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Proc. nº 375/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., B. e C. foram condenados pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal por 29 contra-ordenações previstas na alínea h) do artigo 211º do RGICSF (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro), com referência ao disposto no nº 2.1 conjugado com o nº 4, ambos da Instrução nº 88/96 do Banco de Portugal (violação do limite de risco) e numa contra-ordenação prevista na alínea i) do referido artigo 211º, com referência ao disposto no artigo 85º, nº
1 do mesmo diploma. As coimas e sanções acessórias em que os recorrentes foram condenados foram as seguintes: a) A. foi condenado em três coimas de 250.000$00, 24 coimas de 450.000$00, 1 coima de 500.000$00 e 2 coimas de 550.000$00 e, em cúmulo, na coima única de
6.500.000$00 e na sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras por um período de 6 anos; b) B. e C. foram condenados em 3 coimas de 200.000$00, 24 coimas de 300.000$00,
1 coima de 350.000$00 e 2 coimas de 400.000$00, e, em cúmulo, na coima única de
4.500.000$00 e na sanção acessória do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras por um período de 4 anos e seis meses. Desta decisão interpuseram os ora recorrentes recurso para o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, o qual manteve integralmente as condenações decididas pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal. Posteriormente, vieram os arguidos a recorrer dessa sentença para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando várias questões de constitucionalidade, nos seguintes termos:
3.5. Ora, a norma sancionatória – alínea h) do artigo 211° e artigo 99° do RGICSF – é uma norma “em branco”, que, para a definição do tipo, remete para outras normas e que, neste caso, seriam as constantes de avisos do Banco de Portugal (cfr. artigo 99°) e não para avisos do Ministro das Finanças, como é o Aviso n° 10/94, nem para instruções do Banco de Portugal.
3.6. O que se passa, pois, é que a norma sancionadora da contra-ordenação em causa contém na definição do respectivo tipo o reenvio “em branco” para disposições administrativas de conteúdo regulamentar.
3.7. Tal reenvio não respeita o princípio da tipicidade e da legalidade, que também vigora no âmbito das contra-ordenaçães.
3.8. E ainda menos tais princípios seriam respeitados se – como pretendem a acusação e a decisão recorrida – viessem a relevar para a definição do tipo da contra-ordenação em causa simples instruções do Banco de Portugal que não os avisos a que alude o artigo 99º do RGICSF, com o que se excederia claramente o conteúdo admissível da remissão prevista na norma sancionadora.
8.3. A fixação dos limites da sanção entre 200.000$00 e 200.000.000$00, sem quaisquer outras referências ou marcas individualizadoras, viola os referidos princípios, deixando nas mãos da Administração uma excessiva latitude na fixação da sanção, que, assim, se torna arbitrária e excessivamente dependente de critérios de mera oportunidade e não de legalidade.
9.1. A decisão recorrida aplicou a sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras, nos termos da alínea c) do n° 1 do artigo 212° do RGICSF, que é materialmente inconstitucional, por violação do disposto no n° 4 do artigo 30°/CRP e dos nºs 1 e 5 do artigo 32°/CRP – princípios do contraditório e das garantias de defesa – e ainda do n° 1 do artigo 29°/CRP.
9.2. De facto, essa disposição atribui à entidade decisora uma faculdade de aplicação das sanções acessórias, mas não define os pressupostos de que depende essa aplicação e que, assim, fica dependente de meros critérios de oportunidade e conveniência e não de legalidade.
9.4 Acresce ainda que a disposição que impõe a imediata execução da sanção acessória viola o princípio constitucional da presunção da inocência do arguido.
Admitido o recurso, veio o Ministério Público, junto da 1ª instância, juntar resposta nos termos do artigo 411º, nº 5, do Código de Processo Penal, na qual tirou as seguintes conclusões:
1. Inexiste uma “Segunda” decisão da autoridade administrativa, como bem demonstrado está logo no início da douta sentença recorrida.
2. Nos factos dados por provados e não provados constam todos os elementos objectivos e subjectivos para a boa decisão da causa e os recorrentes têm de conformar-se com essa matéria, não se divisando alteração substancial de factos.
3. Os arguidos não apontaram qualquer erro ou contradição nesses factos, aliás nem podiam, pois inexistem.
4. A Mma Juiz recorrida firmou livremente a sua convicção e condenou e bem os recorrentes, não tendo os mesmos que invocar a absolvição da C.C.A.M. pelo B.P., já que foram os próprios arguidos que excluíram a ilicitude desta instituição, ao agirem em prejuízo da mesma e levando-a a um autêntico descalabro.
5. Por tudo quanto antecede e o mais que consta da douta sentença, deverá ser negado provimento ao recurso e mantida, nos seus precisos termos, a douta decisão recorrida, que é justa, proporcional e adequada às infracções cometidas.
No Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público, nos termos do artigo
416º, nº 1, do Código de Processo Penal, apenas apôs o seu visto. Foi proferido, entretanto, em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão rejeitando um recurso que fora interposto do despacho que condenara à reparação de uma irregularidade da decisão administrativa, ordenando-se o prosseguimento do processo. Posteriormente, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu por acórdão de 26 de Março de 2003 julgar parcialmente procedente o recurso, alterando a decisão recorrida quanto a coimas aplicáveis, decidindo, nos seguintes termos:
a) julgar parcialmente procedente o recurso, decidindo:
· alterar a decisão recorrida na parte em que condenou os arguidos A., B. e C. pela prática de 29 contra-ordenações p. e p. pela alínea h) do artigo 212° do Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro, sendo os mesmos condenados pela prática de uma única contra-ordenação prevista em tal disposição nas coimas no valor em euros correspondente a 6.300.000$00 (seis milhões e trezentos mil escudos), 4.350.000$00 (quatro milhões trezentos e cinquenta mil escudos) e
4.350.000$00 (quatro milhões trezentos e cinquenta mil escudos), respectivamente;
· cumular essas coimas parcelares com as que foram aplicadas aos mesmos arguidos por violação da alínea i) da mesma disposição, mantendo as coimas
únicas (agora convertidas em euros) de cada um dos arguidos em 6.500.000$00,
4.500.000$00 e 4.500.000$00, respectivamente;
· no restante, manter a decisão recorrida.
Nesse acórdão, quanto às questões de inconstitucionalidade, foi decidido o seguinte:
Inconstitucionalidade, por infracção dos princípios da legalidade e da tipicidade, da norma que prevê como contra-ordenação a violação dos limite de risco
13 – Como se disse, os arguidos foram condenados pela prática de 29 contra-ordenações p. e p. pela alínea h) do artigo 211° do RGICSF, disposição que tem o seguinte teor: Artigo 211°
(Infracções especialmente graves) São puníveis com coima de 500.000$000 a 500.000.000$00 ou de 200.000$00 a
200.000.000$00, consoante seja aplicável a ente colectivo ou a pessoa singular, as infracções adiante referidas:
(...) h) A inobservância de relações e limites prudenciais constantes do n° 2 do artigo 96°, sem prejuízo do n° 3 do mesmo artigo, bem como dos artigos 97°, 98°,
100°, 101º, 109°, 112° e 113°, ou de outros determinados em norma geral pelo Ministro das Finanças ou pelo Banco de Portugal nos termos do artigo 99°, quando dela resulte ou possa resultar grave prejuízo para o equilíbrio financeiro da entidade em causa; Nestes autos, apenas pode estar em causa o artigo 99°, que dispõe: Artigo 99°
(Relações e limites prudenciais) Compete ao Banco de Portugal definir, por aviso, as relações a observar entre rubricas patrimoniais e estabelecer limites prudenciais à realização de operações que as instituições de crédito estejam autorizadas a praticar, em ambos os casos quer em termos individuais, quer em termos consolidados, e nomeadamente:
(...) d) Limites à concentração de riscos; Da conjugação deste último preceito com a mencionada alínea h) resulta, no que para o caso importa, que constitui contra-ordenação a inobservância dos limites prudenciais estabelecidos, em norma geral: a) pelo Ministro das Finanças; b) pelo Banco de Portugal, nos termos do artigo 99°, quando, em ambos os casos, dela resulte ou possa resultar grave prejuízo para o equilíbrio financeiro da entidade em causa. Entre essas normas gerais de carácter prudencial conta-se, certamente, o Aviso do Banco de Portugal n° 10/94, assinado pelo Ministro das Finanças e publicado na II Série do Diário da República, de 18 de Novembro de 1994. Determina o ponto 2) do n° 10° do citado Aviso que “O Banco de Portugal definirá os limites aplicáveis em base individual às instituições pertencentes ao sistema integrado de crédito agrícola mútuo”. Foi ao abrigo dessa disposição, e não tendo em consideração as atribuições que lhe eram conferidas pelo citado artigo 99° do RGICSF, que o Banco de Portugal aprovou a Instrução n° 88/96, da qual resultava que, para a D. de -----------, o limite do valor de risco de cada cliente não podia exceder os 10.000 contos (nºs
2.1 e 4 da citada Instrução). Trata-se de norma de carácter geral, emanada do Banco de Portugal, que menciona expressamente a fonte de onde deriva o poder regulamentar. Porque esse poder regulamentar foi conferido pelo Ministro da Finanças no citado Aviso, foi utilizada a forma de Instrução, em vez do Aviso, forma exigida se estivesse em causa o exercício de poderes conferidos pelo artigo 99° do RGICSF. Uma vez que, na altura, não estava em vigor qualquer disposição que estabelecesse a forma da publicação dos actos normativos do Banco de Portugal
(quer dos avisos, quer das instruções), existia liberdade nessa matéria. Por isso, nada obsta a que se tenha adoptado a forma de Instrução, e não a de Aviso, para o estabelecimento dos limites de risco de crédito. Conexionada com esta questão, suscitam os recorrentes o problema da inconstitucionalidade da utilização no direito sancionatório de uma técnica remissiva. Pretendem eles que esta técnica conduz à inconstitucionalidade da norma que prevê a contraordenação por se tratar de uma “norma em branco”. Analisemos então essa outra questão.
É conhecida a discussão doutrinária sobre a caracterização das “leis penais em branco” e sobre a conformidade constitucional da utilização deste procedimento no domínio do direito sancionatório. No caso, resultando a essência do sentido da ilicitude do próprio Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro, e não de qualquer norma de natureza regulamentar para que ele remete, não vemos que a utilização deste procedimento remissivo viole o princípio da legalidade num domínio técnico como é o do estabelecimento de normas prudenciais no âmbito da actividade bancária. Note-se que a norma emanada do Banco de Portugal estabelece apenas um limite quantitativo, resultando todos os outros elementos do tipo do Decreto-Lei n° 298/92. Improcede, portanto, também nesta parte, o recurso dos arguidos.
Inconstitucionalidade, por violação do principio da legalidade, da norma que estabelece, para as pessoas singulares, uma coima entre 200.000$00 e
200.000.000$00
16 – Sustentam os recorrentes que o segmento da norma que estabelece, quer para um, quer para outro dos comportamentos, a aplicação de uma coima entre
200.000$00 e 200.000.000$00 é inconstitucional, por violação dos princípios da legalidade e da proporcionalidade. A ser assim, deveria este tribunal recusar, nos termos do artigo 204° da Constituição da República Portuguesa, a aplicação de tal norma. A questão colocada, que tem a ver com a amplitude da moldura da contra-ordenação e com a sua conformidade com o princípio da legalidade consagrado nos nºs 1 e 3 do artigo 29° da Constituição e com o princípio da proibição das sanções de duração ilimitada ou indefinida, consagrado no artigo 30°, n° 1, da Lei Fundamental, embora tendo por base norma distinta, já foi, por duas vezes, submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, recebendo dele respostas díspares. No Acórdão n° 574/95 (não publicado) aquele tribunal, embora com o voto de vencido do seu vice-presidente, julgou não existir qualquer inconstitucionalidade. No Acórdão n° 547/2001 (publicado no Diário da República, II Série, de
15/7/2002), embora com dois votos de vencido, o tribunal considerou existir inconstitucionalidade. Não pretendendo invocar argumentos essencialmente novos, bastará louvarmo-nos nos fundamentos apontados no primeiro dos referidos acórdãos e sustentados pelos vencidos no Acórdão n° 547/2001. E se bem que se considere recomendável que o legislador venha a aperfeiçoar esta norma, à semelhança do que fez no Código dos Valores Mobiliários, não se pode deixar de reconhecer que, em sectores do ordenamento jurídico como este, em que o distanciamento entre os níveis da ilicitude das concretas condutas e, por via dela, os da culpa dos respectivos agentes, bem como a sua situação económica, são enormes, os limites mínimo e máximo das coimas não podem deixar de estar muito distantes entre si, tanto em termos absolutos, como em termos relativos. Note-se que no próprio n° 1 do artigo 388° do Código dos Valores Mobiliários, embora o máximo da sanção seja de
“apenas” 100 vezes o seu valor mínimo, entre um e outro existe, em termos absolutos, uma diferença de 2.475.000 euros. Julgamos, portanto, que não existe qualquer inconstitucionalidade no segmento da norma que prevê a sanção abstracta referida. Por isso, nada obsta à sua aplicação no caso concreto.
Inconstitucionalidade, por indeterminação dos seus pressupostos, da sanção acessória de inibição de exercício de cargos e funções, estabelecida pela alínea c) do artigo 212° do RGICSF
17 – Suscita o recorrente a questão da inconstitucionalidade da alínea c) do artigo 212° do RGICSF por, em seu entender, prever a aplicação de uma sanção acessória sem determinar os respectivos pressupostos. Esquece-se, porém, que o referido RGICSF não regula de forma directa todos os institutos que acolhe, como é o caso das sanções acessórias. Como já se disse, de acordo com o artigo 232° desse regime, “às infracções previstas no presente capítulo é subsidiariamente aplicável, em tudo o que não contrarie as disposições dele constantes, o regime geral dos ilícitos de mera ordenação social”. Ora, o Decreto-Lei n° 433/82, de 27 de Outubro, prevê, no seu artigo 21°, determinadas sanções acessórias, entre as quais se encontra, na sua alínea b), a interdição do exercício de profissões ou actividades, medida cujos pressupostos estão definidos no n° 2 do artigo 21º-A do mesmo diploma. Assim, a interdição do exercício de profissões ou actividades cujo exercício dependa de autorização de autoridade pública só pode ser decretada se o agente tiver praticado a contra-ordenação com flagrante e grave abuso da função que exercia ou com manifesta e grave violação dos deveres que lhe eram inerentes. Não se vê que o regime assim definido ofenda, no que quer que seja, a Constituição da República Portuguesa. Como os arguidos cometeram a referida contra-ordenação nas circunstâncias previstas no n° 2 do referido artigo 21º-A, nada há a alterar quanto à aplicação da mencionada sanção acessória.
Inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência, da norma contida no n° 2 do artigo 227° do RGICSF
18 – A decisão do Banco de Portugal depois de, no ponto III, mencionar as infracções por que os arguidos eram sancionados e as coimas e sanções acessórias que lhes eram aplicáveis, incluiu um ponto IV, que designou como “Outros requisitos”, em cujo n° 2 fez constar o seguinte:
“A decisão de condenação em sanção acessória de inibição de cargos sociais e funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras torna-se imediatamente exequível, só terminando a sua exequibilidade com decisão judicial que definitivamente a revogue (artigo 227°, n° 2, do RGICSF)”. A sentença recorrida, depois de decidir a manutenção das sanções acessórias aplicadas administrativamente, estabeleceu que elas eram imediatamente exequíveis desde a data da decisão administrativa, o que, diferentemente do que tinha sido decidido pelo Banco de Portugal, se traduz numa mera recusa de atribuição de efeito suspensivo ao recurso interposto para a 2ª instância, na parte em que ele tem por objecto a sanção acessória. Ora, nesta dimensão, única que para este recurso importa, não vemos que o primeiro segmento do citado n° 2 do artigo 227°, aquele que foi aplicado pela decisão recorrida, padeça de inconstitucionalidade. O direito ao recurso não envolve, necessariamente, pelo menos quando não está em causa a privação de liberdade, a atribuição de efeito suspensivo. De resto, as consequências que daquele segmento do preceito decorrem são idênticas às que resultariam da aplicação aos arguidos, como medida cautelar, da suspensão preventiva admitida pelo artigo 216°. Por uma forma ou por outra, trata-se apenas de conferir às autoridades competentes meios eficazes de actuação.
2. É deste acórdão que os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, invocando as seguintes questões:
(...)
2. A inconstitucionalidade das respectivas disposições legais, que adiante se identificam, foi arguida nas alegações do recurso interposto da decisão proferida na 1ª instância para o Tribunal da Relação de Lisboa, quanto às seguintes questões, apreciadas no acórdão recorrido: a) Inconstitucionalidade, por infracção dos princípios da legalidade e da tipicidade, da norma que prevê como contra-ordenação a violação dos limites de risco, ou seja, a da alínea h) do artigo 211° e a do artigo 99º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro. b) Inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade, da norma que estabelece, para as pessoas singulares, uma coima entre 200.000$00 e
200.000.000$00, ou seja, a do artigo 211°/RGICSF, na parte em que estabelece a referida coima. c) Inconstitucionalidade da sanção acessória de inibição de exercício de cargos e funções, estabelecida pela alínea c) do artigo 212°/RGICSF, por indeterminação dos seus pressupostos. d) Inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência, da norma contida no n° 2 do artigo 227º/RGICSF .
3. As normas jurídicas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada são, assim, as acima referidas dos artigos 99°, 211°, 212° e 217º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro, face à interpretação que lhes foi dada e com o conteúdo com que foram aplicadas no acórdão recorrido. Com efeito, o acórdão recorrido concluiu pelo não provimento do recurso interposto pelos arguidos, aplicando as referidas disposições legais segundo interpretação e atribuindo-lhes um conteúdo incompatível com as disposições constitucionais.
4. As normas e princípios constitucionais violados com o acórdão recorrido são: a) os princípios da legalidade e da tipicidade, previstos no artigo 29º, nºs 1 e 3 alínea c) do n° 1 do artigo 165° da Constituição da República Portuguesa
(CRP) quanto à alínea h) do artigo 211° e ao artigo 99º/RGICSF; b) o princípio da legalidade, previsto no artigo 29º, nºs 1 e 3 e 30º, n° 1/CRP quanto ao artigo 211°/RGICSF, com a consequente proibição de sanções de duração limitada ou indefinida; c) o princípio da legalidade, previsto no artigo 29º, nºs 1 e 3 e alínea c) do n° 1 do artigo 165°/CRP quanto à alínea c) do artigo 212º, nºs 1 e 3 e alínea c) do artigo 212º/RGICSF, com a consequente proibição da indeterminação dos pressupostos da aplicação de sanções; d) o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32º, n° 2/CRP, quanto ao n° 2 do artigo 227º/RGICSF.
Admitido o recurso, vieram os recorrentes apresentar as suas alegações, que concluíram assim:
1. Uma das infracções imputadas aos recorrentes é a da alínea h) do artigo 211° do RGICSF e respeitaria à “inobservância das relações e limites prudenciais ... determinados em norma geral pelo Ministro das Finanças ou pelo Banco de Portugal, nos termos do artigo 99°, quando dela resulte ou possa resultar grave prejuízo para o equilíbrio financeiro da entidade em causa”, ou seja, abreviadamente o excesso de limites de risco, sendo esta norma remissiva para o artigo 99°.
2. No caso presente, a norma do artigo 99° prevê expressamente o caso dos avisos e não das instruções.
3. Ora, relativamente à supervisão e controlo dos grandes riscos nas instituições de crédito, foi publicado o Aviso n° 10/94, do Ministro das Finanças, no Diário da República, II Série, n° 267, de 18 de Novembro de 1994.
4. O ponto 2 do nº 10° desse Aviso estabeleceu que “O Banco de Portugal definirá os limites aplicáveis em base individual às instituições pertencentes ao Sistema Integrado do Crédito Agrícola Mútuo”, de que faz parte a D. de
---------------------.
5. Tais limites vieram a ser fixados pelo Banco de Portugal através de instruções e não de avisos.
6. Ora, a norma sancionatória - alínea h) do artigo 211° e artigo 99º do RGICSF
- é uma norma “em branco”, que, para a definição do tipo, remete para outras normas e que, neste caso, seriam as constantes de avisos do Banco de Portugal
(cfr. artigo 99°) e não para avisos do Ministro das Finanças, como é o Aviso n°
10/94, nem para instruções do Banco de Portugal.
7. O que se passa, pois, é que a norma sancionadora da contra-ordenação em causa contém na definição do respectivo tipo o reenvio “em branco” para disposições administrativas de conteúdo regulamentar.
8. Tal reenvio não respeita o princípio da tipicidade e da legalidade, que também vigora no âmbito das contra-ordenações.
9. E ainda menos tais princípios seriam respeitados se - como pretendem a acusação e a decisão recorrida - viessem a relevar para a definição do tipo da contra-ordenação em causa simples instruções do Banco de Portugal, que não os avisos a que alude o artigo 99º do RGICSF, com o que se excederia claramente o conteúdo admissível da remissão prevista na norma sancionadora.
10. No entanto, o aliás douto acórdão recorrido interpretou as disposições da alínea h) do artigo 211° e do artigo 99° do RGICSF como admitindo no seu conteúdo actos normativos do Banco de Portugal sob a forma menos solene de
“Instruções” e não de “Avisos”, com o que foram violados os princípios da legalidade e da tipicidade também vigentes em matéria de contra-ordenações.
11. Deve, assim, ser declarada a inconstitucionalidade das normas da alínea h) do artigo 211° e do artigo 99º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92, de 31 de Dezembro, que revê como contra-ordenação a violação dos limites de risco, por infracção dos princípios da legalidade e da tipicidade, previstos no artigo 29º, nºs 1 e 3 alínea c) do nº 1 do artigo 165° da Constituição da República Portuguesa (CRP).
*
12. A coima aplicável às contra-ordenações em discussão nos autos é feita com uma amplitude que vai, para as pessoas singulares de 200.000$00 a
200.000.000$00, o que suscita sérias reservas quanto à constitucionalidade da sua estipulação.
13. As sanções não podem ser arbitrárias ou indefinidas, vigorando o princípio da legalidade tanto para as infracções (nullum crimen sine lege) como para as sanções (nulla poena sine lege).
14. Os princípios da legalidade e da proporcionalidade, também vigentes no
âmbito do direito de mera ordenação social, proscrevem as sanções desproporcionadas, sem adequada relação com a tutela dos bens jurídicos a proteger e que possam redundar num desnecessário, excessivo ou injustificado prejuízo de outros direitos igualmente protegidos.
15. A fixação dos limites da sanção entre 200.000$00 e 200.000.000$00 e, assim, numa relação de 1 para 1.000 (!), sem quaisquer outras referências ou marcas individualizadoras, viola os referidos princípios constitucionais, deixando nas mãos da Administração uma excessiva latitude na fixação da sanção, que, assim, se toma arbitrária e excessivamente dependente de critérios de mera oportunidade e não de legalidade e de critérios subjectivos e desligados de quaisquer referências objectivas e controláveis.
16. Assim, no caso presente, foram aplicadas coimas de 6.300 contos e de 4.350 contos, mas a larguíssima margem entre os limites mínimo e máximo não permite a compreensão racional da fixação de tais montantes.
17. Trata-se de uma margem tão grande de discricionariedade que nenhum critério pode tornar-se operativo na fixação da sanção e respeitar princípios de justiça, de adequação e de proporcionalidade, ao contrário, por exemplo, do que sucede com os critérios que vigoram para as infracções criminais quanto a dosimetria da pena.
18. Vale aqui, contra o entendimento da douta decisão recorrida, a doutrina do Acórdão nº 547/2001 do Tribunal Constitucional (Processo n° 481/2000 da 3ª Secção), quanto ao artigo 670º, nº 4, do Código do Mercado de Valores Mobiliários, em que os limites eram de 500.000$00 a 300.000.000$00 e, assim, na relação de 1 para 600, inferior até à que neste caso está em discussão.
19. Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo
211°/RGICSF, na parte em que estabelece para as pessoas singulares e para as infracções que pune uma coima entre 200.000$00 e 200.000.000$00, por violação do princípio da legalidade, previsto nos artigos 29°, nºs 1 e 3 e 30º, n° l/CRP, com a consequente proibição de sanções de duração limitada ou indefinida.
*
20. A decisão recorrida aplicou a sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 212° do RGICSF.
21. Ora, a apontada disposição atribui à entidade decisora uma faculdade de aplicação das sanções acessórias, mas não define os pressupostos de que depende essa aplicação e que, assim, fica dependente de meros critérios de oportunidade e conveniência e não de legalidade.
22. Além disso, a sanção acessória em causa surge como manifestamente injustificada e desproporcionada, pois o exercício das funções em causa está dependente de registo e, assim, de um procedimento administrativo, de carácter não sancionatório, que conduz aos mesmos resultados.
23. Deve, pois, ser declarada a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 212°/RGICSF, que estabelece a sanção acessória de inibição de exercício de cargos e funções, pela indeterminação dos seus pressupostos e consequente violação do princípio da legalidade, previsto nos artigos 29º0, nºs 1 e 3 e alínea c) do nº 1 do artigo 165°/CRP;
*
24. O nº 2 do artigo 227°/RGICSF prevê que a decisão de condenação na sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras se tome imediatamente exequível, só terminando a sua exequibilidade com decisão judicial que definitivamente a revogue.
25. Esta disposição foi aplicada pelo douto acórdão recorrido, que confirmou a sanção acessória aplicada aos recorrentes, sendo que tal disposição admite a imediata execução de uma sanção antes da decisão condenatória definitiva e, assim, com manifesta violação do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido - tendo nessa medida de ser havida como inconstitucional.
26. Assim, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma contida no nº 2 do artigo 227º/RGICSF, por violação do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32°, n° 2/CRP.
*
27. Dado o exposto, deve conceder-se provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado e, em consequência, serem os recorrentes absolvido da infracção e da coima em que foram condenados, como é de
JUSTIÇA
Junto do Tribunal Constitucional o Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
1° - Não viola nenhum preceito ou princípio da Constituição a utilização, pelo legislador, no domínio contraordenacional, de “normas em branco”, desde que o núcleo essencial da ilicitude decorra do tipo legal em causa, nem a atribuição de efeito meramente devolutivo aos recursos interpostos da decisão aplicativa da coima, permitindo, em termos preventivos e cautelares, a imediata aplicação da sanção acessória de inibição de cargos sociais, cujos pressupostos estão suficientemente tipificados na lei.
2° - A norma que delimita os limites abstractos da coima, aplicável à contraordenação imputada ao arguido, não viola os princípios da proporcionalidade e da legalidade.
3° - Termos em que deverá improceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
3. As questões de constitucionalidade suscitadas são as seguintes: a) A inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, da norma constante do artigo 211º, alínea h), do RGICSF, em conjugação com o artigo 99º do mesmo diploma, na medida em que tais preceitos consubstanciariam uma norma de direito sancionatório público em branco, ao remeterem a sua previsão para disposições administrativas de conteúdo regulamentar; b) a inconstitucionalidade, por violação do princípio da legalidade, do referido artigo 211º na medida em que estabelece, para as pessoas singulares, uma coima entre 200.000$00 e 200.000.000$00, pelo facto de a moldura da contra-ordenação ser excessivamente ampla; c) a inconstitucionalidade, por indeterminação dos pressupostos, da sanção acessória de inibição de exercício de cargos e funções, estabelecida pela alínea c) do artigo 212º do RGICSF; d) a inconstitucionalidade, por violação do “princípio da presunção de inocência”, da norma contida no artigo 227º, nº 2, do RGICSF, na medida em que desta norma resulte a imediata exequibilidade logo após a decisão administrativa
“só terminando a sua exequibilidade com decisão judicial que definitivamente a revogue”, não sendo, assim, concedido efeito suspensivo aos recursos interpostos.
4. A primeira questão de inconstitucionalidade suscitada refere-se à eventual violação do princípio da legalidade consagrado no artigo 29º da Constituição pelas normas constantes dos artigos 211º, alínea h), e 99º, do RGICSF. Tais normas têm a seguinte redacção: Artigo 211°
(Infracções especialmente graves) São puníveis com coima de 500.000$000 a 500.000.000$00 ou de 200.000$00 a
200.000.000$00, consoante seja aplicável a ente colectivo ou a pessoa singular, as infracções adiante referidas:
(...) h) A inobservância de relações e limites prudenciais constantes do n° 2 do artigo 96°, sem prejuízo do n° 3 do mesmo artigo, bem como dos artigos 97°, 98°,
100°, 101º, 109°, 112° e 113°, ou de outros determinados em norma geral pelo Ministro das Finanças ou pelo Banco de Portugal nos termos do artigo 99°, quando dela resulte ou possa resultar grave prejuízo para o equilíbrio financeiro da entidade em causa;
Artigo 99°
(Relações e limites prudenciais) Compete ao Banco de Portugal definir, por aviso, as relações a observar entre rubricas patrimoniais e estabelecer limites prudenciais à realização de operações que as instituições de crédito estejam autorizadas a praticar, em ambos os casos quer em termos individuais, quer em termos consolidados, e nomeadamente:
(...) d) Limites à concentração de riscos;
5. O problema de cuja solução depende a decisão da anterior questão tem várias dimensões. A primeira dimensão diz respeito ao nível de protecção assegurado pelo princípio da legalidade à determinabilidade dos ilícitos contra-ordenacionais e respectivas sanções. Poder-se-á falar de uma exigência de determinação relativamente ao conteúdo do ilícito típico nas contra-ordenações tal como é exigida para os crimes? Em que medida é que tais ilícitos poderão ser definidos por critérios cuja concretização dependerá, necessariamente, de normas técnicas que modelarão o seu conteúdo exacto? As chamadas normas em branco que remetem o conteúdo da sua precisão para normas de fonte hierarquicamente inferior estão vedadas no direito de mera ordenação social nos mesmos termos do direito penal? A estas questões gerais acresce uma outra que as normas em crise particularmente suscitam – a de saber se a definição pela norma tipificadora do ilícito é suficientemente indicativa dos critérios que, por via regulamentar, concretizarão a previsão normativa, de modo a que estejam salvaguardados os princípios constitucionais que vigoram no direito sancionatório público. No que diz respeito à primeira dimensão, é certo que a Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes. Nem o artigo 29º da Constituição se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social nem o artigo 165º confere a este ilícito o mesmo grau de controlo parlamentar que atribui aos crimes. Está, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
158/92, de 23 de Abril, 263/94, de 23 de Março, publicados no D.R., II Série, de
2 de Setembro de 1992 e de 19 de Julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de Maio, inédito). E se tal não resulta directamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição. Por outro lado, também é verdade que a Constituição ao não consagrar reserva de lei parlamentar quanto à tipificação dos concretos ilícitos de mera ordenação social, admite uma inerente flexibilidade quanto às fontes normativas de tais ilícitos, as quais poderão ter, em última análise, a natureza de fontes regulamentares. Deste modo, o problema das chamadas “normas penais em branco” não pode ser transportado nos mesmos termos do direito penal para o direito de mera ordenação social, já que nada na Constituição impede que, de acordo com o direito ordinário, quaisquer entidades administrativas competentes determinem o conteúdo de tais ilícitos e as respectivas sanções. É, no entanto, necessário ainda distinguir o plano das possíveis fontes normativas deste ilícito do plano da afectação da segurança e previsibilidade que certas técnicas legislativas possam suscitar. É sobretudo a esse nível que tem ainda sentido discutir a constitucionalidade das técnicas de remissão do conteúdo ilícito da lei que prevê a contra-ordenação para outras fontes normativas. Quanto a esta última questão, a resposta, que em geral cabe dar, é a de que o direito de mera ordenação social poderá ainda adequar-se ao essencial das exigências em sede de direito penal, nomeadamente de direito penal secundário, em que haja remissão para normas técnicas. E isto, sobretudo, no que se refere à necessidade de a norma do direito de mera ordenação social que define infracção e a respectiva sanção ter de configurar o essencial do conteúdo do ilícito, isto
é, referências que tornem compreensível para os destinatários os bens jurídicos em causa e o tipo de factos lesivos dos mesmos que a norma pretende evitar. Por outras palavras, uma norma remissiva ainda que no domínio do direito sancionatório público não pode ser vazia quanto à previsão de factos e à orientação da conduta dos seus destinatários. Se é exigível que, no direito penal estas exigências sejam intensificadas, sendo aí os critérios de previsibilidade e segurança mais precisos, no direito de mera ordenação social não deixa de existir uma necessidade de comunicação segura ex-ante do conteúdo do ilícito aos seus possíveis autores (cf., sobre este problema no direito penal, o Acórdão nº 427/95, de 6 de Julho, publicado no D.R., II Série, de 10 de Novembro de 1995). Neste enquadramento jurídico-constitucional, assegurarão as normas em crise as garantias de segurança e de controlo pelo destinatário que foram assinaladas? Ora, o artigo 211º é uma norma que define claramente qual o dano que se pretende evitar – o prejuízo para o equilíbrio financeiro das instituições de crédito ou sociedades financeiras. O dano ou perigo da lesão desse equilíbrio é não só o motivo de proibição, mas o ponto de atracção das condutas proibidas – as quais são, enfim, as adequadas ao efeito que se pretende evitar. Há, assim, uma certa configuração do resultado e da acção na conduta legalmente descrita como proibida. A remissão para os limites prudenciais determinados em norma geral pelo Ministro das Finanças ou pelo Banco de Portugal corresponde à necessidade de serem essas entidades, que dispõem de uma capacidade técnica superior relativamente à globalidade da actividade financeira e a correspondente responsabilidade relativamente aos prejuízos para a economia e para os direitos dos cidadãos, que emitam os concretos critérios que impeçam os resultados desvaliosos referidos. Assim sendo, a remissão para norma geral de origem regulamentar emitida por essas entidades dá uma informação bastante que torna possível aos respectivos destinatários adequarem as suas condutas de forma a evitar o conteúdo de desvalor da conduta proibida. Não existe neste sentido qualquer violação de princípios constitucionais relevantes neste domínio. Por outro lado, o facto de a previsão dos limites concretos ter sido feita por instrumento normativo diverso do previsto no artigo 211º do diploma em causa não suscita qualquer específica questão no plano da constitucionalidade. Na verdade, a Instrução do Banco de Portugal surge apenas com a concretização dos limites gerais aplicáveis às entidades reguladoras quanto às instituições pertencentes ao sistema integrado do crédito agrícola mútuo, prevista no Aviso nº 10/94.
É um prolongamento regulamentar do Aviso, em atenção às características concretas do contexto financeiro destas instituições. O facto de o Aviso remeter para esta regulamentação cria apenas um dever de informação acrescido que é inerente à actividade financeira, mas não aumenta especificamente as dificuldades de acesso prévio ao conteúdo do que é concretamente proibido, nem torna arbitrária a configuração típica concreta da actividade ilícita. Conclui-se, deste modo, que não se verifica qualquer violação de normas ou princípios constitucionais pelo artigo 211º do RGICSF devido à sua configuração remissiva para uma concreta regulamentação.
6. A segunda questão de constitucionalidade suscitada refere-se à amplitude e consequente indeterminação da moldura punitiva prevista no artigo 211º do RGICSF. Questão semelhante foi já abordada em anteriores arestos deste Tribunal
(Acórdãos nºs 574/95 e 572/2001, ambos relativamente ao artigo 670º do Código do Mercado de Valores Mobiliários, que fixava uma coima com o montante mínimo de
500.000$00 e o máximo de 300.000.000$00). Os Acórdãos em causa pronunciaram-se em sentido divergente. O problema que neste caso, como no dos arestos citados, emerge é o de uma eventual violação do princípio da legalidade pela excessiva amplitude existente entre a medida mínima e a medida máxima da coima. A excessiva amplitude poderia transferir para a Administração que aplica a coima o poder de definir sanção sem se evidenciarem os critérios que impediriam o mero funcionamento da oportunidade ou outros interesses não controláveis, em termos de legalidade, pelos destinatários das normas. Em última análise, a excessiva amplitude tornaria imprevisível a sanção e transferiria incontrolavelmente para o aplicador do Direito a fixação da sanção que, em rigor, caberá ao legislador. Com efeito, a norma que se analisa prevê coimas cujos valores são de uma ordem de grandeza profundamente diferente, correspondendo o limite máximo a uma multiplicação por mil do limite mínimo. Há, assim, indiscutivelmente uma variação elevadíssima entre o mínimo e o máximo da coima que, em abstracto, traduziriam o efeito de transferência para o aplicador do Direito o poder prático de criar a sanção. No entanto, se este argumento poderá ser em geral relevante para um juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da legalidade, sobretudo quando estejam em causa penas, há razões específicas relacionadas com este tipo de ilícitos explicativos desta variação de limites que têm de ser consideradas. Trata-se, com efeito, de ilícitos especialmente graves relacionados com a actividade de instituições de crédito e actividade financeira em que apenas pode estar em causa o perigo para os bens jurídicos ou já danos especialmente graves para a actividade financeira e para pessoas singulares. O facto de o legislador ter fixado no Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social (artigo 18º) critérios específicos de determinação da medida da coima, como o do impedimento de que a sanção seja compensada economicamente com os benefícios retirados da infracção bem como a dificuldade de determinar esse benefício, revelam que o problema da amplitude só é solucionável neste domínio de infracções pela elevação dos limites máximos. É exactamente essa a perspectiva que leva o legislador alemão a admitir que a medida da coima possa ser elevada até ao necessário para compensar o benefício económico resultante da infracção (cf., sobre tal posição do legislador alemão, Fernanda Palma e Paulo Otero, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXVII, 1996, p. 557 e ss.), caminho pelo qual não enveredou, totalmente, o legislador português, que previu um critério geral de determinação da medida da coima mais moderado, fixando-se um limite para a ultrapassagem do limite máximo da coima (artigo 18º, nº 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Mas uma tal moderação não pode significar uma renúncia a impedir qualquer compensação económica com a prática da infracção
(artigo 19º, nº 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações). Os critérios de determinação da medida da coima exigem, por outro lado, uma fundamentação da coima aplicada pela Administração que não se compadece com meras razões de oportunidade, mas que tem de ponderar a dimensão da gravidade do facto, da culpa do agente e da sua situação económica. Por outro lado, a elevação dos limites máximos das coimas é, nestes domínios de actividade económica, uma alternativa à legislação de sanções penais, justificada pelo princípio da necessidade da pena. Assim, se várias e importantes razões justificam limites bastante elevados para as coimas nesta área, também não é menos verdade que uma certa natureza
“técnica” das condutas infractoras pode levar a subsumir na previsão legal destas normas condutas cuja gravidade de culpa é bastante baixa. A distância elevada entre o limite mínimo e o máximo da coima é, deste modo, como foi referido no Acórdão nº 574/95, um tributo justificado do princípio da legalidade ao princípio da culpa. A sobreposição a todas estas considerações de uma afirmação formal da legalidade sem atribuição de qualquer relevância às especificidades da política legislativa neste sector de actividade, acabaria por impedir, em última análise, uma qualquer ideia de elevada atenuação da culpa em função de alguma dificuldade de certos agentes disporem de todo o conhecimento adequado para evitar estas infracções que não pressupõem intuições éticas imediatas, mas um certo saber técnico e uma lógica de competência e de responsabilidade profissional. Por estas razões, o Tribunal Constitucional conclui que o artigo 211º do RGICSF não viola o princípio da legalidade devido à amplitude de variação das coimas entre o limite mínimo de 200.000$00 e 200.000.000$00.
7. Uma outra questão de constitucionalidade suscitada refere-se à violação do princípio da legalidade, quanto à determinação das sanções acessórias de inibição de actividade pela norma do artigo 212º, alínea c), do diploma referido. Tal norma tem o seguinte conteúdo:
Artigo 212º Sanções acessórias
1. Conjuntamente com as coimas previstas nos artigos 210º e 211º, poderão ser aplicadas ao infractor as seguintes sanções acessórias:
(...) c) Quando o arguido seja pessoa singular, inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em instituição de crédito ou sociedade financeira determinada ou em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras, por um período de 6 meses a
3 anos, em casos previstos no artigo 210º, ou de 1 ano a 10 anos, em casos previstos no artigo 211º;
(...)
A questão colocada pelos recorrentes é a da indeterminação dos pressupostos da sanção acessória de inibição do exercício de cargos sociais e de funções de administração, direcção, gerência ou chefia em quaisquer instituições de crédito ou sociedades financeiras. Não existe, porém, qualquer indeterminação dos pressupostos destas sanções as quais são aplicáveis nos termos do Regime Geral do Direito de Mera Ordenação Social (artigo 21º-A, nº 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na redacção dos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro e 244/95, de 14 de Setembro, que erige como pressupostos destas sanções o “flagrante e grave abuso de função que exerce” e a “manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes”), orientando-se, aliás, igualmente, a sua aplicação pelos princípios da culpa e da necessidade da pena bem como pelos gerais das sanções criminais
(aplicáveis por força do artigo 32º do Regime Geral do Direito de Mera Ordenação Social), não podendo, por isso, ser válida uma sua determinação em função de critérios de mera oportunidade.
8. Finalmente, é colocada a questão da violação do “princípio da presunção de inocência” (artigo 32º, nº 1, da Constituição) pela norma do artigo 227º, nº 2, do RGICSF, na medida em que consagra o efeito meramente devolutivo do recurso relativo à aplicação das sanções acessórias referidas e a imediata exequibilidade das mesmas. Independentemente de saber se a presunção de inocência tal como resulta do artigo 32º, nº 1, da Constituição, e com a plenitude das suas exigências, se aplica directamente ao processo contra-ordenacional, o certo é que a natureza eminentemente preventiva das sanções acessórias justifica a sua aplicação provisória, sem que tenha havido trânsito em julgado da decisão judicial que a confirme. Com efeito, a aplicação imediata de tais sanções pode impor-se, provisoriamente, tal como sucede a título de medida de segurança com a interdição de actividades
(artigo 100º, nº 3, do Código Penal, em que se prevê a interdição provisória) ou em geral com as medidas de coacção no processo penal (artigo 199º do Código de Processo Penal), tendo um efeito cautelar que é característico de decisões em que se pretende imediatamente suspender um certo efeito. Nestes casos, embora por razões não absolutamente idênticas, é a necessidade de impedir imediatamente que o arguido mantenha as suas funções ou desempenhe funções idênticas por razões preventivas que justifica a aplicação imediata. Tal lógica não contende com a presunção de inocência que se consubstancia, antes, em direitos do arguido quanto à produção de prova e à utilização de meios processuais de defesa e de recurso, sendo, apenas, um meio cautelar provisório de prevenir a continuação da actividade infractora justificada pela condenação do arguido em 1ª instância.
III Decisão
9. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso, confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se as respectivas taxas de justiça em 15 UCs. cada.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos