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Processo n.º 434/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Em 25 de agosto de 2012, o Relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto por A. (fls. 1535 e segs.), considerando que, incidindo o recurso sobre o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a fls. 1463 e segs., o mesmo havia decidido apenas a questão da admissibilidade do recurso então deduzido, não tendo apreciado qualquer das questões a que respeitam as alegadas inconstitucionalidades.
Notificado desta decisão, o recorrente deduziu reclamação para a conferência, por requerimento de fls. 1542 e segs., invocando, em síntese, que o recurso de constitucionalidade interposto tinha por objeto o acórdão da Relação de fls. 1335 e segs., e não o mencionado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o qual se havia limitado a determinar a inadmissibilidade de recurso para aquele Tribunal.
O Procurador-Geral-Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se pela improcedência da reclamação, sustentando que competia ao recorrente o ónus do cabal esclarecimento quanto à decisão de que vinha interposto o recurso de constitucionalmente. Invocou ainda a impossibilidade de conhecimento do objeto do recurso, pelo facto de o mesmo não integrar questão respeitante a inconstitucionalidade normativa nem à que foi, efetivamente, a ratio decidendi do acórdão impugnado.
2. Por despacho de fls. 1568, o Relator determinou a notificação do recorrente para, querendo, vir pronunciar-se sobre as questões suscitadas pelo Ministério Público bem como sobre a eventualidade de vir a considerar-se que não ocorreu suscitação adequada da questão de constitucionalidade perante o Tribunal da Relação, nos termos prescritos pelo artigo 72.º, n.º 2 da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional – LTC).
Respondeu o recorrente nos seguintes termos:
«(…) tendo sido notificado do teor da resposta do MP e do despacho de fls. 1568 do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Relator, vem dizer o seguinte:
A RESPOSTA DO MP
Com todo o respeito, o MP não percebeu o que o recorrente disse. Com certeza a culpa é só deste, por não se saber explicar melhor, problema que já parece vir do próprio requerimento de interposição do recurso.
Sem prometer grandes resultados, o Requerente vai contudo tentar clarificar ao mais elementar nível que lhe seja possível, o que pretende dizer (independentemente da razão que tenha ou que não tenha!).
E vai fazê-lo tendo por referência o que o MP diz no seu artigo 10º, a fls. 6, para que se entenda que a conclusão a que o MP aí chegou é da única autoria deste, que não da do Recorrente.
A QUESTÃO COLOCADA PELO RECORRENTE
Primeiro passo para a compreensão da questão colocada:
Regulando a motivação do recurso quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, diz assim o artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP: As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
Retenha-se o predicado impõem.
Na economia do preceito, o que significa ele?
No humilde entendimento do aqui recorrente, significa o seguinte: quando o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, tal recurso só será suscetível de conduzir à alteração de tal matéria pelo Tribunal da Relação se essa impugnação se fundar em concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida, mas já não em concretas provas que apenas permitam decisão diversa da recorrida.
Segundo passo para a compreensão da questão colocada:
Para o modesto entender do recorrente, isso significa que a lei adjetiva restringiu o poder do Tribunal ad quem de modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto à situação em que se demonstre que existem concretos meios de prova, no processo, que imponham decisão diversa da proferida.
Terceiro passo para a compreensão da questão colocada:
Os recursos constituem meios de reapreciação das decisões proferidas por tribunais inferiores e das questões delas objeto, podendo anulá-las ou modifica-las caso tais decisões tenham incorrido em alguma nulidade não suprida ou violado por qualquer forma normas adjetivas ou substantivas.
Se a sentença nada violou, se a sentença é insuscetível de ser censurada porque afinal não incorreu em qualquer nulidade, observou todas as normas adjetivas pertinente e procedeu à correta decisão de facto e de direito não tendo violado nenhuma norma ou princípio jurídico, o Tribunal ad quem só pode confirmá-la.
Quarto passo para a compreensão da questão colocada:
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (art.º 128º, nº 1 do CPP).
Quinto passo para a compreensão da questão colocada:
Se o Tribunal a quo, colocado perante meios de prova que lhe permitiam decidir sim ou não forma a sua convicção livremente no sentido de que não pode em rigor dizer sim nem dizer não, porque a questão é, para si, face a essa prova produzida, um non liquet, e, por consequência do princípio in dubio pro reo julga “não”, se ele se moveu dentro dos estritos limites do disposto no artigo 127º do CPP tal decisão é insuscetível de censura pelo tribunal superior.
Sexto passo para a compreensão da questão colocada:
O julgamento na primeira instância é a expressão de princípios que justificam esse cuidado extremo na modificação das decisões sobre a matéria de facto por ele tomadas: o da oralidade e da imediação.
Sétimo passo para a compreensão da questão colocada:
Face ao que se disse, percebe-se (julga o Recorrente) que é irrelevante invocar perante o tribunal superior que existem meios de prova que permitam convicção e julgamento diverso; se assim fosse, esvaziava-se totalmente o princípio da livre apreciação da prova, tornando-o inútil e, no caso concreto, isso era feito também à custa da violação o princípio do in dubio pro reo.
Oitavo passo para a compreensão da questão colocada:
O que é que se passou no caso concreto?
O Tribunal da Relação do Porto, face a alguns meios de prova que permitiam entendimento diverso (que permitiam o tal sim, embora o não impusessem!), sobrepôs a sua convicção à do tribunal da primeira instância, sem que a deste tivesse extravasado do disposto no artigo 127º do CPP.
Leia-se agora o que o Recorrente escreveu em determinado momento das conclusões do seu recurso:
QUANTO ÀS INCONSTITUCIONALIDADES NA INTERPRETAÇÃO/ APLICAÇÃO DO ARTIGO 127º DO CPP E DO ARTIGO 412º, Nº 3, ALÍNEA B) DO CPP SUBJACENTE À DECISÃO RECORRIDA
18. A decisão recorrida, sem colocar em causa a existência de meios de prova de sentido contrário, no que aos factos cujo julgamento modificou para provado se refere, desprezou completamente a fundamentação ou motivação da sentença da primeira instância e o que fez foi sobrepor a sua própria apreciação da prova ao estado de dúvida reconhecido nessa sentença que, com base nessa dúvida e fazendo apelo ao princípio constitucional da presunção de inocência, tinha absolvido o arguido para, repetindo parte desse mesmo julgamento sem verdadeira renovação da prova, chegar a convicção diversa.
19. A decisão recorrida, que socorrendo-se apenas de parte da prova documental e testemunhal na qual a primeira instância havia fundado a decisão absolutória em obediência o princípio constitucional de presunção de inocência e sem que tal prova parcial beneficiasse de disposição legal que a subtraísse ao princípio da livre apreciação a prova consagrado no artigo 127º do CPP, consagra de forma implícita uma interpretação materialmente inconstitucional quer da norma do artigo 127º do CPP, quer da norma da alínea b), do nº 3 do artigo 412º do CPP, porque violadoras quer do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, nº 2, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa (princípio esse expressamente invocado na sentença da primeira instância), quer do princípio constitucional que assegura ao arguido em processo criminal todas as garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1 da CRP, quer o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva quer no seu sentido mais amplo, quer no que se refere à garantia de procedimento processual equitativo (cfr. art.º 20º, nº 1 e nº 4, parte final, da CRP), inconstitucionalidades que expressamente e invocam.
20. O TRP funcionou não como um tribunal de recurso, mas como instância de novo julgamento, truncado, tendo ido à procura de uma nova convicção, subvertendo e aniquilando a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.
Será que o Recorrente desta vez se fez entender? É nessa firme expectativa que se aguarda o melhor deferimento, com a consequente apreciação do recurso interposto.»
3. O recurso de constitucionalidade interposto pelo ora reclamante tem por objeto, nos termos do respetivo requerimento de interposição constante de fls. 1511 e seguintes, a eventual inconstitucionalidade das normas do artigo 127.º e 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (CPP), nos termos melhor explicitados nos seguintes parágrafos:
“(…)
No recurso interposto do Acórdão do TRP, o recorrente formulou, para o que aqui importa, as seguintes conclusões:
QUANTO ÀS INCONSTITUCIONALIDADES NA INTERPRETAÇÃO/ APLICAÇÃO DO ARTIGO 127º DO CPP E DO ARTIGO 412º, Nº 3, ALÍNEA B) DO CPP SUBJACENTE À DECISÃO RECORRIDA
18.A decisão recorrida, sem colocar em causa a existência de meios de prova de sentido contrário, no que aos factos cujo julgamento modificou para provado se refere, desprezou completamente a fundamentação ou motivação da sentença da primeira instância e o que fez foi sobrepor a sua própria apreciação da prova ao estado de dúvida reconhecido nessa sentença que, com base nessa dúvida e fazendo apelo ao princípio constitucional da presunção de inocência, tinha absolvido o arguido para, repetindo parte desse mesmo julgamento sem verdadeira renovação da prova, chegar a convicção diversa.
19.A decisão recorrida, que socorrendo-se apenas de parte da prova documental e testemunhal na qual a primeira instância havia fundado a decisão absolutória em obediência o princípio constitucional de presunção de inocência e sem que tal prova parcial beneficiasse de disposição legal que a subtraísse ao princípio da livre apreciação a prova consagrado no artigo 127º do CPP, consagra de forma implícita uma interpretação materialmente inconstitucional quer da norma do artigo 127º do CPP, quer da norma da alínea b), do nº 3 do artigo 412º do CPP, porque violadoras quer do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, nº 2, primeira parte, da Constituição da República Portuguesa (princípio esse expressamente invocado na sentença da primeira instância), quer do princípio constitucional que assegura ao arguido em processo criminal todas as garantias de defesa, consagrado no artigo 32º, nº 1 da CRP, quer o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva quer no seu sentido mais amplo, quer no que se refere à garantia de procedimento processual equitativo (cfr. art.º 20º, nº 1 e nº 4, parte final, da CRP), inconstitucionalidades que expressamente e invocam.
20. O TRP funcionou não como um tribunal de recurso, mas como instância de novo julgamento, truncado, tendo ¡do à procura de uma nova convicção, subvertendo e aniquilando a livre apreciação cia prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade.
21. Devem, pois, as invocadas inconstitucionalidades materiais ser declaradas e, em consequência, revogar-se o Acórdão recorrido, por efeito disso se confirmando a sentença proferida pela primeira instância.
(…).”
Seja qual for a espécie de recurso, um ónus elementar tem o recorrente, que é o de indicar a decisão que pretende impugnar. Só ele sabe que acto jurisdicional quer impedir que transite em julgado, submetendo-o à apreciação do tribunal superior (hoc sensu). É um requisito que se cumpre mediante uma declaração formal. Aliás, de cumprimento facílimo.
Ora, o citado requerimento foi endereçado ao Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça e deduzido na sequência de acórdão que, rejeitando pedido de aclaração, consolidou a anterior decisão de inadmissibilidade de recurso da decisão da Relação. Não foi, no entanto, explicitado pelo recorrente que, face a tal decisão de rejeição do recurso, o objeto (em sentido processual, i.e. a decisão recorrida) do novo recurso que então interpunha – o recurso de constitucionalidade – era a referida decisão da Relação e não a decisão de inadmissibilidade proferida pelo Supremo, a qual consubstanciava a última pronúncia jurisdicional constante dos autos. Assim, não havendo indicação expressa por parte do recorrente, presumiu-se que a decisão contestada seria a decisão proferida em último lugar, tanto mais que o recurso foi endereçado ao Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça e não ao Desembargador Relator, como decorre do artigo 76.º, n.º 1 da LTC, que prevê que a admissão do recurso de constitucionalidade é da competência do tribunal que proferiu a decisão recorrida. Além disso, sustentava-se que a questão de constitucionalidade tinha sido suscitado na alegação para o Supremo Tribunal de Justiça o que, em termos de colocação da questão de modo processualmente adequado, significa que foi a esse tribunal que se colocou a questão e é da decisão dele que se discorda.
Assim, nenhum elemento externo da peça processual ou do seu contexto processual indiciava que a vontade processual do recorrente – que é coisa diversa de essa vontade estar em conformidade com o regime legal – era a de erigir em objecto do recurso outro acto que não o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça. Pelo que foi relativamente a este que se analisou a verificação dos pressupostos do recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
4. Ainda que assim se não entenda e se admita que se trata de aspeto cujo esclarecimento poderia ter ocorrido por via de despacho-convite, devendo o recurso ter-se por interposto não da decisão do Supremo Tribunal de Justiça mas sim do acórdão da Relação de fls. 1335 e segs., mesmo assim a reclamação improcede. Efectivamente, ainda que não proceda aquele impedimento quanto ao conhecimento do objeto do recurso, subsistem outras questões que obstam à apreciação do mérito do mesmo, tendo o recorrente tido a devida oportunidade para se pronunciar quanto às mesmas, face ao despacho de fls. 1568.
4.1. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, deve o mesmo ter por objeto, desde logo, uma questão normativa, versando sobre uma norma ou uma sua dada dimensão ou interpretação. Não tem lugar, no âmbito da fiscalização concreta efetuada por este Tribunal Constitucional, a apreciação de quaisquer outros aspetos da decisão recorrida, designadamente questões relativas à subsunção dos factos ao enquadramento legal aplicável ou à apreciação e valoração da prova. O que o Recorrente impugna, no entanto, não é uma qualquer questão de inconstitucionalidade normativa referente à eventual violação pelo bloco legal impugnado, ainda que numa certa interpretação, de normas ou princípios constitucionais.
O objeto do recurso prende-se com a avaliação da prova feita pelo Tribunal da Relação, em desconformidade com o que havia sido decidido na primeira instância e em sentido contrário aos intentos do recorrente. Aliás, é o próprio recorrente que assume que a questão de constitucionalidade normativa que ali apresenta seria uma questão reflexa daquela outra, principal, assente na apreciação da prova, sustentando que “a decisão recorrida (…) consagra de forma implícita uma interpretação materialmente inconstitucional” (cfr. fls. 1374). A inconstitucionalidade seria, portanto, uma qualidade imputável à atividade do tribunal recorrido e não a uma qualquer norma que o mesmo tivesse aplicado, donde resulta a inidoneidade do objeto do presente recurso que exibe, no sistema português de fiscalização concreta, um caráter exclusivamente normativo.
4.2. Acresce ainda o facto de que o modo como o recorrente suscitou a questão durante o processo não satisfaz o ónus consagrado no artigo 72.º, n.º 2 da LTC. Com efeito, para que se tenha por adequadamente suscitada determinada questão de inconstitucionalidade, é necessário que o sujeito processual especifique perante o tribunal recorrido, ainda que em termos sumários, as razões ou motivos de tal juízo, em termos tais que se configure um dever de pronúncia sobre essa mesma questão. Tal ónus de especificação ou justificação não foi, no entanto, observado pelo recorrente que se limitou a enunciar as razões da sua discordância com o modo como a decisão recorrida valorou a prova, afastando-se assim do que havia sido o entendimento patenteado em primeira instância, sem esclarecer de que modo é que, por essa via, se verificaria a violação das normas e princípios constitucionais convocados, designadamente as garantias de defesa em processo criminal, a presunção de inocência e o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação apresentada e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 UCs.
Lisboa, 24 de outubro de 2012.- Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral.