º] se refere genericamente a todas as receitas fiscais, o artigo 255.º [254.º] se refere especificamente a apenas uma parte de certas receitas fiscais, os impostos diretos.
Nestes termos, às regiões autónomas cabe dispor das receitas fiscais nelas cobradas, salvo daquela parte destas que se destina a assegurar a participação dos municípios nas receitas provenientes de certos impostos, nos termos da Constituição e da lei».
Por outro lado, é reiterado o entendimento doutrinal de que um dos limites do direito de disposição regional das receitas fiscais (para afetação às despesas das regiões) decorre do direito das autarquias locais (designadamente os municípios) a receitas fiscais próprias (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., anotação ao artigo 227.º, ponto XXVI., Paz Ferreira, ob. cit., p. 579, e Maria Luisa Duarte, “As Receitas Tributárias das Regiões Autónomas”, Estudos de Direito Regional, Lex, 1997, p. 507).
7.2. Face ao estatuído nos artigos 254.º e 238.º da CRP os municípios participam, por direito próprio, nas receitas provenientes dos impostos diretos e têm finanças próprias. Este imperativo de autonomia financeira das autarquias locais tem, por isso, de se compatibilizar com o poder que as regiões autónomas têm de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas para afetação às suas despesas.
O princípio do Estado unitário (artigo 6.º da CRP) compatibiliza o regime autonómico insular com a autonomia das autarquias locais e, consequentemente, duas diferentes sedes de autonomia financeira – a das regiões autónomas (artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 232.º, n.º 1, da CRP) e a das autarquias locais (artigos 238.º e 254.º da CRP). Às regiões autónomas é garantido o poder de dispor das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas afetando-as às suas despesas, com exclusão das que caibam, por direito próprio, aos municípios.
Reiterando o entendimento que se extrai do Parecer da Comissão Constitucional citado, importa concluir que o direito atribuído às regiões no artigo 227.º, n.º 1, alínea j), não pode deixar de se encontrar negativamente delimitado pelo direito atribuído aos municípios. Assim sendo, o artigo 185.º-A da Lei do Orçamento do Estado para 2011 não viola esta norma constitucional, já que as autarquias locais das regiões autónomas participam no IRS nelas cobrado por direito próprio. Independentemente do disposto nos estatutos das regiões autónomas e na Lei das Finanças das Regiões Autónomas (cf. supra ponto 6.1.).
7.3. Além de não padecer do vício de inconstitucionalidade por violação do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da CRP, o artigo 185.º-A da Lei do Orçamento do Estado para 2011 não desrespeita o artigo 238.º da CRP. Diferentemente do que está subjacente à argumentação dos requerentes no Processo n.º 910/11, a remissão que o n.º 2 deste artigo faz para a lei, estatuindo que o regime das finanças locais será estabelecido por lei, não leva à integração das normas da Lei das Finanças Locais no artigo 238.º, elevando-as a parâmetro de aferição da conformidade constitucional».
Este entendimento, que agora é reiterado, conduz à não declaração, com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro (Orçamento do Estado para 2012), por violação do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alínea j), e 238.º da CRP.
III. Decisão
Face ao exposto, decide-se não declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de Dezembro.
Lisboa, 27 de novembro de 2012.- Maria João Antunes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida de acordo com declaração junta) – Pedro Machete (vencido conforme declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a inconstitucionalidade da norma contida no artigo 212.° da Lei n.° 64-B/2011, de 30 de dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2012), por violação dos artigos 227.°, n.° 1, alínea j) e 229.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
A definição do regime das finanças locais contida na norma do Orçamento de Estado para 2012, em apreciação, interfere no poder de disposição das receitas fiscais cobradas nas regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j) da Constituição e artigos 15.º e 19.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas - Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro).
O problema reside em conciliar o poder das regiões, no caso a Região Autónoma dos Açores, de dispor das receitas fiscais cobradas no seu território, e afetá-las às suas despesas (artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição) com a autonomia financeira reconhecida às autarquias locais (artigo 238.º, n.º 1 da Constituição) e, em especial, o reconhecimento de que os municípios (e portanto também os municípios da região autónoma) têm direito a participar nas receitas provenientes de impostos diretos (artigo 254.º, n.º 1 da Constituição).
A conciliação necessária entre aquelas normas não pode, porém, ser imposta unilateralmente, pela República, no Orçamento de Estado, designadamente através de inserção no mesmo de «norma interpretativa» de preceito constante da Lei de Finanças Locais.
Desde logo porque a necessidade de uma participação efetiva dos órgãos próprios da Região Autónoma dos Açores na solução a adotar decorre do princípio da cooperação, consagrado no artigo 229.º da Constituição, em cujo n.º 3 se inscreve a ideia fundamental de coordenação nas relações financeiras entre a República e as regiões autónomas a justificar um regime de finanças fixado por lei reforçada da Assembleia da República (artigo 164.º, t) da CRP).
Depois, porque a referida compatibilização tem que passar pela correta ponderação de todos os interesses em presença. Sendo a República um dos vértices da relação, na medida em que exerce os poderes tributários de liquidação e cobrança dos impostos em referência, não pode, unilateralmente, atribuir parte da receita gerada e cobrada na região – e que a ela pertence, nos termos do artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição – às autarquias locais. Uma tal solução normativa, independentemente da razoabilidade que possa oferecer, não respeita o direito de interferência das regiões autónomas e ignora o sistema institucional inscrito na Constituição assente na existência de órgãos do Estado, das regiões autónomas e do poder local.
Lisboa, 27 de novembro de 2012.
Maria de Fátima Mata-Mouros
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender que o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição exige que a atribuição com caráter permanente (com exclusão, portanto, de receitas provenientes de impostos extraordinários) a outras entidades – ao Estado ou a autarquias locais - de receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas se faça nos termos previstos nos estatutos político-administrativos e na lei das finanças regionais – diplomas legais com valor reforçado que, em vista da garantia da autonomia regional na sua vertente financeira, e em atenção ao direito constitucionalmente reconhecido de as regiões autónomas disporem de receitas próprias, exigem uma intervenção de tais regiões no respetivo procedimento legislativo (cfr. os artigos 226.º e 229.º, n.º 3, ambos da Constituição) -; a previsão de uma tal atribuição de receitas fiscais a favor dos municípios apenas na lei das finanças locais, precisamente porque se trata de diploma legal aprovado sem qualquer interferência das regiões autónomas, não é suficiente para a legitimar e, ao colocar na disponibilidade exclusiva do legislador ordinário receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas, atenta contra uma dimensão essencial da respetiva autonomia político-administrativa.
Com efeito, o artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (a Lei do Orçamento do Estado para 2012), esclarece, com força de lei interpretativa, que a receita dos municípios correspondente à participação variável até 5% no IRS dos sujeitos passivos com domicílio fiscal na respetiva circunscrição territorial, a determinar nos termos do artigo 20.º da Lei n.º 2/2007, de 15 de janeiro (a Lei das Finanças Locais), é uma quota na receita total do IRS, e não uma quantia ou valor de cálculo correspondente àquela percentagem do valor total da receita de IRS. A diferença é substancial: no primeiro caso – correspondente à interpretação acolhida no citado artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011 – a parte da receita de IRS atribuída aos municípios já não pode ser entregue a outras entidades, em especial às regiões autónomas; no segundo caso, a percentagem considerada funciona como simples base de cálculo do valor a atribuir aos municípios, nada impedindo que a receita de IRS consignada como receita própria de determinadas entidades, nomeadamente das regiões autónomas, continue a ser-lhes entregue.
É exato que, por força do princípio da unidade do Estado, a autonomia regional e a autonomia local não se movem em planos distintos; as duas esferas de autonomia afirmam-se separadamente, em simultâneo e com base na Constituição, frente ao Estado. Daí que, assim como existem relações imediatas entre o Estado e as duas regiões autónomas, também sejam admissíveis, com ressalva das exceções constitucionalmente previstas (como sucede, por exemplo, no caso da tutela administrativa – artigo 227.º, n.º 1, alínea m), da Constituição), relações imediatas entre o Estado e as autarquias locais situadas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira (e, por isso, nada obsta à solução adotada no segmento da noma sob fiscalização, segundo o qual a entrega do valor correspondente à participação variável dos municípios na receita de IRS é feita diretamente pelo Estado aos municípios situados nas regiões autónomas, sem a intermediação destas últimas; cfr. o n.º 21 do Parecer da Comissão Constitucional n.º 28/78 citado no Acórdão; v. também, ANTÓNIO LOBO XAVIER e FRANCISCO MENDES DA SILVA, “A Repartição dos Recursos Públicos entre o Estado, as Regiões Autónomas e as Autarquias Locais: Uma abordagem a Propósito de Controvérsia Recente Acerca do Direito dos Municípios a uma Participação Variável no IRS” in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. I, Almedina, Coimbra, 2012, p. 893 e seguintes, pp. 917-918). Daí, também, que, em princípio, não possa haver por parte do Estado diferenças de tratamento entre autarquias localizadas nos arquipélagos dos Açores e da Madeira e autarquias localizadas no continente.
Contudo, nesse plano das relações imediatas, importa considerar o modo como tais relações se encontram conformadas constitucionalmente, em especial no tocante à vertente das finanças públicas.
O poder de disposição, “nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas”, das receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas representa uma garantia mínima de autonomia financeira das regiões autónomas (no Acórdão deste Tribunal n.º 499/2008 – no respetivo n.º 8 - é referido, a propósito, o conceito de «reserva regional de receitas cobradas e geradas no respetivo território»), uma vez que tem o sentido de estabelecer aquilo que, em princípio, deverá ser o mínimo da contribuição do Estado (a «República») para as finanças regionais: os residentes das Ilhas não contribuem para as despesas gerais do Estado; os impostos estaduais por si pagos revertem para a respetiva região autónoma (nesse sentido, v. ANTÓNIO LOBO XAVIER, “As receitas regionais e as receitas das outras parcelas do território nacional: concretização ou violação do princípio da igualdade?” in Direito e Justiça, vol. X, tomo I, 1996, p. 173 e seguintes, p. 177). Relativamente à Região Autónoma dos Açores, resulta dos preceitos do respetivo Estatuto Político-Administrativo e da Lei das Finanças das Regiões Autónomas transcritos no Relatório do presente Acórdão que a totalidade das receitas fiscais cobradas ou geradas nessa Região, incluindo as receitas de IRS, é deferida a essa mesma Região Autónoma. Consequentemente, ao contrário daquela que seria, porventura, a situação normativa à data do referido Parecer n.º 28/78 da comissão Constitucional, não se pode hoje afirmar que «o direito das regiões autónomas a dispor das receitas fiscais nelas cobradas é delimitado negativamente pelo direito atribuído aos municípios de participarem na receita dos impostos diretos».
É certo que a Constituição também não exige o inverso: que o direito dos municípios de participarem nas receitas dos impostos diretos seja delimitado negativamente pelas receitas fiscais afetadas às regiões autónomas. O que a Constituição exige, isso sim, é que a atribuição permanente a outras entidades – ao Estado ou a autarquias locais – das receitas fiscais cobradas ou geradas nas regiões autónomas se faça em termos compatíveis com o disposto no seu artigo 227.º, n.º 1, alínea j): o mesmo é dizer, em conformidade com as previsões do estatuto político-administrativo aplicável e da lei das finanças regionais – diplomas em cujo procedimento de formação se encontra assegurada a participação das regiões autónomas. A mesma atribuição feita por qualquer outro diploma legal – como sucede in casu com a Lei das Finanças Locais, interpretada nos termos do artigo 212.º da Lei n.º 64-B/2011 - viola, pelo exposto, o artigo 227.º, n.º 1, alínea j), da Constituição. Acresce que a solução que fez vencimento permite que o principal interessado – o Estado, que é a entidade a quem incumbe o financiamento das autarquias locais (cfr. o artigo 238.º, n.º 2, da Constituição) – resolva sozinho, e a seu favor, o conflito de interesses que neste domínio o opõe às regiões autónomas (sobre a necessidade de salvaguardar a intervenção institucional das regiões autónomas neste domínio, v. as declarações de voto de Jorge Miranda e de Isabel Magalhães Collaço no mencionado Parecer n.º 28/78). Tal solução permite, em suma, um esvaziamento e a desvalorização da autonomia político-administrativa das regiões autónomas, sendo, por isso, incompatível com a respetiva garantia constitucional.
Pedro Machete