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Processo n.º 710/12
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de outubro de 2011.
2. Pela Decisão Sumária n.º 486/2012, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida em termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da LTC). Requisito que não se pode dar por verificado nos presentes autos.
Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora e, especificamente, nas passagens indicadas pelo recorrente, não é identificada a interpretação normativa cuja conformidade constitucional pretendia questionar. Além de que a reportou apenas aos artigos 124.º e 127.º do Código de Processo Penal, diferentemente do que sucede no requerimento de interposição de recurso onde refere também os artigos 125.º e 126.º do mesmo Código. A motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Évora e o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade são até reveladores da pretensão de questionar afinal a conformidade constitucional de uma decisão judicial e não propriamente de uma norma.
A não verificação do requisito da suscitação prévia e de forma adequada da questão de inconstitucionalidade obsta ao conhecimento do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC)».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, mediante requerimento onde se lê o seguinte:
«6. Nestes termos e porque, como referido, o recorrente continua inconformado com a decisão proferida por este Tribunal da Relação de Évora, dela vem agora o Recorrente, porque está em tempo e para tal tem legitimidade (Cfr. alínea b) do 1 do artigo 78.º, da LTC), interpor recurso imediatamente e nos próprios autos, com efeito suspensivo (Cfr. n.º 4, do artigo 78.º, da LTC).
7. Nesse sentido, foi arguido o vício de inconstitucionalidade, mais precisamente o da interpretação inconstitucional dos artigos 124.º, 125.º, 126.º e 127.º do CPP, por violação dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, em clara violação do preceituado nos artigos 124.º, 125.º, 126.º, 127.º e 345.º do CPP, conjugados com o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
(…)
12. Nestes precisos termos, não podemos aceitar que o arguido seja condenado sem que seja aferida, pelo Tribunal Constitucional, a legalidade do método de apuramento de prova efetuado pela 1.ª Instância e assumido pelo Tribunal da Relação de Évora.
(…)
28. Será que condenar um arguido por declarações prestadas por um co- arguido em sede de primeiro interrogatório de arguido detido, que mente, como as Instâncias assumem, valorando a prova contra o recorrente, não é, claramente, violador da presunção de inocência do arguido e do in dúbio pro reo?
(…)
31. Esta prova foi, então, obtida em clara violação do preceituado nos artigos 124.º, 125.º 126.º, 127.º e 345.º do CPP, conjugados com o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
(…)
34. Nesse sentido, a condenação do arguido por um crime de tráfico de estupefacientes, analisada a prova e a sua obtenção - através de convicção-, também em clara violação do preceituado nos artigos 124.º, 125.º 126.º, 127.º e 345.º do CPP, conjugados com o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, é ilegal, devendo as decisões das Instâncias serem substituídas por uma decisão que absolva o arguido do crime de que vem acusado.
35. Como se assinalou, a condenação do recorrente por qualquer um dos crimes de que vem condenado, viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o preceituado no artigo 32.º.
(…)
40. Comecemos por afirmar, sem mais, que se se considerar que é lícito ao jurisprudente, na análise aos citados preceitos do CPP, julgar as provas e assentar factos baseados em declarações de coarguidos e no silêncio desses coarguidos, sem que se possa conjugar essas declarações, ou omissão de declarações, com qualquer outra prova, como é o caso, e essas declarações contrariarem as declarações do arguido, estamos perante uma interpretação inconstitucional dos artigos 124.º, 125.º, 126.º e 127.º do CPP, por violação do princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo, no sentido em que estes princípios, normativizados no artigo 32.º da Constituição, mas que se impõem, no âmbito do Estado de Direito Democrático, ao próprio Legislador Constituinte, vinculam o juiz, ao analisar a prova, a julgá-la, em caso de dúvida, em benefício do arguido.
(…)
42. Nesses termos, as decisões das Instâncias são ilegais, por violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 124.º, 125.º, 126.º e 127º do CPP, ou, a considerar-se a interpretação que permite, no âmbito dos referidos artigos do CPP, a obtenção de provas nos termos referidos, a mesma interpretação é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 32.º da CRP.
43. Por isso mesmo, e de igual modo, foram desde logo suscitadas estas questões nas alegações de recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora – Cfr. artigos 87.º e seguintes, das alegações de Recurso.
44. Pelo que observados que estão os formalismos legais para tal previstos, porque para tal o recorrente tem legitimidade, está em tempo e representado por advogado (Cfr. artigos 72.º, n.º 1 alínea b), 75.º e 83.º da LTC), deveria a Ilustre Juiz Relatora ter admitido e considerado validamente interposto o recurso da decisão do Tribunal da Relação de Évora para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os ulteriores termos».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público veio dizer o seguinte:
«1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 486/2012, não se tomou conhecimento do objeto do recurso, porque, como resultava da motivação do recurso interposto para a Relação de Évora e do requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, o que o recorrente pretendia questionar era a conformidade constitucional de uma decisão judicial e não propriamente de uma norma.
2º
Ora, parece-nos evidente que o recorrente durante o processo não suscitou, nem no requerimento recursório enunciou, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, única passível de constituir objeto idóneo do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC.
3º
A argumentação do recorrente em nada abala os fundamentos da decisão reclamada e se algum efeito tem será, até, o de os confirmar.
4º
Diz-se, por exemplo, nessa peça, após se fazer uma incursão critica pela matéria de facto dada como provada:
“ Nesse sentido, a condenação do arguido por um crime de tráfico de estupefacientes, analisada a prova e a sua obtenção – através de convicção -, também em clara violação do preceituado nos artigos 124.º, 125.º, 126.º, 127.º e 345.º, do CPP, conjugados com o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, é ilegal, devendo as decisões das Instâncias serem substituídas por uma decisão que absolva o arguido do crime de que vem acusado”.
No mesmo sentido vêm as afirmações produzidas nos pontos 39 e 40 da reclamação.
5º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por não se poder dar como verificado o requisito da suscitação prévia e de forma adequada, perante o tribunal recorrido, de uma qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada às disposições legais indicadas no requerimento de interposição de recurso.
Argumenta agora o reclamante que suscitou a questão de inconstitucionalidade nos artigos 87.º e ss. da motivação do recurso para o Tribunal da Relação. Sem razão.
Nesta peça processual e, concretamente, nas passagens indicadas pelo reclamante, não é, de todo, identificada a “interpretação materialmente inconstitucional do preceituado nos artigos 124.º e 127.º do CPP” que pretendia questionar. Este Tribunal tem vindo a entender que, quando “se suscita a inconstitucionalidade de uma determinada interpretação de certa (ou de certas) normas jurídicas, necessário é que se identifique essa interpretação em termos de o Tribunal, no caso de a vir a julgar inconstitucional, a poder enunciar na decisão, de modo a que os destinatários delas e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa (ou essas) normas não podem ser aplicadas com um tal sentido” (Acórdão n.º 106/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tal como já havia sido afirmado na decisão reclamada, por referência à motivação do recurso para o Tribunal da Relação e ao requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, é de concluir, face ao teor da presente reclamação, que o que o recorrente pretende, verdadeiramente, é questionar uma decisão judicial e não uma qualquer norma. Revela isso mesmo quando entende que cabe a este Tribunal aferir da legalidade do método de apuramento de prova efetuado, quando conclui que a prova foi obtida em clara violação do preceituado nos artigos 124.º, 125.º 126.º, 127.º e 345.º do Código de Processo Penal e que as decisões das Instâncias são ilegais, por violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 124.º, 125.º, 126.º e 127º do Código de Processo Penal (pontos 12., 31. e 42. da reclamação).
Há que indeferir, pois, a presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 21 de novembro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral.