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Processo n.º 597/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., arguido no processo com o NUIPC 911/10.5TBOLH, reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), do despacho de 27 de Junho de 2012, que não lhe admitiu recurso que interpôs, para o Tribunal Constitucional.
Sustenta que o recurso deve ser admitido, com os seguintes fundamentos (itálico acrescentado, como nos segmentos adiante transcritos):
«1 - O arguido neste momento encontra-se em liberdade, o que se deveu a excesso da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (OPHVE) à ordem do processo que correu os seus termos pelo 2.° Juízo do Tribunal de Olhão sob o n.° 201/08.3 JELSB, ora renumerado de 911/10.5TBOLH.
2 - Naquele tribunal e por douto acórdão, foi o arguido condenado na pena de 7 anos e 3 meses de prisão, com a qual não se conformou e da qual interpôs o competente recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
3 - Desde logo veio arguir na motivação de recurso então apresentada a questão de inconstitucionalidade por violação do Princípio da Igualdade, uma vez que no seu entender a aplicação ou não do disposto no art.° 31.° do D. L. n.° 15/93 de 22 de Janeiro não pode ser um poder discricionário do juiz, mas sim de aplicação, ou não, a todos os que tiverem a mesma posição processual nos autos em apreço. Assim,
4 - Entendeu o ora reclamante que tendo mantido uma postura de completa colaboração e estando muito menos envolvido nos factos sub judice do que outros arguidos, deveria de lhe ter sido aplicada também a norma do supra citado artigo sob pena de se estar a violar o art.° 13.° da C.R.P.
5 - Mais tarde, a apenas perante a completa 'tábua rasa' quer o Tribunal da Relação de Évora fez do recurso do arguido, ora reclamante, ao atribuir-lhe responsabilidades pelo tráfico de 2 toneladas de haxixe - quando os autos referiam 1.300 Kg - e de uma segunda viagem a realizar - e que não teve qualquer suporte probatório produzido em audiência de julgamento - veio o ora reclamante, ao aperceber-se que todo o seu recurso mereceu uma resposta de 2 páginas da Relação de Évora não fora, efectivamente, reapreciado, ou seja, se realmente a Constituição garante um 2.° grau de jurisdição e se a 2.ª instância realmente não age de acordo como deve agir uma 2.ª instância, existe ou não uma inconstitucionalidade material?
6 - Que a completa discricionariedade na aplicação do art.° 31.° viola o
Princípio da Igualdade constante do art.° 13.° da C.R.P. não levantará grandes questões mas, a manter-se, leva a que se aplique a um arguido, não primário e responsável por um transporte efectivo de 6 toneladas de haxixe, de outro, também efectivo, com cerca de 1,3 toneladas, com um outro transporte, não consumado e que ainda estava em preparação, de cerca de 2 toneladas e ainda condenado por um crime de corrupção activa venha a ser condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão enquanto que um arguido que é primário, que manifestamente não detinha os conhecimentos necessários para se poder dedicar à actividade de tráfico, que confessou os factos pelos quais vinha acusado, quer em sede de inquérito, quer em sede de julgamento, que comprovadamente está familiar, social e profissionalmente bem inserido na sociedade venha a ser condenado, por um único crime de tráfico e na forma simples numa pena de 7 anos e 3 meses de prisão.
7 - Mas não só, o ora recorrente ainda teve de 'entender' que inexiste qualquer necessidade de aclaração quando desde a resposta do Ministério Público às motivações de recurso se vêm a referir um transporte de quase duas toneladas, isto como se uns meros 700 kg de haxixe sejam desprezíveis... razão por que se defende e defenderá que, se bem que o disposto no art.° 31.° do D. L. n.° 15/93 não seja de aplicação automática, o mesmo deverá ter em conta a efectiva colaboração prestada e os frutos efectivos que de tal colaboração emergiram, sob pena de se estar perante mera confissão, essa já não prevista pelo citado art.° 31.°, o que poderá resultar, no caso concreto dos presentes autos, numa verdadeira violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado no art.° 13.° da C.R.P.
8 - Situação que desde já poderia e deveria de ter sido colmatada pela Relação de Évora, mas que se preferiu estribar em mera fundamentação mais ou menos inconsistente que apenas tem a vantagem de não se poder, assim, considerar como inexistente; em bom rigor e tal apenas poderá ser devidamente apreciado se de forma global, se encontra realmente restringido o direito constitucionalmente consagrado de recurso, da garantia de um duplo grau de jurisdição. Pois que,
9 - Se se tem entendido, designadamente ao nível da jurisprudência do Tribunal Constitucional, é que o legislador não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer, tal é o que está a suceder no caso em concreto, uma vez que, se na verdade a Relação não funcionou como um verdadeiro tribunal de recurso, está ou não violado o disposto na alínea c) do art.° 400.° do C.P.P. apenas porque a pena aplicada é inferior a 8 anos? Somos de parecer que tal padece de inconstitucionalidade material e que assim, pode e deve ser avaliada e apreciada pelo tribunal constitucional.
10 - E isto porquanto, na verdade, o ora recorrente não teve essa garantia de defesa num único grau de jurisdição, o que se pede aqui não é um segundo grau de jurisdição, como parece entender o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, mas sim que a decisão da primeira Instância que condenou o ora recorrente a 7 anos e 3 meses de prisão seja realmente apreciada por um Tribunal Superior, num primeiro grau de jurisdição.
11 - Agora, quando é notório e evidente que da diferença da colaboração prestada entre dois dos arguidos num mesmo processo, resulta tão claro que a colaboração de um só foi maior porque estava dentro de um mundo no qual já vivia há muito tempo e para o qual acabou por assediar outros, enquanto que os que erradamente o seguiram apenas podem oferecer aquilo que tinham para oferecer do seu modesto conhecimento, acaba por premiar-se, com a solução adoptada pela 1.ª instância e mantida pela Relação de Évora, o verdadeiro triunfo dos maus.
12 - No mesmo sentido, a decisão do Exmo. Sr. Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ao limitar a decisão da reclamação apresentada e a recusar a subida do recurso a este Venerando Tribunal, impede, mais uma vez, que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade material da forma como se limita verdadeiramente o direito a uma 2.ª jurisdição seja impedido de forma meramente formal.
13 - Ou seja, se formos verdadeiramente criminosos, podemos sempre oferecer mais do que aqueles que, não sendo tão criminosos como nós, não estão, assim, em posição de o oferecer, o que, de todo, não se afigura como sendo a forma correcta de aplicar e interpretar o disposto no já sobejamente citado art.° 31.°, que aplicado de forma correcta se pretende ver através do presente recurso para este venerando Tribunal, isto é, sem que exista uma violação do Principio da igualdade contido no art.° 13.° da C.R.P. Assim,
14 - Ao não se pronunciar sobre a pretendida alteração da matéria de facto dada por provada, em especial atendendo a que a 1.ª instância privilegiou as declarações de um dos arguidos no autos em completo detrimento do afirmado pelos demais - que considerou apenas na medida em que se aproximavam das do aludido arguido - acaba por se estar em presença de uma inconstitucionalidade na medida em que se pretende impedir mo recurso até ao Supremo Tribunal de uma questão que não foi apreciada pela Relação, o que impede um verdadeiro duplo grau de jurisdição, pelo que terá de se considerar o disposto na alínea c) do art.° 400.° do C.P.P. como padecendo de inconstitucionalidade, a qual desde já se arguiu para todos os legais efeitos.
15 - Face ao supra exposto e por se entender que a interpretação do Venerando Tribunal da Relação de Évora, bem como do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é inconstitucional e por tal inconstitucionalidade ter sido arguida, tempestivamente, tanto no recurso por si interposto para a Relação de Évora, bem como na reclamação para o Presidente do STJ, se requer que seja admitido o recurso dirigido a este Tribunal, com as naturais consequências legais».
2. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, em virtude da questão de constitucionalidade invocada não integrar a ratio decidendi da decisão recorrida
Cumpre decidir.
II- Fundamentação
3. Para a apreciação da presente reclamação, relevam as seguintes ocorrências processuais:
3.1. O arguido A., ora reclamante, foi condenado, pelo 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Olhão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/1, na pena de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão;
3.2. Inconformado, o reclamante recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão proferido em 25/10/2011, julgou improcedente o recurso;
3.3. O reclamante interpor, então, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o que, por despacho do Relator no Tribunal da Relação de Évora, não foi admitido, por aplicação do disposto na alínea f) do n.º1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal;
3.4. Desse despacho, reclamou para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Na última conclusão do requerimento, sustenta que:
«H –Ao não se pronunciar sobre a pretendida alteração da matéria de facto dada como provada, em especial atendendo a que a 1ª instância privilegiou as declarações de um dos arguidos nos autos em completo detrimento do afirmado pelos demais – que considerou apenas na medida em que se aproximavam das do aludido arguido – acaba por se estar em presença de uma inconstitucionalidade na medida em que se pretende impedir o recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça de uma questão que não foi apreciada pela Relação, o que impede um verdadeiro duplo grau de jurisdição, pelo que terá de se considerar o disposto na alínea c) do art.º 400.º do C.P.P. como padecendo de inconstitucionalidade».
3.5. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 4 de junho, decidiu indeferir a reclamação. Quanto à questão de inconstitucionalidade, exarou :
«4. Por outro lado, não há que conhecer da inconstitucionalidade da norma art. 400.º, n.º1, alínea c) do CPP, tendo em conta que não constituiu o fundamento da decisão da reclamação e o despacho reclamado não se baseou no referido preceito processual para não admitir o recurso».
3.6. Veio o arguido A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo que: «terá de se considerar o disposto na alínea c) do art.º 400.º do C.P.P. como padecendo de inconstitucionalidade, a qual já se arguiu para todos os legais efeitos».
3.7. Sobre esse requerimento de interposição de recurso para este Tribunal Constitucional recaiu o despacho reclamado, proferido pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos seguintes termos:
«A norma cuja inconstitucionalidade vem invocada – artigo 400.º, n.º1, alínea c) do CPP – não foi aplicada, como fundamento, na decisão recorrida.
Assim, não admito o recurso – artigos 70.º, n.º1, alínea b) e 76.º, n.º1 da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro».
4. Como se vê, o fundamento da não admissão do recurso reside na circunstância da norma cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada não ter sido aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida.
A esse propósito, nada se diz na reclamação. O reclamante limita-se a recolocar a questão de constitucionalidade, praticamente nos mesmos termos que havia inscrito no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, com referência à alínea c) do n.º1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
Diz esse preceito que não é admissível recurso – para o Supremo Tribunal de Justiça – de acórdão proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo.
Ora, como ficou expresso, de forma inequívoca, na decisão recorrida, a não admissão do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça fundou-se unicamente na alínea f) do n.º1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na qual se estabelece a irrecorribilidade dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que confirmem decisão de 1ª instância que apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Nessa medida, falece um dos pressupostos do recurso de constitucionalidade: efetiva aplicação da norma jurídica visada, sem o que o recurso de constitucionalidade não reveste utilidade, pois o seu eventual sucesso nenhum efeito teria na decisão recorrida (cf. Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 109- 113).
5. Cumpre, assim, de acordo com a alínea b) do n.º1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, confirmar a decisão de não admissão do recurso e indeferir a reclamação apresentada pelo arguido A..
III. Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação.
7. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Notifique.
Lisboa, 24 de outubro de 2012.- Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.