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Processo n.º 310/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 320/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente a A., Lda. e recorrida B., S.A., foi interposto recurso, em 30 de março de 2012 (fls. 1982 a 1991), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de outubro de 2011 (fls. 1874 a 1894), que foi sucessivamente confirmado, quer por acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 17 de janeiro de 2012 (fls. 1950 e 1953), que não conheceu da arguição de nulidade e que indeferiu pedido de reforma quanto ao mérito, quer por acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 15 de março de 2012 (fls. 1974 e 1976), que indeferiu pedido de aclaração do segundo acórdão proferido.
Através de requerimento extenso, a recorrente fixou como objeto do recurso determinada interpretação extraída do artigo 3º, n.º 2, alíneas a) e b) do Código das Expropriações de 1991. Pronunciando-se sobre tal requerimento de interposição de recurso – e ainda que dirigindo-se ao Relator junto do Supremo Tribunal de Justiça –, a recorrida alegou que nenhum dos acórdãos proferidos aplicou as interpretações normativas reputadas de inconstitucionais pela recorrente e que, para além disso, o modo como tais questões foram colocadas implica que não esteja em causa um recurso relativo à inconstitucionalidade de uma concreta norma jurídica, mas antes da própria decisão jurisdicional proferida (fls. 2012 a 2014).
2. Face às dúvidas suscitadas pela recorrida, a Relatora proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso, ao abrigo do artigo 75º-A, n.º 6, da LTC, em 23 de maio de 2012 (fls. 2023), para que a recorrente esclarecesse qual a interpretação normativa que efetivamente pretendia ver apreciada. Em resposta ao referido convite, veio a recorrente informar que a interpretação normativa que reputa de inconstitucional corresponde àquela que teria sido extraída, pela decisão recorrida, das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 3º do Código de Expropriações de 1991, “no sentido de que, a expropriação coativa, em processo expropriativo de apenas uma parcela, com indemnização apenas de uma parte, afinal, parte esta julgada pelo Tribunal como integrada numa unidade económica de múltiplos imóveis, porém não abrangidos nem avaliados como um conjunto naquele mesmo processo expropriativo, pode sustentar-se apenas com um pedido e decisão genéricos de expropriação – e mesmo sem referência concreta e independentemente da verificação judicial dos pressupostos concretos daqueles preceitos do citado art. 3º nº 2 do CE/91” (fls. 2026).
Mais referiu a recorrente que “é esta a interpretação do preceito em causa que se reputa de ratio decidendi implícita na decisão do STJ” (fls. 2026, com sublinhado nosso).
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. O recurso foi admitido por despacho do Relator junto do tribunal “a quo”, proferido em 17 de abril de 2012 (fls. 2011). Porém, por força do n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que deve começar-se por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Desde logo, o requerimento de aperfeiçoamento demonstra, à evidência, a ausência de dimensão normativa do objeto do presente recurso. Dele ressalta que a recorrente apenas pretende colocar em crise a decisão jurisdicional concretamente adotada nos autos recorridos, pois discorda do sentido da mesma. A questão colocada encontra-se de tal modo imbricada com os fatos concretos em discussão nos autos recorridos que perde a sua natureza normativa. Só isso já permitiria proferir uma decisão de não conhecimento do objeto do presente recurso, na medida em que este Tribunal, em sede de fiscalização concreta, só pode conhecer da inconstitucionalidade de normas jurídicas (artigo 277º, n.º 1, da CRP).
Mas, acresce ainda que é a própria recorrente quem admite que só implicitamente se poderia extrair da decisão recorrida a pretensa “interpretação normativa” por si reputada de inconstitucional, uma vez que a decisão recorrida nunca afirmou ou sequer esboçou tal “interpretação normativa”. Na medida em que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de questões de constitucionalidade que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos como critério decisivo das respetivas decisões (artigo 79º-C da LTC), fica então identificada uma outra razão que obsta ao conhecimento do objeto do presente recurso.
Por fim, deve notar-se ainda que a recorrente também não suscitou, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade da alegada “interpretação normativa” que pretende ver agora apreciada; o que constitui, nos termos do n.º 2 do artigo 72º da LTC, pressuposto indispensável para o conhecimento do objeto de um recurso de constitucionalidade. Com efeito, a recorrida limitou-se a responder, em sede de contra-alegações:
«10ª – De resto, a interpretação por analogia, ou outra técnica – para além de supor identidade factual, o que não está sequer provado –, do art. 3º nº 2 do Cód. das Exp., invocada pela recorrente, não poderia ter sucesso, pois viola, também, frontalmente o art. 1, adicional à CEDH, bem como aquelas disposições da Constituição [artigos 62º e 17º da Constituição, vide § 9º das conclusões] – para além da própria Base XXVII, n.ºs 1 e 2 do regime jurídico da concessão, aprovado pelo DL 198/94.» (fls. 1997)
Torna-se assim evidente que a recorrente nunca especificou perante o tribunal recorrido qual a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 3º do Código das Expropriações de 1991 que seria inconstitucional, de modo tal que este ficasse obrigado a dela conhecer (artigo 72º, n.º 2, da LTC), tendo-se limitado a, de modo genérico e vago, imputar uma inconstitucionalidade – que não precisa – a uma suposta “interpretação (…) invocada pela recorrente” (ora recorrida), sem que explicite que interpretação foi essa. Também por força deste fundamento, sempre seria legalmente inadmissível conhecer do objeto do presente recurso.
Assim sendo, torna-se legalmente impossível conhecer do objeto do presente recurso, pelas razões supra apontadas.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso interposto.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformada com a decisão proferida, a recorrente veio deduzir reclamação, cujos termos ora se resumem:
«2. A 'dimensão normativa': do objeto do recurso – a questão da interpretação inconstitucional
O recurso vem indicado como tendo por objeto a interpretação ou o critério normativo que sustentou a decisão do STJ – e nesta matéria é sempre difícil ao leitor/intérprete desta decisão, na perspetiva de aferir qual o parâmetro da juridicidade que realmente a justifica, distinguir entre a decisão em si, e o seu critério. Como refere LOPES DO REGO, neste domínio, «é evidente que se torna assaz duvidosa e incerta a determinação da precisa fronteira entre as figuras do controlo normativo e da fiscalização de concretas e específicas decisões judiciais.» (Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, p. 31).
Nos acórdãos nºs 412/2003 e 110/2007, o T.C. entendeu que para que houvesse um objeto apto à apreciação da constitucionalidade, bastaria que se estivesse perante um critério normativo, dotado de elevada abstração e suscetível de ser invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Neste sentido, o referido A., sintetizando a jurisprudência, conclui do seguinte modo: «o objeto de recurso pode consistir numa regra ou regime jurídico alicerçado ou extraído de vários preceitos legais ou de segmentos diferenciados destes, convocados como base ou suporte jurídico-positivo da regra ou padrão valorativo aplicado pelo tribunal à dirimição do caso (cfr. por exemplo, a situação versada nos Acórdãos nºs 116/96, 224/98, 687/99 e 434/2000» (A. e ob. cit. p. 51).
3. A aplicação implícita do critério normativo (arguido de inconstitucional)
Por outro lado, como coteja aquele A., a jurisprudência tem consolidado o seguinte sentido:
«A aplicação da norma tanto pode ser expressa como implícita: não é naturalmente indispensável que o julgador haja explicitamente fundamentado de direito a decisão que tomou através da invocação dos preceitos legais (ou da interpretação dos mesmos) especificados pelo recorrente como estando feridos de inconstitucionalidade – cf. v.g., Acórdão nº 235/93 e 545/07.
O que importa decisivamente não são os termos literais ou verbais usados pela decisão recorrida – a expressa invocação, como fundamento jurídico do decidido, dos preceitos legais que constituem 'fonte' da norma cuja constitucionalidade vinha questionada pelo recorrente – mas, numa 'visão substancial das coisas', que a solução de direito ínsita na decisão do pleito não possa, de um ponto de vista lógico-jurídico, ter deixado de passar pela consideração das normas ou sentidos normativos – isto é, dos regimes jurídicos – indicados pelo recorrente como padecendo da alegada inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos nºs 481/94, 637/94, 235/93 e 60/95).» (A. e ob. cit. p. 111).
Acrescente-se, por fim, que garantindo a materialidade efetiva da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas aplicadas, o TC tem impedido que, por simples sofismas ou retórica formalista, o tribunal a quo furte a possibilidade daquela censura – quando, por exemplo, não toma conhecimento da questão de inconstitucionalidade.
Na verdade, e continuando a citar o mesmo A., o TC:
«(v.g., Acórdãos nºs 318/90 e 176/88) entende […] que deve ser considerado como equivalente à aplicação implícita da norma cuja constitucionalidade fora adequadamente suscitada pelo recorrente o não conhecimento, pelo tribunal 'a quo', de tal questão, quando dela podia e devia ter conhecido. Implica tal jurisprudência a dispensa, para a parte interessada, da suscitação perante o tribunal 'a quo' da pertinente nulidade por omissão de pronúncia, podendo – apesar do silêncio do julgador – logo interpor recurso de constitucionalidade, com base na implícita aplicação da norma questionada como inconstitucional pelo recorrente.
Como se decidiu no Acórdão nº 355/05 – ' a este propósito há que reconhecer, antes de mais, que o Tribunal Constitucional, na verificação dos pressupostos processuais do recurso, tem uma jurisprudência firme no sentido de ser irrelevante o facto de a decisão judicial recorrida omitir o conhecimento da questão de constitucionalidade que os recorrentes pretendem ver apreciada por este Tribunal. Determinante é a circunstância de a decisão judicial ter aplicado como ratio decidendi a norma ou interpretação normativa questionada sub specie constitucionis e o reconhecimento de que essa questão foi efetivamente suscitada, pelo recorrente, perante o tribunal que proferiu aquela decisão. Nesta medida, o Tribunal Constitucional basta-se com a verificação de que o tribunal recorrido devia ter conhecido da questão de constitucionalidade suscitada» (pp. 112/113).
Portanto, deve concluir-se, como o TC bem tem afirmado – p. ex. Ac. 41/92 – e ainda citando LOPES DO REGO – «a natureza oficiosa do conhecimento da questão de inconstitucionalidade deve prevalecer sobre a regra da limitação do objeto do recurso pelo teor das conclusões das alegações» (p. 91).
B) Os pressupostos da admissibilidade do recurso
4. Estabelecido o quadro normativo em que o TC deve mover-se no julgamento desta questão prévia, passamos a demonstrar:
a) Que ao STJ estava colocada pelas partes – designadamente pela ali recorrida – a interpretação do art. 3º nº 2 do CE/91 no sentido indicado como inconstitucional;
b) Que o STJ tomou posição sobre ela – e que o seu critério interpretativo constitui, objetiva, lógica e hermeneuticamente a ratio decidendi da decisão de revogar o anterior acórdão da Relação.
Vejamos.
C) A colocação e identificação da questão de inconstitucionalidade
(…)
9. Nesta linha de raciocínio, a ora recorrente, recorrida no STJ, não tendo ali o ónus de formular conclusões – note-se que a lei só estabelece tal ónus para o recorrente – contudo, formulou as seguintes conclusões:
«6ª- com os presentes autos – e os demais – a B., ao contrário do que alega, não está a dar execução a um pedido de expropriação baseado no art. 3º nº 2 do Cód. das Expropriações, mas sim, e como diz na sua carta/decisão de 29.9.95, a cumprir a Base LXVIII.
7ª- Porém, o procedimento expropriativo não podia ser efetuado, litigiosamente, sem a DUP da expropriação – uma vez que isso mesmo resulta, desde logo, na Base XXVII, onde se lê: «Compete ao MOPTC a prática do ato que individualize os bens a expropriar nos termos do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de novembro (Código das Expropriações), o qual deverá conter a declaração de utilidade pública com caráter de urgência no prazo de 45 dias a contar da apresentação pela concessionária da documentação exigida para o efeito nos termos do Código das Expropriações. Competirá à concessionária apresentar atempadamente ao concedente todos os elementos e documentos necessários à prática do ato de declaração de utilidade pública, de acordo com a legislação em vigor».
8ª- Mesmo que assim não fosse, o disposto nos arts. 1º e 10º nºs 1 e 2 do Cód. das Exp., combinado com o disposto no art. 62º nº 2 e art. 1º do Protocolo nº 1 adicional à CEDH determinaria, sempre, que não pode existir expropriação litigiosa – como é o caso dos autos – sem o ato público administrativo da respetiva DUP.
9ª- Na verdade, na falta de DUP, e sem o consentimento da proprietária, não pode esta ser privada, à força, deste direito de propriedade – pois, a sua natureza de direito fundamental, face ao teor de arts. 62º e 17º da Constituição, e 1.308º do Cód. Civil determina que só nos casos tipificados na lei ele possa ser ofendido, como decorre de art. 18º daquela Lei Fundamental.
10ª- De resto, a interpretação por analogia, ou outra técnica – para além de supor identidade factual, o que não está sequer provado –, do art. 3º nº 2 do Cód. das Exp., invocada pela recorrente, não poderia ter sucesso, pois viola, também, frontalmente o art. 1º do Protocolo nº 1, adicional à CEDH, bem como aquelas disposições da Constituição – para além da própria Base XXVII, nºs 1 e 2 do regime jurídico da concessão, aprovado pelo DL 198/94 [aqui a negrito e sublinhado].»
(…)
10. Perante o exposto, como resumir qual o sentido do art. 3º nº 2 do CE/91 que a ali recorrida e ora recorrente sustentou ser violador de arts. 62º e 17º da Constituição?
Evidentemente, aquele sentido que a recorrente/B. colocou ao STJ como objeto do seu agravo: a interpretação no sentido de que, os imóveis destes autos mesmo não fazendo parte da DUP que abrangeu outros da mesma proprietária, e mesmo não havendo cálculo e indemnização de uma suposta unidade económica, como um todo, deve sustentar e validar o procedimento expropriativo dos autos.
Na verdade, foi contra a hipótese de procedência desta interpretação, que a ora recorrente arguiu – este critério – de violador, designadamente, do art. 62º da CRP, como os nºs 7 a 9 supra demonstram.
D) A ratio decidendi, do STJ
11. Vejamos agora o que de objetivo se retira como a base e critério normativos da decisão do STJ em revogar o supra mencionado acórdão – e portanto, em validar a expropriação dos imóveis destes autos, sem que eles no todo ou sequer em parte alguma hajam sido objeto de uma DUP. Cotejando o acórdão propriamente dito, encontra-se o seguinte:
a) «O art. 3º do CE91 que está na base da solução do caso em análise, constitui um bom exemplo de manifestação destes princípios: fixa, por um lado, a expropriação nos limites do que é necessário à realização do fim (atual) de utilidade pública que lhe preside, mas, por outro lado, não deixa de envolver nesse mesmo fim, a proteção do interesse do particular expropriado que, prejudicado por eventual fragmentação derivada da expropriação parcelar, lhe confere o direito de requerer a expropriação total.» (p. 11 do acórdão, aqui a negrito);
b) «Como se escreveu no citado acórdão deste Tribunal de 5.05.2011, desta secção “ a unidade económica que está subjacente à procedência do requerimento de expropriação total contende, não propriamente, com a unidade predial e matricial, mas antes com a unidade produtiva em que a parcela física se interliga com outras pertencentes ao mesmo proprietário, no âmbito da unidade produtiva em que todas se inserem, com vista à prossecução da finalidade económica que só o conjunto, muitas vezes, permite alcançar, sob pena de se dar guarida a um simples critério, de índole fiscal e matricial, em detrimento de um critério de racionalidade económica”.
Acresce que, como se viu, a concessionária Expropriante reconheceu esses fundamentos e aceitou aquele pedido, não havendo razão para recusar a verificação objetiva dos requisitos de que o artº 3º, nº 2, al. b) do CE91 faz depender a expropriação total o que vale para reconhecer que, por essa via, se obteve a solução que menos dano causa à Expropriada, independentemente, de discordância que, entre elas, até possa subsistir quanto à quantificação da indemnização correspondente.
Assim contextualizada, não faz sentido a exigência da DUP, relativamente às parcelas envolvidas na expropriação total e muito menos fará, expô-las a novo processo expropriativo.» (pp. 12/13, aqui a negrito).
12. Por outro lado, da mesma forma que a sombra e a noite ajudam a definir o conceito da luz e do dia, também a declaração de voto integrada no acórdão em causa ajuda à demonstração de que, a tese que fez vencimento no STJ interpretou o art. 3º nº 2 do CE no sentido de que se pode impor ao proprietário, a expropriação (individual – isto é, sem indemnização que considere o conjunto, sem unidade processual de todos os imóveis da invocada 'unidade económica!) de prédios em si mesmos não parcial nem totalmente objeto de DUP, mas considerados como fazendo parte de uma unidade económica, para efeito de não se exigir DUP na sua expropriação coativa.
(…)
a) No acórdão incidente sobre a arguição de nulidade/reforma do acórdão inicial do STJ, este declarou o seguinte:
«Depois, a solução jurídica que, no mesmo acórdão, foi encontrada, não nasceu do nada, antes respeitou o objeto do recurso tal como fora definido pelas conclusões expostas pela Recorrente no termo da sua alegação e que remetia para o quadro normativo delineado no acórdão da Relação. E na sua fundamentação optou-se por dar crédito a argumentação jurídica consistente e sustentada em outras decisões e que, segundo nos parecia, melhor realizava o direito material no caso concreto, se ajustava à realidade indesmentível que a paisagem urbana do local retrata e desse modo fosse eficaz no tocante ao convencimento dos respetivos destinatários» (aqui a negrito).
Deste modo, se dúvidas existissem, o STJ confirma – de resto, o que objetiva e hermeneuticamente tinha já de concluir-se, pela leitura dos autos – que se moveu afinal, no âmbito da interpretação do art. 3º nº 2 do CE que a Relação efetuou e as partes invocaram nas respetivas alegações.
Portanto, é agora já absolutamente claro que o STJ validou a expropriação dos imóveis dos autos – ao revogar o acórdão da Relação que anulara todo o processo, por falta de DUP – por entender o art. 3º nº 2 do CE, interpretado no sentido segundo o qual, um pedido de expropriação da unidade económica justifica juridicamente a decisão (e o processo coativo) de expropriação de cada parte individual, mesmo sem estar feita, nos autos, a prova judicial dos pressupostos concretos previstos no citado art. 3º nº 2 CE/91, e sem existir um processo único, avaliação e indemnização únicas do alegado conjunto económico.
13. Ora, foi precisamente contra este critério normativo – esta interpretação retirada da previsão do art. 3º nº 2 do CE/91 – que a ora recorrente invocou ao STJ, na sua qualidade de parte aí recorrida, que tal entendimento violaria o princípio da legalidade de expropriar densificado em art. 62º da CRP, no sentido de que a ablação do direito de propriedade não pode ser imposta sem se conferir ao proprietário, afinal, os direitos de defesa e impugnação que só a DUP permite.
No fundo, e em resumo, esta é a questão de inconstitucionalidade que a ora recorrente, como recorrida no STJ, colocou a este Tribunal – e se citou acima sob os nºs 7 ao 9.
É certo que o discurso da decisão do STJ não toca sequer nessa matéria – da inconstitucionalidade – nem mesmo quando lhe foi efetuada a arguição de nulidade e o pedido de aclaração (… aos quais o STJ não quis responder com seriedade, antes acusou a expropriada de querer protelar os autos!... o que é obviamente absurdo, pois a proprietária está duplamente prejudicada: sem imóveis e sem indemnização!).
Mas, como o TC bem tem julgado, a questão de inconstitucionalidade constitui sempre matéria de apreciação oficiosa – valendo aqui, tal e qual, a sua jurisprudência supra mencionada sob o nº 3.»
3. Notificada para o efeito, a recorrida veio responder nos seguintes termos:
«1. Segundo a Recorrente, ora reclamante, o STJ terá proferido a decisão recorrida, interpretando a faculdade dada pelo teor de als. a) e b) do n.º 2 do art. 3ºdo CE/91, no sentido de que, a expropriação coativa, em processo expropriativo de apenas uma parcela, com indemnização apenas de uma parte, afinal, parte esta julgada pelo Tribunal como integrada numa unidade económica de múltiplos imóveis, porém não abrangidos nem avaliados como um conjunto naquele mesmo processo expropriativo pode sustentar-se apenas com um pedido e decisão genéricos de expropriação — e mesmo sem referência concreta e independentemente da verificação Judicial dos pressupostos concretos daqueles preceitos do citado art. 3° n° 2 do CE/91» (sublinhado acrescentado).
2. Conforme se afirma na douta decisão sumária, a Recorrente pretende apenas colocar em crise uma decisão jurisdicional concretamente adotada pelo STJ, da qual discorda. Note-se que, nem mesmo na reclamação a que ora se responde, a Recorrente logrou demonstrar o contrário, limitando-se antes a tecer algumas considerações sobre a distinção entre controlo normativo e fiscalização de decisões jurisdicionais, dispensando-se, porém, de expor as razões pelas quais entende que a sua pretensão cairia na primeira dessas categorias (cfr. a p. 3 da reclamação).
3. A Recorrente tão-pouco conseguiu demonstrar que o aresto tenha aplicado o alegado critério normativo implícito acima citado. Conforme já se teve oportunidade de expor perante este Tribunal, o STJ não aplica, no Acórdão recorrido, como ratio decidendi da respetiva decisão, a norma do artigo 3.°, nº 2, do Código de Expropriações de 1991 (doravante, CE/91) interpretada no sentido referido pe1a Recorrente.
4. Com efeito, o aresto recorrido não contém, nem implicitamente, uma interpretação da citada norma no sentido apontado pela Recorrente.
5. Conforme já anteriormente foi salientado, a Recorrente invoca como questão de constitucionalidade a interpretação do artigo 3.°, nº 2, citado, supostamente levada a cabo pelo STJ, designadamente «sem referência e independentemente da verificação dos requisitos pressupostos concretos das alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 3º do CE/91»; pelo contrário, o aresto é muito c1aro ao considerar não haver razão para «recusar a verificação objetiva dos requisitos de que o artigo 3º, n.º 2, alínea b), do CE9 1 faz depender a expropriação total».
6. Impõe-se, pois, a conclusão de que a norma do artigo 3.°, nº 2, do CE/91 não foi interpretada e aplicada ao caso dos autos com o sentido que a Recorrente acusa de ser inconstitucional, pelo que não tendo a norma impugnada sido aplicada pela decisão recorrida não pode o Tribunal conhecer do objeto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional (cf., por exemplo, os Acórdãos nºs 313/94, 187/95 e 366/96).
7. Por fim, a Recorrida acompanha ainda o entendimento deste Tribunal quanto à não verificação do pressuposto previsto no artigo 72.°, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
8. De facto, nem mesmo uma leitura «generosa» do texto citado na decisão sumária permite considerar que a ora Recorrente suscitou a questão de constitucionalidade em conformidade com as exigências da citada disposição.
9. Por um lado, a Expropriada, pura e simplesmente, não enunciou perante o STJ a alegada «interpretação normativa», ora reputada de inconstitucional. Como é sabido, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal, a Expropriada tinha «o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito que considera inconstitucional» (cfr., p. ex., o Ac. n.º 21/06; sublinhado acrescentado). Enunciar essa dimensão normativa «consiste sempre na definição, positiva e expressa, do preciso sentido em que determinada norma ou conjunto de normas foram interpretados [...]» (cfr. o Ac. n.º 244/07; sublinhado acrescentado). É por demais evidente que a Expropriada não cumpriu tal ónus.
10. Por outro lado, a Recorrente não consubstancia, nem sequer em termos mínimos, os motivos pelos quais uma qualquer suposta interpretação normativa (não enunciada, como vimos) colidiria com o disposto nos preceitos constitucionais que refere. Ora, como é sabido, este Tribunal tem exigido «um mínimo de argumentação destinada a demonstrar a desconformidade entre o sentido normativo que se quer ver desaplicado e o parâmetro constitucional que deve conduzir a repudiá-lo» (cfr., p. ex., o Ac. nº 853/05).
11. Porém, numa tentativa de demonstrar o contrário, a Recorrente vem agora transcrever dois excertos mais alargados das contra-alegações que apresentou no âmbito do recurso de agravo interposto para o STJ.
12. Mas nem mesmo o texto agora destacado, ou qualquer outro excerto da citada peça processual, apresenta a necessária enunciação expressa, clara e percetível do exato sentido normativo reputado de inconstitucional e uma argumentação, ainda que sucinta, no sentido da incompatibilidade dessa interpretação normativa com qualquer comando constitucional.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Em primeiro lugar, verifica-se que a reclamante apenas ataca, substantivamente, dois dos três fundamentos de não conhecimento que presidiram à decisão reclamada. Com efeito, apesar de mencionar o problema da falta de dimensão normativa do objeto do presente recurso, a reclamante limita-se a extrair excertos doutrinários, sem que proceda à aplicação daquela mesma doutrina ao caso aqui concretamente em apreço. Ora, de nada lhe vale invocar o (correto) ensinamento de Lopes do Rego, segundo o qual “o objeto de recurso pode consistir numa regra ou regime jurídico alicerçado ou extraído de vários preceitos legais ou de segmentos diferenciados destes, convocados como base ou suporte jurídico-positivo da regra ou padrão valorativo aplicado pelo tribunal à dirimição do caso (cfr. por exemplo, a situação versada nos Acórdãos nºs 116/96, 224/98, 687/99 e 434/2000” (cfr. Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, cit., 51)
Evidentemente, o modo como a reclamante configurou o objeto do recurso não permite nele detetar um critério normativo de decisão dotado de generalidade e de abstração, antes se aprisionando no concreto circunstancialismo que presidiu à solução, pelos tribunais recorridos, do litígio que opôs os sujeitos processuais. Mesmo após ter sido convidada a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso, entendeu fixar o objeto do recurso nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 3º do Código de Expropriações de 1991, quando interpretadas “no sentido de que, a expropriação coativa, em processo expropriativo de apenas uma parcela, com indemnização apenas de uma parte, afinal, parte esta julgada pelo Tribunal como integrada numa unidade económica de múltiplos imóveis, porém não abrangidos nem avaliados como um conjunto naquele mesmo processo expropriativo, pode sustentar-se apenas com um pedido e decisão genéricos de expropriação – e mesmo sem referência concreta e independentemente da verificação judicial dos pressupostos concretos daqueles preceitos do citado art. 3º nº 2 do CE/91” (fls. 2026), a ora reclamante optou por peticionar uma nova apreciação das concretas circunstâncias de um caso já julgado pelas instâncias competentes, não se libertando dessas específicas particularidades.
Por conseguinte, mais não resta do que rejeitar a reclamação deduzida, na medida em que a reclamante não logrou demonstrar a existência de uma verdadeira dimensão normativa na questão fixada como objeto do presente recurso.
Na medida em que os demais fundamentos de não conhecimento do objeto do recurso – falta de aplicação efetiva da questão normativa e falta de suscitação processualmente adequada – foram convocados, pela decisão reclamada, a mero título subsidiário, não se justifica deles apreciar, em função da improcedência da reclamação quanto ao primeiro fundamento de não conhecimento.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pela recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 25 de outubro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.