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Processo n.º 672/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. No presente recurso de constitucionalidade, interposto por A., e B., foi proferida, em 19 de Novembro de 2003 a decisão sumária de fls. 871 e segs. dos autos, de não conhecimento do recurso e de condenação das recorrentes em custas.
É o seguinte o texto dessa decisão:
«I. Relatório
1. Em 6 de Julho de 2000, A., e B. propuseram, no Tribunal de Comércio de Lisboa, acção contra C., D., E., F., G., H., I., J., L. e M., para obter a condenação destes no pagamento da quantia de 25 007 474 pesetas espanholas à 2ª autora, e de 65 466 281$00 à primeira. Por despacho proferido em 8 de Maio de 2002, o juiz daquele Tribunal absolveu os réus da instância por, estando em causa actos tidos pelas demandantes como ilícitos e de concorrência desleal (artigos 483º do Código Civil, 195º a 197º do Código Penal, 260º, alínea i), e 266º do Código da Propriedade Industrial então vigente), o tribunal competente não ser o Tribunal de Comércio. Inconformadas, as demandantes agravaram para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 5 de Dezembro de 2002, confirmou a decisão recorrida.
2. Ainda insatisfeitas, as demandantes recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por acórdão de 20 de Maio de 2003, negou provimento ao agravo, dizendo:
“3.- Na petição inicial, as autoras, ao procederem ao ‘enquadramento jurídico’
(art. 269 e ss), expressamente afirmam ‘a ilicitude funda-se (i) na violação e aproveitamento indevido dos segredos relativos à actividade comercial das AA.
(arts. 195º, 196º e 197º do Cód. Penal e art. 483º do CC), no desvio de trabalhadores, na apropriação e desvio de património e desvio de clientes das AA. (arts. 260º, i), e 266º do Cód. da Propriedade Industrial, relativos à prática do crime de concorrência desleal, e art. 483º, n° 1, do CC)’ -art. 271º. Ilícitos criminais. Se bem que o tribunal não esteja sujeito às alegações das partes em matéria de direito (CPC – 664º), será desta qualificação que, neste momento e respeitando a competência da secção cível do STJ, teremos de partir. As autoras apresentaram, como factos constitutivos da pretensão que deduziram, ilícitos criminais. Qualificados deste modo os factos que têm como relevantemente fundamentadores do pedido de indemnização que formularam. Contrariamente ao que se passa para a qualificação da acção, para o que apenas releva o pedido (CPC – 4º, 2), na determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa conhecer o objecto do processo e este é delimitado pelo pedido e pela causa de pedir, sendo que, como se referiu, a competência fixa-se no momento em que a acção é proposta. Em Portugal, vigora o pedido de adesão – ‘o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei’ (CPP – 71º). Não vem alegada matéria alguma que permita considerar estar-se presente a excepção a tal princípio [só em relação aos primeiros e a não ter sido instaurado procedimento criminal, poderiam demandar no foro cível – CP, 198º e CPP, 72º,1 c)]. Sendo regra a adesão obrigatória, a competência é do foro criminal (LOFTJ – 96º, 1). Ainda que se pudesse ou devesse considerar que o pedido de indemnização decorria não só de ilícito criminal mas também – e com autonomia própria – de causa passível de ser conhecida no foro cível e para a qual não devesse ou pudesse ser aplicado o princípio da suficiência do processo penal (CPP, 7º), a solução a trilhar não permitiria atribuir a competência aos tribunais de comércio. Com isto não se está a conhecer de questão nova, o que seria vedado sem ser exercido o direito de audiência prévia (CPC, 3º, 3) que, para o tribunal, constitui um dever de consulta. A questão a decidir – competência do tribunal em razão da matéria – mantém-se, não é nova; o que difere é a fundamentação da sua resolução, esta não é a considerada pelas instâncias. É a legalidade da decisão recorrida, pois, que continua a ser apreciada.
4.- Não obstante, não nos escusaremos de, em linhas gerais, abordar a questão objecto do recurso tal como ela vem delineada o que, contudo, não retirará o carácter de obiter dicta ao que vier a ser referido. A única norma a cujo abrigo a competência poderia in casu ser decidida a favor do tribunal de comércio era a constante da al. f) do n° 1 do art. 89 LOFTJ – «as acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial». São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (art. 18º – 1 ). Os tribunais de comércio são tribunais de 1ª instância de competência especializada [art. 64º-1 e 78º e)], cuja competência vem definida no citado art. 89º. Do pouco que veio a lume sobre o pensamento e vontade do legislador fica-se apenas a saber que, ao converter os tribunais de recuperação da empresa e de falências em tribunais de comércio, entendeu ter chegado ‘a altura de lhes ampliar prudentemente a competência em razão da matéria’ e, ao se referir a
‘contencioso da propriedade industrial’ não expressou o que com tal expressão se significava. Não podia ele desconhecer que a concorrência desleal não é um direito de propriedade industrial, um direito privativo, e que é regulada tão só como um meio específico de tutela daqueles sendo ainda que, dos factos descritos no CPI cuja prática a constitui, nem todos têm a ver com aqueles direitos, isto é, nem sempre a concorrência desleal assenta na lesão de um direito privativo como é verdade ainda que a violação de um direito privativo não consubstancia necessariamente concorrência desleal (cfr. Oliv. Ascensão in Concorrência Desleal, p. 69-73 ). Resulta deste apontamento não ser possível concluir ter o legislador demonstrado clara e inequivocamente a sua vontade. Defende alguma doutrina que a concorrência desleal, instituto autónomo em relação aos direitos privativos e não sendo ela própria propriedade industrial, não devia ter assento no CPI. O facto de o CPI a regular não significa que seja propriedade industrial nem por nele ter assento se pode concluir que o legislador a pretendeu incluir na expressão «... verse sobre propriedade industrial, ...» ou deva o intérprete aí incluí-la. E, como assinala Oliv. Ascensão (p. 265), a declaração de rectificação 7/99, de
16.02, onde mais que de rectificações se deve entender ter-se procedido a alterações, indicia, em confronto com a redacção original do citado art. 89º, que a vontade do legislador foi a de não incluir na competência dos tribunais de comércio uma tal matéria. Quando a questão relacionada com a concorrência desleal surgir em resultado de uma violação de um direito privativo, é este em si, e não aquela, o considerado, sendo causa de pedir o facto jurídico que constitui a violação do mesmo. Diversamente, será se a própria questão for a concorrência desleal e foi exactamente essa a que as autoras invocaram.” As recorrentes arguiram então a nulidade de tal acórdão e, ao mesmo tempo, requereram “que o acórdão final a proferir [fosse] objecto de julgamento ampliado”, concluindo a pedir que:
“1º Seja declarada a nulidade por omissão consistente na audiência prévia do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do art. 107º, n.º 1, do CPC, anulando-se consequentemente o Douto Acórdão já proferido (arts. 107º, n.º 1,
201º, n.ºs 1 e 2, 203º, n.º 3, 205º, n.º 1, todos do CPC);
2º Seja declarada a nulidade, por omissão de pronúncia, do Douto Acórdão recorrido por não haver fixado o tribunal competente (art. 668º, n.º 1, al. d), aplicável ex vi arts. 762º , n.º 1, 749º, 716º, n.º 1, todos do CPC);
3º Uma vez declaradas as nulidades, sejam os autos conclusos a Sua Excelência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nos termos e para os efeitos do art.
732º-A, n.º 1, do CPC.” Por acórdão de 8 de Julho de 2003, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação com base: na junção atempada de parecer do Ministério Público (fls.
810-813 dos autos); na definição do tribunal competente na anterior decisão (ao ter decidido que esse era o que o Tribunal da Relação assim tivesse entendido, tinha aderido à posição adoptada pelo tribunal da 1ª instância e confirmada pelo Tribunal da Relação); e no facto de se ter ultrapassado o momento até ao qual podia ter sido ordenado o julgamento ampliado do recurso.
3. Ainda inconformadas, as recorrentes apresentaram então requerimento de recurso de constitucionalidade, pretendendo ver apreciadas, em determinadas dimensões interpretativas, as normas
“do artigo 89º, alínea f), do LOFTJ” e 107º, n.º 1, do Código de Processo Civil
, ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional)”.
No tribunal recorrido foi proferido despacho de admissão do recurso “dentro de um espírito de liberalidade”, pois no “puro rigor jurídico, o recurso não [era] admissível” porque, como se escreveu na primeira decisão daquele Supremo Tribunal, “o apelo à inconstitucionalidade, além de ser vago, está desprovido de qualquer conteúdo quer da indicação da norma e ou princípio fundamental violado na interpretação daquela al. f)”. II. Fundamentos
4. O presente recurso foi admitido pelo tribunal a quo – em decisão que, como se sabe (artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional –, mas é caso de proferir decisão sumária, nos termos do n.º 1 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, pois verifica-se que dele se não pode tomar conhecimento.
5. Na verdade, nos termos do respectivo requerimento, o recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Ora, para se poder conhecer de tal recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. Como resulta do que se relatou, no presente recurso de constitucionalidade só podiam estar em causa duas normas: a da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ – Lei n.º 3/99, de
13 de Janeiro) e a do n.º 1 do artigo 107º do Código de Processo Civil. A decisão recorrida baseou-se, porém, como resulta da transcrição efectuada, numa terceira norma, não impugnada, que consagra a regra da adesão obrigatória – o artigo 71º do Código de Processo Penal –, para concluir que “a competência é do foro criminal”, e que, ainda se fosse de considerar que o pedido de indemnização decorria também de causa passível de ser conhecida no foro cível “a solução a trilhar não permitiria atribuir a competência aos tribunais de comércio”. E salientou expressamente, depois de dizer isto, que o que se afirma a seguir sobre o objecto de recurso de agravo “não retirará o carácter de obiter dicta ao que vier a ser referido”. As normas em causa – mas antes uma terceira, não impugnada – não foram, pois, aplicadas como rationes decidendi pelo tribunal recorrido, e tal seria, por si só, fundamento suficiente para se não poder tomar conhecimento do presente recurso.
6. Não se verificam, aliás, também outros requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso, que incide sobre as normas da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ
– Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro) e a do n.º 1 do artigo 107º do Código de Processo Civil. Vejamos a primeira.
“Artigo 89º
(Competência)
1 – Compete ao tribunal de comércio preparar e julgar:
(...) f) As acções de declaração em que a causa de pedir verse sobre a propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas no Código da Propriedade Industrial;
(...)” No presente caso, justamente, a questão da constitucionalidade da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da LOFTJ não foi suscitada durante o processo
(sobre o sentido deste requisito, veja-se o acórdão n.º 90/85, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Julho de 1985): não o foi perante o Tribunal de Comércio – o que se compreende; não o foi perante o Tribunal da Relação (perante o qual foi referido, apenas, sem se precisar a interpretação que estava em causa, que a “interpretação correctiva, para não dizer interpretação restritiva ou abrogante, do artigo 89º, alínea f), da LOFTJ, operada no douto acórdão recorrido, ofende os mais elementares princípios da ordem jurídica portuguesa, assumindo contornos ilegais, e suscitando problemas de inconstitucionalidade, dado que nada imporia a correcção da norma jurídica através da actividade interpretativa”); e, decisivamente, não o foi perante o Supremo Tribunal de Justiça, onde, antes do 1º acórdão, se reiterou, apenas, nos mesmos precisos termos citados, o que já se alegara perante o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo a questão sido completamente omitida no requerimento de reclamação que deu origem ao 2º acórdão daquele Supremo Tribunal. Justamente por isto, esse Supremo Tribunal ficou dispensado de emitir qualquer juízo de conformidade ou desconformidade constitucional, já que não fora nem impugnada perante ele uma norma nem indicados a norma ou princípio constitucionais para tal impugnação. E, não o tendo feito, não pode agora tal questão ser reapreciada, em recurso, pelo Tribunal Constitucional. As recorrentes não cumpriram, pois, o seu ónus de impugnação da conformidade constitucional da norma que pretendiam não aplicada (em certo sentido), que lhes
é imposto pelo artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que não pode agora tal norma integrar o objecto do recurso de constitucionalidade – cfr., vg., o Acórdão n.º 70/01 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu:
«(...) ao não suscitar nessa altura, como não suscitou, as questões de constitucionalidade normativa que, posteriormente, terá querido ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional, a ora reclamante estaria a deixar de cumprir o seu
ónus de adopção de uma “estratégia processual adequada” (cfr. Acórdão n.º
479/89, publicado no DR, II Série, de 24 de Abril de 1992).»
7. Mas vejamos primeiro a norma do artigo 107º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
“Artigo 107º
(Fixação definitiva do tribunal competente)
1. Se o Tribunal da Relação decidir, em via de recurso, que um tribunal é incompetente, em razão da matéria ou da hierarquia, para conhecer de certa causa, há-de o Supremo Tribunal de Justiça, no recurso que vier a ser interposto, decidir qual o tribunal competente. Neste caso, é ouvido o Ministério Público e no tribunal que for declarado competente não pode voltar a suscitar-se a questão da competência (...)”. Também em relação a esta norma a inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo. Invocaram, porém, os demandantes o seguinte no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade:
“38. Não se conformando com a Douta Decisão do M.mº Juiz do Tribunal da Relação de Lisboa os recorrentes interpuseram recurso para o STJ, cuja interpretação do artigo 89º, al. f), dificilmente se descortina, e que, salvo o devido respeito,
é anómala e violadora da Constituição.
39. Efectivamente, in casu encontramo-nos perante a inconstitucionalidade da interpretação de uma norma corporizada numa decisão judicial, e não da inconstitucionalidade de qualquer norma.
40. Assim sendo, e perante o caso concreto, não seria adequado exigir à Reclamante um qualquer juízo de prognose relativo a essa interpretação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente a questão da inconstitucionalidade.
41. À Reclamante não pode pois ser imputada a omissão da questão da inconstitucionalidade de qualquer norma previamente ao Acórdão recorrido.
42. Na medida em que, no primeiro momento em que foi confrontada com a inconstitucionalidade que pretende ver declarada, ou seja, aquando da notificação do Douto Acórdão recorrido, suscitou a nulidade processual consistente na violação do disposto no art. 107º do CPC, e pugnou pela intervenção do Pleno deste Venerando Tribunal.” Uma vez que a intervenção pela qual se pugnou foi a do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça (é esse o “Venerando Tribunal” a que aludem, não ao Tribunal Constitucional), nos termos já referidos supra, e que nenhuma referência ao Tribunal Constitucional ou à inconstitucionalidade da intervenção alegadamente adoptada pelo Tribunal a quo foi incluída no requerimento de nulidade e de pedido de julgamento ampliado, o argumento que resta deste discurso das recorrentes é o da dita “decisão-surpresa”: o de que as recorrentes não poderiam contar antecipadamente com uma interpretação dada à norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (ou com a interpretação da norma do n.º 1 do artigo 107º do Código de Processo Civil, como parece resultar também do que se escreveu no, já citado, parágrafo
42, e noutros passos do requerimento, v.g., no parágrafo 34: “A violação do disposto no artigo 107º, n.º 1, do CPC claramente afronta o princípio da legalidade, foi de todo imprevisível para a ora Reclamante, não podendo razoavelmente contar com a sua aplicação.”). Tal argumento, porém, não é procedente em relação a nenhuma das normas em causa
– isto é, recorda-se, as da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da LOFTJ e a do n.º
1 do artigo 107º do Código de Processo Civil –, conduzindo a análise deste alegado entendimento imprevisível à questão de saber se ele foi efectivamente aplicado na decisão recorrida. Vejamos. A norma impugnada da LOFTJ só é dita ter sido aplicada de forma imprevisível por se entender que o Supremo Tribunal de Justiça lhe introduziu um inesperado terceiro entendimento – o da competência dos tribunais criminais –, quando o que até aí se tinha discutido era a competência, em alternativa, dos tribunais cíveis (como decidido pela 1ª e 2ª instâncias), ou dos tribunais de comércio
(como pretendiam as recorrentes). Porém, a ser assim, então deixa de ser possível invocar violação – e aplicação inconstitucional – da norma do Código de Processo Civil, na medida em que tal entendimento se reporta, justamente, à alegada omissão da determinação da jurisdição competente no acórdão de 20 de Maio de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça. Ou seja: a tese da novidade da solução adoptada no Supremo Tribunal de Justiça só pode valer, em rigor, para uma das normas: ou se pretende que aquele Supremo Tribunal fixou inovadoramente (e, portanto, de forma inesperada) a “competência do foro criminal”, quando anteriormente se teriam discutido só duas teses – a da competência dos tribunais comuns e a da competência dos tribunais de comércio –, sendo que, assim, tal decisão deu integral cumprimento à norma do artigo 107º, n.º 1, do Código de Processo Civil e nenhuma razão há para falar de
“imprevisibilidade” na aplicação desta norma; ou se pretende que o Supremo Tribunal de Justiça omitiu decisão sobre o tribunal efectivamente competente no caso, violando a norma do artigo 107º, n.º 1, do Código de Processo Civil – eventualmente dando azo a que se pudesse configurar uma certa interpretação de tal norma como inconstitucional –, mas com isso afastando a possibilidade de se invocar a surpresa (e a inconstitucionalidade) da atribuição ao “foro criminal” da competência para decidir casos como o dos autos. Seja como for quanto a isto, e sendo incompatíveis as argumentações, contra ambas vale, porém, a decisão do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferida em 8 de Julho de 2003, tirado na sequência da reclamação apresentada. É que neste se esclareceu que já fora anteriormente decidido qual o tribunal competente – “o STJ definiu o tribunal competente ao negar provimento ao agravo
(...) competente segundo o decidido no STJ, é aquele que a Relação reconhecer sê-lo” – isto é: que não houvera violação do disposto no artigo 107º, n.º 1, do Código de Processo Civil; e esclareceu-se também que o tribunal competente era o tribunal comum, e não o de comércio, nem o criminal – “a Relação expressamente referiu que o despacho saneador acolheu a tese dos 1º e 2º réus (...) a de a competência caber aos tribunais comuns”) –, isto é, que não houvera qualquer entendimento inovador da norma do artigo 89º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro de 1999. O Tribunal Constitucional não pode entender diferentemente, pois não lhe cabe pronunciar-se sobre a interpretação preferível do direito infra-constitucional, com independência da solução da questão de constitucionalidade de normas que lhe compete apreciar. Tem, pois, de aceitar, em recurso de constitucionalidade, a aplicação do direito infra-constitucional feita pelas instâncias, como pressuposto para a apreciação da conformidade constitucional das normas tal como foram aplicadas. E pode concluir-se, assim, que não existiu aplicação das normas com o sentido que, contra o expresso entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, as recorrentes lhes pretendem atribuir, para ser apreciado pelo Tribunal Constitucional.
8. Acresce que, mesmo admitindo a imprevisibilidade da interpretação normativa, e que esta tivesse sido efectivamente aplicada no caso concreto, não se verificou, sequer, suscitação adequada da sua desconformidade constitucional, nem sequer depois de as recorrentes serem confrontadas com a aplicação de ambas
– e isto, numa altura em que, por estar em causa uma alegada nulidade por omissão de fixação do tribunal competente, decorrente da interpretação de uma daquelas normas, a suscitação da inconstitucionalidade dessa(s) norma(s) ainda poderia, excepcionalmente, ser feita num momento que, em princípio, já não seria idóneo para tal (o do requerimento de nulidade), por, quanto a tal nulidade, não estar ainda esgotado o poder jurisdicional do tribunal. Ora, nenhuma imputação de inconstitucionalidade foi, mesmo então, efectuada, dispensando o Tribunal a quo de se pronunciar sobre tal questão, e inviabilizando o recurso de constitucionalidade. Não se verificou, pois, como escreveram as recorrentes, apenas uma “omissão da questão de inconstitucionalidade de qualquer norma previamente ao Acórdão recorrido”, mas sim a mesma omissão depois de tal acórdão de 20 de Maio de 2003 do Supremo Tribunal de Justiça. E, ao terem omitido tal questão (ou tais questões) na primeira (e última) ocasião que tiveram para o fazer (mesmo admitindo a sua tese), as recorrentes não cumpriram também o ónus de suscitar a inconstitucionalidade da(s) norma(s) perante o tribunal recorrido (cfr. v.g., além do já citado Acórdão n.º 70/01, os Acórdãos n.ºs 612/99 e 185/01, o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Fevereiro de 2000, e o segundo disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), inviabilizando que o Tribunal Constitucional possa agora tomar conhecimento do recurso.»
2.Notificadas desta decisão, as recorrentes vieram reclamar do “despacho proferido em 19/11/2003”, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo
77º da Lei 28/82, de 15 de Novembro”, dizendo:
«1. O presente recurso foi interposto contra o Douto Acórdão proferido, pela Conferência de Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no dia 08/07/2003, o também Douto Acórdão de fls. 815 a 819 pelo mesmo proferido, e, finalmente, pelo Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa 05/12/02, sendo que tais decisões já não admitem qualquer recurso ordinário (art. 280º, n.º 1, al. b), e n.º 6, da CRP e art. 70º, n.º 1, al. b), n.ºs 2 e 4, da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro).
2. Pretendia-se assegurar que os direitos e garantias constitucionalmente tutelados não pudessem ser postos em causa (i) pela grave e flagrante violação do dispositivo legal previsto no artigo 107º, n.º 1, do CPC e consequente negação dos cidadãos de acesso à justiça (ii) pela interpretação do disposto no art. 89º, al. f), da LOFTJ em moldes a permitir a sujeição das regras de competência material dos tribunais à vontade das partes, (iii) pela sujeição do artigo 89º, alínea f), da LOFTJ a uma interpretação correctiva, aliás contra legem.
3. Quanto ao primeiro factor, quando omitiu, expressamente, em termos decisórios, a indicação expressa do tribunal materialmente competente, praticou uma omissão de pronúncia, gerando a nulidade da decisão (art. 668º, n.º 1, al. d), aplicável ex vi dos arts. 762º, n.º 1, 749º, 716º, n.º 1, todos do CPC).
4. Discorda a Recorrente, ora reclamante, da ideia de que o “o STJ definiu o Tribunal competente ao negar provimento ao agravo, confirmando o acórdão da Relação, ainda que por diversa fundamentação”, tese subscrita pelo Supremo Tribunal de Justiça e, subsequentemente, pelo Douto despacho de que ora se reclama.
5. Tanto que é aquele [...] afirma, expressis verbis, “não vem alegada matéria alguma que permita considerar estar-se presente a excepção a tal princípio
[princípio da adesão] (...). Sendo em regra a adesão obrigatória, a competência
é do foro criminal (LOFTJ- 96, 1)”.
6. Não discorda a ora Reclamante de que, como bem refere o Douto Despacho deste Venerando Tribunal Constitucional, este “Tem, pois, de aceitar, em recurso de constitucionalidade, a aplicação do direito infra-constitucional feita pelas instâncias, como pressuposto para a apreciação da conformidade constitucional das normas tal como foram aplicadas”.
7. É que um dos pressupostos da sociedade de direito democrática é a sujeição dos tribunais à Lei, e o respeito destes, nas suas decisões, pelo estatuído na Constituição (arts. 2º, 202º, 203º e 204º da CRP).
8. Dispõe o art. 107º, n.º 1, do CPC: “Se o tribunal da Relação decidir, em via de recurso, que um tribunal é incompetente, em razão da matéria ou da hierarquia, para conhecer de certa causa, há-de o Supremo Tribunal de Justiça, no recurso que vier a ser interposto, decidir qual o tribunal competente. Neste caso, é ouvido o Ministério Público e no tribunal que for declarado competente não pode voltar a suscitar-se a questão da competência” (os sublinhados são nossos).
9. Ora isso, manifestamente, não foi feito.
10. Por muito que os Excelentíssimos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça se tenham esforçado para o afirmar (e esforçaram-se pouco), por muito que o Excelentíssimo Senhor Conselheiro deste Tribunal Constitucional se haja esforçado para o afirmar (e esforçou-se muito), o Supremo Tribunal de Justiça não cumpriu o disposto no art. 107º do CPC.
11. É óbvio, e a adjectivação vai nesse sentido, em toda a sua plenitude, que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o recurso como decide qualquer outro, esquecido do regime excepcional do art. 107º do CPC.
12. Aquilo que o Supremo Tribunal de Justiça avançou, ainda que timidamente, e o Tribunal Constitucional decidiu confirmar, temerariamente, é que a fixação do Tribunal competente é facilmente dedutível porque o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça confirmou o Acórdão da Relação de Lisboa e, acrescentando um requisito à lei, só teria que haver fixação expressa quando o acórdão recorrido não fosse confirmado (nesta parte, navega-se já no poder legislativo).
13. O Supremo Tribunal de Justiça não declarou qual era o Tribunal competente.
14. Tentar inferir o tribunal competente a partir do teor da decisão deste Tribunal é uma tarefa de cariz claramente hermenêutico submetida – como se verá, em particular no caso vertente – a um casuísmo que se pretende, com esta norma, evitar.
15. Discorrer em sentido diverso é contrariar a letra da lei, a sua inserção sistemática e o espírito da norma, é desrespeitar todos os critérios – uma vez mais – imperativamente fixados na lei (art. 9º Cód. Civ.).
16. É que tanto quanto decidir qual o Tribunal competente para apreciar a matéria, ao Supremo Tribunal de Justiça cabia ainda, expressis verbis, declará-lo.
17. Bastasse ao Supremo Tribunal de Justiça confirmar a tese sustentada pelo Tribunal a quo, e esta norma não teria razão de existir: a matéria seria julgada como qualquer outra matéria sujeita a recurso.
18. Assim não o é: trata-se de um regime claramente excepcional, sendo que o
“Supremo Tribunal de Justiça decide, com força que extravasa o processo concreto
(cfr. art. 671º do CPC), qual o Tribunal competente. Portanto, no Tribunal onde a acção for proposta, não pode voltar a suscitar-se a questão da competência”
(José LEBRE DE FREITAS et al., Código de Processo Civil Anotado, 1º Vol., Coimbra Ed., pág. 196).
19. O disposto no artigo 107.º CPC tem o propósito claro de evitar esforços hermenêuticos ou de dedução, e a Recorrente está bem mais interessada em ver os seus direitos decididos, do que em discutir a questão da competência dos Tribunais.
20. Porque se trata de preterição de disposição legal imperativa, a violação do disposto no artigo 107.º, n.º 1, do CPC foi de todo imprevisível para a ora Reclamante, que não podia, razoavelmente, contar com tal decisão.
21. Não seria adequado exigir à Reclamante um qualquer juízo de prognose relativo a essa interpretação, em termos de se antecipar ao proferimento da decisão, suscitando antecipadamente a questão da inconstitucionalidade.
22. Ao ser evidente que a decisão in casu desrespeita a lei, sendo certo que os tribunais estão constitucionalmente sujeitos a esta, sob pena de, por esta via, se vir a colocar em causa os direitos fundamentais dos cidadãos, deverá ser declarada a inconstitucionalidade de tal decisão.
23. Só por si, tal fundamento bastaria para fundamentar o presente processo de fiscalização concreta da constitucionalidade, e, consequentemente, a procedência da presente reclamação.
24. Esta interpretação, mais até do que ilegal e inconstitucional pela via aduzida supra põe em risco a segurança jurídica, ao permitir a criação, no domínio interno, de uma situação de forum shopping.
25. Ora, o direito – constitucionalmente tutelado – dos cidadãos à correcta aplicação da justiça não deve ser posto em causa, pela sujeição das regras de competência material dos tribunais a juízos doutrinais.
26. Não há portanto qualquer decisão inequívoca, por parte do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria, limitando-se este Tribunal a aplicar norma, por definição, inaplicável a este tipo de situações.» Cumpre decidir. II. Fundamentos
3.A presente reclamação vem expressamente deduzida ao abrigo do artigo 77º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro – abreviadamente, Lei do Tribunal Constitucional). Todavia, é claro que as reclamantes não pretenderam efectuar qualquer reclamação
“de despacho que indefira o requerimento de recurso ou retenha a sua subida” – essa sim, prevista nesse artigo 77º –, mas sim uma reclamação para a conferência de decisão sumária do relator, no sentido do não conhecimento do recurso, prevista no artigo 78º-A, n.º 3, dessa mesma Lei do Tribunal Constitucional. Tratar-se-á, ali, de mero lapso na identificação da norma legal aplicável. E, admitindo o seu carácter ostensivo, poderá passar-se a conhecer da presente reclamação como sendo deduzida ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
4.A presente reclamação não logra, porém, abalar os fundamentos da decisão sumária, que afastam a possibilidade de se tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade.
É o caso da linha fundamental de argumentação das reclamantes, com repetidas referências à existência de violação de lei – de uma (segundo as recorrentes) errada aplicação do direito ordinário (“grave e flagrante violação do dispositivo legal”, “interpretação correctiva, aliás contra legem”, desrespeito da lei, violação do direito “à correcta aplicação da justiça”, não cumprimento do artigo 107º do Código de Processo Civil, etc.). Reitera-se, na verdade, como este Tribunal tem feito em jurisprudência constante e se evidenciou na decisão reclamada, que não lhe cabe pronunciar-se sobre a interpretação preferível do direito infra-constitucional, ou, sequer, sobre a má ou errada interpretação ou aplicação desse direito, com independência da solução da questão de constitucionalidade de normas que lhe compete apreciar. Antes – como reconhece o recorrente – se tem, “de aceitar, em recurso de constitucionalidade, a aplicação do direito infra-constitucional feita pelas instâncias, como pressuposto para a apreciação da conformidade constitucional das normas tal como foram aplicadas.” O eventual desrespeito, ou o menos correcto entendimento, do direito ordinário não é, só por si, controlável pelo Tribunal Constitucional, em recurso de constitucionalidade, no qual apenas se pode apreciar a conformidade de normas
(incluindo desse entendimento normativo) com a Constituição, sendo certo, porém, que nem toda a interpretação menos correcta do direito ordinário é, logo por isso, violadora da Constituição.
5.Há, aliás, pelo menos um fundamento autónomo, só por si bastante, da decisão sumária reclamada, que as reclamantes não põem em causa, e que conduz logo à impossibilidade de se tomar conhecimento do recurso: a circunstância de no recurso de constitucionalidade só poderem estar em causa as normas da alínea f) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e a do n.º 1 do artigo 107º do Código de Processo Civil, enquanto a decisão recorrida se baseou numa outra norma, não impugnada, consagradora da regra da adesão obrigatória – o artigo 71º do Código de Processo Penal –, concluindo que, mesmo se fosse de considerar que o pedido de indemnização decorria também de causa passível de ser conhecida no foro cível, “a solução a trilhar não permitiria atribuir a competência aos tribunais de comércio”. Como se nota na decisão reclamada, o tribunal recorrido salientou, aliás, expressamente, depois de afirmar isto (veja-se o transcrito início do ponto 4 do acórdão de 20 de Maio de 2003, a fls. 818 dos autos), que o tratamento do objecto de recurso de agravo não retirava “o carácter de obiter dicta ao que vier a ser referido”. Como se salienta na decisão reclamada, a circunstância de existir uma outra norma que foi entendida como ratio decidendi, é, só por si, suficiente para se não poder tomar conhecimento do presente recurso, pois o juízo que este Tribunal viesse a proferir, no presente recurso de constitucionalidade, sobre as normas impugnadas não seria, assim, susceptível de alterar o decidido pelo tribunal a quo. E tal é, só por si, razão bastante para se poder concluir que a decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso merece ser confirmada. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada de não conhecimento do recurso, e condenar as reclamantes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos