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Processo n.º 546/2012
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José da Cunha Barbosa
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Município de Guimarães reclama para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação (LTC), da decisão sumária proferida pelo relator, na qual se decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto.
2. No sentido de rebater o acerto da decisão sumária, argumenta o reclamante nos seguintes termos:
«(...)
O recurso interposto pelo reclamante fundou-se no disposto nos artigos 280º nº 1 alínea b) da CRP e 70º nº 1 alínea b) da LTC.
Os requisitos de admissibilidade deste tipo de recurso de constitucionalidade, de acordo com uma jurisprudência firme, reiterada e uniforme deste Tribunal, são os seguintes:
1º) Que a inconstitucionalidade da norma tenha sido previamente suscitada pelo recorrente durante o processo; e
2º) Que essa norma venha a ser aplicada na decisão, constituindo um dos seus fundamentos normativos.
Ver, neste sentido, entre outros, o acórdão n.º 232/94 deste tribunal.
(...)
Na decisão sumária reclamada entendeu-se que nenhum dos aludidos requisitos se verificaram, pelo que não foi tomado conhecimento do objeto do recurso interposto.
Na verdade, refere-se na decisão reclamada que “(...)é evidente que o recorrente em momento algum logra autonomizar, a partir de tal preceito, um critério normativo cujo acerto constitucional se lhe afigure controvertido (...)” e que “(...)é ainda patente o incumprimento não justificável, pelo recorrente, do ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade. De facto, aquele deveria ter antecipado a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça vir a interpretar o artigo 684.º, do CPC, no sentido em que efetivamente o fez e, em conformidade, ter levantado o incidente de inconstitucionalidade no requerimento de arguição da nulidade do acórdão. Não o havendo feito, o recorrente incumpriu um dos requisitos processuais de que depende o presente recurso de constitucionalidade (...)”.
O recorrente não se conforma com o teor desta decisão sumária pelos seguintes motivos:
(...)
O artigo 150.º n.º 1 do CPTA refere que “Das decisões proferidas em 2.ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.”
O n.º 5 da mesma norma refere que “A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo.”
Tal apreciação preliminar foi realizada através do acórdão de 06/10/2011, já transitado em julgado, em que foi deliberado admitir a revista por se entender estarem preenchidos os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, na medida em que “(...) os juízos efetuados no acórdão recorrido têm também uma componente jurídica que no direito sancionatório assume relevância extrema, como por exemplo, a definição do fim visado pela aplicação da pena, os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que preside ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional, a proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a pena.”
Concluiu-se, naquele acórdão que, atento o recurso interposto e as questões nele suscitadas, era permitida a reapreciação, em revista pelo STA “(...) suficientemente aprofundada para produzir efeitos práticos nos casos concretos e fora deles, através da clarificação de critérios jurídicos (...)”, isto relativamente às 3 mencionadas questões, a saber:
1.ª) A definição do fim visado pela aplicação da pena;
2.ª) Os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que presidem ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional; e
3.ª) A proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a pena.
No acórdão de 24/01/2012 não houve pronúncia sobre qualquer dessas questões, o que determina a respetiva nulidade por omissão de pronúncia (artigo 688.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil).
É de concluir, ainda, existir, no acórdão de 24/01/2012, violação de caso julgado quanto ao decidido no acórdão de 06/10/2011.
É, por último, de concluir que no acórdão de 24/01/2012, pelos motivos vindos de referir, foram violados os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
O recorrente apresentou requerimento arguindo a mencionada nulidade e pedindo que as aludidas 3 questões fossem apreciadas, bem como suscitando as referidas inconstitucionalidades, sendo que foi proferido o acórdão de 09/05/2012 que indeferiu este requerimento.
Neste acórdão de 09/05/2012 diz-se, ao contrário do que se dissera no acórdão de 06/10/2011, que o recorrente, no respetivo recurso, não alegou a acima referida 2.ª questão, quando, na realidade, a mesma consta expressamente das conclusões 5.ª a 10.ª.
Nos acórdãos em crise, pura e simplesmente, optou-se por não decidir as questões mencionadas no acórdão de 06/10/2011, nomeadamente a referida 2.ª questão (Os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que presidem ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional), o que se fez com a falsa justificação de que aquelas matérias não foram alegadas pelo recorrente, tudo isto em clara violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Aquela interpretação das normas dos artigos 150.º do CPTA e 684.º do Código de Processo Civil implica, pois, a violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
(...)
Este recurso de constitucionalidade é, pois, admissível.
Na verdade, ao contrário do que refere a decisão sumária reclamada o recorrente invocou o critério normativo cujo acerto constitucional se lhe afigura controvertido e cumpriu o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade (no último parágrafo do requerimento de arguição de nulidade).
O n.º 5 do artigo 75.º-A da Lei nº 28/82 de 15/11 refere que “Se o requerimento de interposição do recurso não indicar algum dos elementos previstos no presente artigo, o juiz convidará o requerente a prestar essa indicação no prazo de 10 dias”, acrescentando o nº 6 da mesma norma que “O disposto nos números anteriores é aplicável pelo relator no Tribunal Constitucional, quando o juiz ou o relator que admitiu o recurso de constitucionalidade não tiver feito o convite referido no nº 5”.
Ora, na decisão reclamada entendeu-se que o recorrente não indicou os elementos previstos no artigo 75.º-A da Lei nº 28/82 de 15/11, sendo que, ao contrário do que referem as normas vindas de citar, o recorrente não foi convidado a prestar essa indicação no prazo de 10 dias, o que acarreta a nulidade da decisão reclamada.
(...)»
3. Notificado para o efeito, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local pugnou pelo indeferimento da reclamação apresentada.
II. Fundamentação
4. A decisão sumária reclamada apresenta o seguinte teor:
«(...)
1. O Município de Guimarães recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual redação, dos Acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Administrativo, com data de 24 de janeiro de 2012 e de 9 de maio de 2012. O requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional assume o seguinte teor:
«(...)
Vem o recorrente Município de Guimarães,
Não se conformando com os acórdãos de 24/01/2012 e de 09/05/2012,
Deles interpor recurso de apreciação concreta da constitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nas normas dos artigos 280.º, n.º 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa e 70.º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 28/82 de 15/11, com os seguintes fundamentos:
O artigo 150.º n.º 1 do CPTA refere que “Das decisões proferidas em 2.ª instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excecionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.”
O n.º 5 da mesma norma refere que “A decisão quanto à questão de saber se, no caso concreto, se preenchem os pressupostos do n.º 1 compete ao Supremo Tribunal Administrativo, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes de entre os mais antigos da Secção de Contencioso Administrativo.”
Tal apreciação preliminar foi realizada através do acórdão de 06/10/2011, já transitado em julgado, em que foi deliberado admitir a revista por se entender estarem preenchidos os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA, na medida em que “(...) os juízos efetuados no acórdão recorrido têm também uma componente jurídica que no direito sancionatório assume relevância extrema, como por exemplo, a definição do fim visado pela aplicação da pena, os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que preside ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional, a proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a pena.”
Concluiu-se, naquele acórdão que, atento o recurso interposto e as questões nele suscitadas, era permitida a reapreciação, em revista pelo STA “(...) suficientemente aprofundada para produzir efeitos práticos nos casos concretos e fora deles, através da clarificação de critérios jurídicos (...)”, isto relativamente às 3 mencionadas questões, a saber:
1.ª) A definição do fim visado pela aplicação da pena;
2.ª) Os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que presidem ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional; e
3.ª) A proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a pena.
No acórdão de 24/01/2012 não houve pronúncia sobre qualquer dessas questões, o que determina a respetiva nulidade por omissão de pronúncia (artigo 688.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil).
É de concluir, ainda, existir, no acórdão de 24/01/2012, violação de caso julgado quanto ao decidido no acórdão de 06/10/2011.
É, por último, de concluir que no acórdão de 24/01/2012, pelos motivos vindos de referir, foram violados os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
O recorrente apresentou requerimento arguindo a mencionada nulidade e pedindo que as aludidas 3 questões fossem apreciadas, bem como suscitando as referidas inconstitucionalidades, sendo que foi proferido o acórdão de 09/05/2012 que indeferiu este requerimento.
Neste acórdão de 09/05/2012 diz-se, ao contrário do que se dissera no acórdão de 06/10/2011, que o recorrente, no respetivo recurso, não alegou a acima referida 2.ª questão, quando, na realidade, a mesma consta expressamente das conclusões 5.ª a 10.ª.
Nos acórdãos em crise, pura e simplesmente, optou-se por não decidir as questões mencionadas no acórdão de 06/10/2011, nomeadamente a referida 2.ª questão (Os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que presidem ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional), o que se fez com a falsa justificação de que aquelas matérias não foram alegadas pelo recorrente, tudo isto em clara violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Aquela interpretação das normas dos artigos 150.º do CPTA e 684.º do Código de Processo Civil implica, pois, a violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
(...)»
2. O recurso foi admitido pelo Tribunal recorrido. No entanto, em face do disposto no artigo 76.º, n.º 3, da LTC, e porque o presente caso se enquadra na hipótese normativa delimitada pelo artigo 78.º-A, n.º 1, do mesmo diploma, passa a decidir-se nos seguintes termos.
3. O recorrido, o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local, intentou, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, ação administrativa especial no sentido de ver anulado o ato punitivo determinado pelo Município de Guimarães contra A.. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga decidiu não anular o ato punitivo, considerando que o mesmo não enfermava de qualquer dos vícios que lhe eram assacados, mormente o erro de avaliação no juízo de viabilidade/inviabilidade da manutenção da relação funcional.
Inconformado, o agora recorrido interpôs recurso junto do Tribunal Central Administrativo Norte, que, divergindo da decisão da primeira instância, julgou não estar suficientemente demonstrada a inviabilidade da relação de emprego, constituindo a sanção de demissão, nessa medida, uma medida desproporcionada. Em conformidade, anulou o ato impugnado e determinou o prosseguimento do processo disciplinar para a aplicação de outra pena que não a de demissão.
O Município de Guimarães decidiu, então, interpor recurso de revista junto do Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), louvando-se nas seguintes alegações:
«(...)
5.ª No entanto, para que seja legítimo aplicar-se a pena de demissão é necessário que essa conduta se reconduza ao critério geral previsto no artigo 26.º, n.º 1 do ED, ou seja, que as infrações disciplinares tenham inviabilizado a manutenção da relação funcional (artigo 28.º, 1.ª parte, do ED) – elemento objetivo.
(...)
7.ª Atendendo à natureza do serviço em que o representado do A. exercia funções, à categoria profissional do mesmo, considerando, ainda, o respetivo grau de culpa, que é elevado, a sua personalidade e as demais circunstâncias em que as infrações foram cometidas (artigo 28.º do ED), a pena disciplinar de demissão, que importa a perda de todos os direitos do representado do A., enquanto funcionário e que consiste no afastamento definitivo do mesmo do serviço, cessando o vínculo funcional, foi necessária, adequada, proporcional e, por isso, lícita.
8.ª Demonstrou-se que as faltas injustificadas que o representado do A. deu ao trabalho, porque foram dadas de forma imprevisível, causaram dificuldades dos serviços, nomeadamente a sua coordenação, eficácia e desempenho.
(...)
12.ª O acórdão recorrido refere apenas que a sanção disciplinar de demissão foi desproporcionada, porque não resultou dos factos provados suficientemente demonstrada a inviabilidade da relação funcional.
(...)
14.ª O juízo de prognose respeitante à inviabilização da manutenção da relação funcional foi efetuado no ato administrativo impugnado, não ocorrendo, nem a decisão recorrida o alega, na aplicação da sanção de demissão, erro manifesto ou grosseiro, nem a pena de demissão é manifestamente injusta ou desproporcionada.
15.ª Ao não fazer qualquer juízo de verificação de erro manifesto ou grosseiro, nem de manifesta injustiça ou desproporcionalidade da pena relativamente aos factos apurados, o acórdão recorrido violou a margem de liberdade administrativa (discricionariedade) que o Município de Guimarães dispunha na graduação da medida concreta da pena a aplicar ao representado do A.
(...)»
Em acórdão com data de 6 de outubro de 2011, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo admitir o recurso de revista interposto, considerando que “os juízos efetuados no acórdão recorrido têm também uma componente jurídica que no direito sancionatório assume relevância extrema, como por exemplo, a definição do fim visado pela aplicação da pena, os aspetos de dever ser, na perspetiva finalística, que preside ao juízo de viabilidade/inviabilidade da relação funcional, a proporcionalidade entre a gravidade da conduta e a pena.”
O Supremo Tribunal Administrativo, em acórdão exarado em 24 de janeiro de 2012 viria confirmar a decisão recorrida, negando provimento ao recurso interposto, abonando-se, para o efeito, na seguinte argumentação:
«(...)
Ao tribunal de revista cumpre, tão-só, saber como julgar juridicamente o acontecido, de acordo com a realidade material fixada pelo acórdão impugnado e, nesta dimensão restrita, de direito, só pode conhecer das questões que hajam sido suscitadas pelo recorrente e façam parte do objeto, nos termos previstos no art. 684.º/3 do C. P. Civil.
Visitada a esta luz, a alegação do recorrente, para delimitar o âmbito da revista e dos poderes de cognição do tribunal, vemos que naquela se critica o acórdão com dois fundamentos: (i) por não corresponderem à realidade as indicadas “razões de desproporção” entre os factos apurados e a sanção aplicada; (ii) por não fazer qualquer juízo de verificação de erro manifesto ou grosseiro, nem de manifesta injustiça ou desproporcionalidade da pena relativamente aos factos apurados.
Mas a censura não logra vencimento em relação a qualquer das questões que se suscita.
(...)»
Concluiu, pois, o Supremo Tribunal Administrativo, quanto ao primeiro fundamento invocado pelo recorrente, que este “critica juízos de facto feitos pelo acórdão recorrido”, questão cujo conhecimento lhe está vedado, em razão do disposto no artigo 150.º, n.º 4, do CPTA. Quanto ao segundo, decidiu aquele Tribunal nos seguintes termos:
«(...)
Não é exata a alegação de que o acórdão não fez qualquer juízo de verificação de erro manifesto ou grosseiro, nem de manifesta injustiça ou desproporcionalidade da pena relativamente aos factos apurados.
Como se vê, pela transcrição supra, o aresto recorrido começou por referir que o preenchimento da “cláusula geral” de inviabilidade da relação funcional constitui tarefa da Administração, a concretizar por juízo de prognose efetuados com grande margem de liberdade administrativa, ficando a sindicância do tribunal limitada aos casos de erro grosseiro ou palmar e/ou de pena manifestamente injusta ou desproporcionada. Depois de ter fixado, deste modo, os seus poderes de cognição, passou à ponderação do caso em análise e anulou o ato punitivo por ter concluído que dos factos provados não resulta “suficientemente demonstrada a inviabilidade da relação de emprego” e que, por isso, a pena é desproporcionada.
Neste quadro, sob pena de incongruência, a decisão encerra, necessariamente, um juízo positivo de erro manifesto ou grosseiro, ainda que o mesmo não esteja implicitamente afirmado.
(...)»
Ora, descontente com o teor do mencionado aresto, que negou provimento ao recurso de revista, veio o recorrente arguir, em requerimento com data de 10 de fevereiro de 2012, a nulidade desse acórdão, veiculando considerações com o seguinte teor:
«(...)
Todavia, no acórdão de 24/01/2012, V. Exas. pronunciaram-se sobre a inexistência, no acórdão recorrido, de qualquer juízo de verificação de erro manifesto ou grosseiro, nem de manifesta injustiça ou desproporcionalidade da pena relativamente aos factos apurados, concluindo que esse juízo, ainda que não explicitamente afirmado, havia sido feito no acórdão recorrido.
Portanto, V. Exas. pronunciaram-se exatamente e apenas sobre a questão que no acórdão de 06/10/2011, já transitado em julgado, se entendeu não se verificar e não preencher os pressupostos do n.º 1 do artigo 150.º do CPTA.
(...)
No acórdão de 24/01/2012 não houve pronúncia sobre qualquer dessas questões, o que determina a respetiva nulidade por omissão de pronúncia (artigo 668.º n.º 1 alínea d) do Código de Processo Civil).
É de concluir, ainda, existir, no acórdão de 24/01/2012, violação de caso julgado quanto ao decidido no acórdão 06/10/2011.
É, por último, de concluir que no acórdão de 24/01/2012, pelos motivos vindos de referir, foram violados os princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
(...)»
Arguida a nulidade do acórdão de 24 de janeiro de 2012, veio o Supremo Tribunal de Justiça, através de acórdão com data de 9 de maio de 2012, responder do seguinte jeito:
«(...)
Das questões supra indicadas, relativamente às quais o recorrente diz não ter sido emitida a pronúncia devida, apenas a última – juízo do acórdão recorrido sobre a (des)proporcionalidade da pena – foi por ele suscitada na sua alegação de recurso de revista (vide conclusões 7.º a 10.º, 14.º e 15.º).
E sobre essa questão o acórdão pronunciou-se dizendo que a alegação improcedia porque o entendimento, do tribunal a quo, de que a pena aplicada era desproporcionada, estava baseado em juízos em matéria de facto que estão excluídos do poder de cognição do tribunal de revista.
As outras duas questões não fazem parte do objeto do recurso, de acordo com o previsto no artigo 684.º do C. P. Civil. O recorrente não as suscitou na sua alegação de recurso.
(...)»
Foi então interposto o recurso de constitucionalidade agora objeto de apreciação.
4. Assim, retira-se do arrazoado transcrito que são fundamentalmente dois os problemas levantados pelo ora recorrente no requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, a saber: o problema da inconstitucionalidade da interpretação, veiculada pelo Supremo Tribunal Administrativo, do artigo 150.º, do CPTA, e o problema da inconstitucionalidade da interpretação - assumida pelo mesmo Tribunal - relativamente ao artigo 684.º, do Código de Processo Civil (CPC), em ambos os casos com fundamento em violação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, ínsitos no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.
Tendo sido o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, preceito que – recorde-se – admite recurso de decisões “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, é necessário que se apure do preenchimento de uma série de requisitos processuais.
Com efeito, deve o recorrente requerer a reapreciação de uma questão de inconstitucionalidade, tempestiva e adequadamente suscitada perante o tribunal a quo, referente a normas jurídicas ou interpretações normativas de que este haja feito efetiva aplicação, entenda-se, que hajam constituído efetivo fundamento jurídico da resolução da questão principal.
Ora, uma questão de (in)constitucionalidade exprime a relação de desconformidade existente entre um ato normativo de direito público (o objeto de controlo) e o conjunto das normas e princípios constitucionais (o parâmetro de controlo). Daqui resulta que o controlo efetuado pelo Tribunal Constitucional é um controlo normativo, incidente sobre normas jurídicas ou sobre segmentos ou interpretações normativas delas extraídas, e não um contencioso de decisões, talqualmente postularia um modelo de justiça constitucional próximo da queixa constitucional ou do recurso de amparo.
Neste sentido, não se incluem no poder de cognição do Tribunal Constitucional aquelas situações em que o recorrente se limita a imputar diretamente à decisão judicial certos vícios de inconstitucionalidade, sem cuidar de extrair das normas aplicadas um sentido cuja constitucionalidade intente controverter (i); tampouco tal poder abrange aquelas hipóteses em que o recorrente, ainda que invocando uma norma ou um segmento normativo desta, pretende verdadeiramente atacar a decisão judicial, ambicionando questionar a apreciação ou valoração dos factos ou a conjugação destes ao critério normativo nela convocado (ii); finalmente, não constitui uma questão de constitucionalidade de que este Tribunal deva conhecer a apreciação do “processo hermenêutico” desenvolvido pelo tribunal a quo (iii). De facto, está consolidada na jurisprudência constitucional a perceção de que “o Tribunal Constitucional não pode censurar o modo como os restantes tribunais aplicam o direito infraconstitucional, apenas lhe competindo “controlar o modo como eles aplicam (ou não) o direito constitucional” (cf. o Acórdão n.º 44/85, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Depois, exige-se ainda que a questão de constitucionalidade normativa, assim depurada, tenha sido adequada e tempestivamente suscitada.
Vale por dizer, em primeiro lugar, que existe um modo processualmente adequado para arguir a questão de constitucionalidade, e que esse modo passa por exigir que o recorrente enuncie ou dê conta daquela relação de desconformidade de uma forma “direta, clara e percetível”. Como se escreveu no Acórdão n.º 269/94 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), “suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que - como já se disse - tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma), que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a Lei Fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringidos.” E mais – resultando do mesmo preceito várias normas ou interpretações normativas, a adequação processual da suscitação reclama ainda que o recorrente indique o sentido cuja constitucionalidade contesta, de tal forma que “os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adotado, por ser incompatível com a lei fundamental” (cf. o Acórdão n.º 178/95, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em segundo lugar, deve o levantamento da questão de constitucionalidade ter lugar durante o processo, conceito que – sublinhe-se – “deve ser tomado 'não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)',mas num 'sentido funcional', tal que 'essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão'. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se 'antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita'.
Com efeito, a exigência de um tempo e de um modo adequados apresenta-se como um mero corolário da natureza e função do processo de fiscalização concreta no nosso modelo de justiça constitucional, visto que, num tal processo, o Tribunal Constitucional atua como instância de recurso, reapreciando a decisão na parte em que o tribunal recorrido proferiu um juízo-julgamento sobre a conformidade constitucional de normas pertinentes para o processo-base. Sucede, bem entendido, que o Tribunal Constitucional só poderá reapreciar aquela parte da decisão se e na medida em que o juiz do tribunal a quo tenha sido confrontado com uma questão de constitucionalidade a cujo conhecimento estivesse efetivamente adstrito.
5. Ora, há que concluir que os mencionados pressupostos processuais não se encontram preenchidos no caso vertente.
Quanto ao problema levantado a propósito do artigo 684.º, do CPC, é evidente que o recorrente em momento algum logra autonomizar, a partir de tal preceito, um critério normativo cujo acerto constitucional se lhe afigure controvertido. É mister concluir, pois, neste segmento, pela ausência de questão de constitucionalidade normativa, já que o objeto da controvérsia não é a interpretação assumida pelo Supremo Tribunal Administrativo quanto àquele preceito, mas antes a apreciação por este feita do requerimento de recurso de revista excecional interposto pelo recorrente. Com efeito, se o Tribunal sustenta que o recorrente não levantou, nas alegações de recurso apresentadas, duas das questões que agora pretende ver apreciadas – e, nessa medida, o objeto de recurso não as abrange – o recorrente alega ter procedido a essa suscitação nas conclusões 5.ª a 10.ª daquele requerimento de recurso (cf. fls. 451 dos autos). Daqui resulta, portanto, que o recorrente não ambiciona contestar a interpretação do artigo 684.º, do CPC, introduzida pelo Supremo Tribunal Administrativo, mas tão-só a apreciação, por ele veiculada, das alegações de recurso apresentadas, o que, no seguimento do que vimos dizendo, não se configura como uma questão de constitucionalidade normativa.
Mesmo que assim não se entendesse, é ainda patente o incumprimento não justificável, pelo recorrente, do ónus de suscitação prévia de uma questão de constitucionalidade. De facto, aquele deveria ter antecipado a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça vir a interpretar o artigo 684.º, do CPC, no sentido em que efetivamente o fez e, em conformidade, ter levantado o incidente de inconstitucionalidade no requerimento de arguição da nulidade do acórdão. Não o havendo feito, o recorrente incumpriu um dos requisitos processuais de que depende o presente recurso de constitucionalidade, não se podendo escudar em considerações sobre o caráter “surpreendente” de tal interpretação.
Com efeito, em numerosos acórdãos (v., por ex., os Acórdãos n.ºs 479/89 e 148/08, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal Constitucional vem reiteradamente afirmando que “recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão”, de modo a “confrontarem atempadamente o tribunal com as inconstitucionalidades que – na sua ótica – poderão inquinar tais normas ou interpretações normativas” (Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 81).
Já quanto ao artigo 150.º, do CPTA, resulta limpidamente dos autos que também aí não soçobra uma qualquer questão de constitucionalidade normativa de que este Tribunal deva conhecer. Com efeito, o recorrente não autonomiza nem evidencia a presença de desconformidades entre um (determinado) sentido normativo extraído do artigo 150.º, do CPTA, por um lado, e o princípio segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, por outro. Se bem entendemos, o recorrente sustenta que o Supremo Tribunal de Justiça, depois de no acórdão que admitiu o recurso de revista ter afirmado que tal recurso incidiria sobre uma série de questões, não pode, em acórdão posterior, furtar-se à respetiva apreciação. Essa dissonância é, no seu entender, violadora do princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos.
Porém, fácil é de ver que em causa não está a circunstância de uma (qualquer) interpretação normativa do preceito em crise – o artigo 150.º, do CPTA – poder lesar a segurança jurídica e a confiança dos cidadãos destinatários de tal norma, mas antes o facto de a confiança daquele sujeito processual em concreto – o Município de Guimarães – poder ser abalada por aquela aparente discrepância. Como já disse, no entanto, os poderes de cognição do Tribunal Constitucional não se estendem à apreciação destas discrepâncias, que quando muito afetam a própria decisão do pleito, concentrando-se, ao invés, em outro tipo de divergências – aquelas que medeiam entre o objeto de controlo, de uma parte, e o parâmetro de controlo, de outra.
Por último - e isto vale para ambos os problemas delineados supra – é flagrante o incumprimento, pelo recorrente, do ónus de suscitação adequada da questão de constitucionalidade. De facto, aquele levantamento não só não cumpre requisitos mínimos de clareza e inteligibilidade, como tampouco especifica qual o sentido ou interpretação normativa extraível daqueles preceitos cuja constitucionalidade está inquinada. Neste sentido, o recorrente aliou a uma arguição intempestiva uma arguição processualmente inadequada da questão de constitucionalidade, fazendo assim claudicar o conhecimento, pelo Tribunal Constitucional, do objeto do presente recurso.
Assim, somos levados a concluir que o recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente não reúne os pressupostos processuais inferidos do artigo 70.º, n.º 1, al. b), da LTC.
6. Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do objeto de recurso.
(...)»
6. É manifesto que nada na presente reclamação permite contestar o acerto do juízo expendido na decisão sumária.
Desde logo, não tem razão o reclamante quando argumenta ter “invocado o critério normativo cujo acerto constitucional se lhe afigura controvertido.” Se é certo, com efeito, que o então recorrente chamou à colação dois preceitos – a saber, o artigo 150.º, n.ºs 3 e 5 do CPTA, e o artigo 684.º, do CPC – fica patente, por intermédio da leitura do requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional e da reclamação apresentada, que essa convocação não tem subjacente qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Ou seja, em momento algum logra o reclamante extrair desses preceitos um entendimento normativo, rectius, um critério normativo cujo acerto com o parâmetro constitucional invocado – o princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos - se afigure comprometido.
No que concerne ao artigo 684.º, do CPC (Delimitação objetiva e subjetiva do recurso), é incontestável que a controvérsia vertente não tem subjacente um conteúdo normativo: na verdade, enquanto o agora reclamante argumenta que certas questões, por constarem das conclusões do recurso de revista interposto, devem ou deveriam integrar o objeto do recurso, o STA considera que tais questões não fazem parte de tal objeto precisamente porque o recorrente não as suscitou nas suas alegações de recurso. Controvertido é, portanto, o conteúdo do requerimento de recurso de revista efetivamente apresentado, bem como as questões que, nesse requerimento, foram levantados pelo recorrente, devendo integrar, por isso, o objeto do recurso.
O mesmo juízo é transponível para o artigo 150.º, n.ºs 3 e 5, do CPTA. Tampouco existe aí qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, na medida em que o reclamante não logra extrair de tal preceito um entendimento normativo que, em abstrato, seja lesivo do princípio da segurança jurídica. Tais vícios, a existirem, são apenas assacáveis (e assacados) aos acórdãos do STA propriamente ditos, e não aos critérios em que tal Tribunal se louvou.
Conclui-se, portanto, pela inexistência de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, requisito afinal comum a todos os recursos de constitucionalidade previstos na CRP e na LTC.
Depois, é patente que, mesmo que assim não se entendesse, o arrazoado que o reclamante sustenta constar do último parágrafo do requerimento de arguição de nulidade do acórdão do STA não se confunde com a arguição adequada de uma questão de constitucionalidade. Impunha-se, efetivamente, ao abrigo da jurisprudência constitucional consolidada (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 199/88 e 367/94, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que o agora reclamante tivesse identificado de modo cabal, claro e percetível os segmentos normativos retirados daqueles preceitos que considerava desconformes com o parâmetro constitucional – algo que não fez.
Finalmente, invoca o reclamante que as vicissitudes de que eventualmente padecesse o recurso de constitucionalidade por si interposto poderiam ter sido supridas no seguimento de um despacho de aperfeiçoamento, a emitir pelo Relator, nos termos do artigo 75.º-A, da LTC. Sucede, porém, que tal faculdade visa tão-só permitir o suprimento das falhas ou deficiências formais do requerimento de recurso que vêm mencionadas nos n.ºs 1 e 2 daquele preceito. Não permite, como é bom de ver, dotar de caráter normativo questões que manifestamente não o têm, nem tampouco produzir outras alterações substanciais relacionadas com os pressupostos do próprio recurso de constitucionalidade interposto, e não já apenas com os requisitos formais do respetivo requerimento.
III. Decisão
7. Atento o exposto, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente reclamação e, por conseguinte, confirmar a decisão sumária reclamada.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- J. Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Joaquim de Sousa Ribeiro.