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Proc. 85/99 - 1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A. recorre para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro – Lei do Tribunal Constitucional (LTC) – impugnando, por inconstitucional, a interpretação e aplicação da norma do artigo
664º do Código de Processo Civil perfilhada no acórdão da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, aqui recorrido.
O recurso foi admitido. Em momento oportuno o Recorrente apresentou a alegação, que, por breve e particularmente explícita, integralmente se transcreve:
1. Autor, ora Recorrente, intentou uma acção contra a ré por considerar que em 1 de Setembro de 1991 com a mesma havia celebrado um contrato de trabalho sem termo, pelo que a comunicação que a Ré lhe dirigiu, em 11 de Maio de 1993, consubstanciou o seu despedimento ilícito;
2. Por seu lado, a Ré veio sustentar que o referido contrato era um contrato de trabalho a termo, logo, a carta com data de 11 de Maio de 1993 traduziu apenas a vontade da Ré em não o renovar;
3. O Autor obteve vencimento no Tribunal de Trabalho de Lisboa e na Relação de Lisboa;
4. Surpreendentemente, pois nada no processo o fazia esperar, até porque a Ré sempre admitiu que havia celebrado um contrato de trabalho com o Autor, apenas divergindo deste na qualificação da respectiva modalidade, o Supremo Tribunal de Justiça veio considerar que o referido contrato era um contrato de avença;
5. Fê-lo com fundamento na norma do artigo 664º do Código de Processo Civil;
6. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça constitui, assim, uma
“decisão-surpresa”, uma vez que aquele Supremo Tribunal qualificou o contrato em causa de forma radicalmente diferente das partes, sem previamente lhes conceder a possibilidade de se pronunciarem sobre essa nova qualificação;
7. A proibição de “decisão-surpresa” encontra-se consagrada no nosso ordenamento através do princípio do contraditório, que impõe às partes seja facultada a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito da decisão. Esta proibição tem redobrado interesse para os casos, como o presente, em que o tribunal faz apelo aos seus poderes de conhecimento oficioso;
8. Deste modo, o artigo 664º do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional, por ofensa ao princípio do contraditório, que é uma das vertentes do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º da Constituição (garantia de acesso efectivo a uma jurisdição). Conclusões: Ao considerar com fundamento no artigo 664º do Código de Processo Civil que determinado contrato, o qual foi qualificado pelas partes como contrato de trabalho, consubstanciava antes um contrato de avença, o Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que não convidou as partes para se pronunciarem previamente sobre essa mera qualificação, proferiu uma “decisão-surpresa”, proibida por lei. Por isso, o artigo 664º do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional, por ofensa ao princípio do contraditório, que é uma das vertentes do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º da Constituição (garantia de acesso efectivo a uma jurisdição). Nestes termos e nos demais de direito requer-se a revogação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com as legais consequências.
A recorrida B. contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso, embora sem deixar de invocar – nas alíneas E., H. e I. – o seguinte:
“E. O Recorrente vem suscitar a questão da inconstitucionalidade do artigo 664° do C PC., servindo-se, sem o explicitar, do artigo 3°, n° 3, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto- Lei n° 329-Al95, de 12 de Dezembro, assim ocorrendo a violação, pela decisão recorrida, do principio constitucional do contraditório, relativamente à questão de direito.
H. A existir alguma inconstitucionalidade, teria de ser reconduzida ao artigo
3°, n° 3 do C.P.C., na interpretação acolhida (implicitamente) na decisão reclamada, mas ainda assim, o Supremo Tribunal de Justiça, não interpretou o artigo 664° do C.P .C., de forma inconstitucional:
I. A questão da constitucionalidade - a existir - teria apenas a ver com a norma que proíbe as decisões - surpresa (o art. 3°, n° 3 do C.P.C.) e não com o artigo 664° do C.P.C.. ”
O Recorrente foi ouvido ex professo sobre esta matéria; mantém, em suma, que o artigo 664º do Código de Processo Civil foi aplicado pelo Supremo Tribunal de Justiça com o sentido normativo invocado no presente recurso, e ainda que “não é pelo facto de as decisões-surpresa serem proibidas, ao nível da legislação ordinária, pelo artigo 3º n. 3 do Código de Processo Civil, que se deve deixar e conhecer deste recurso, pois o acórdão fundamentou-se efectivamente no artigo
664º do Código de Processo Civil”. A decisão do Supremo Tribunal de Justiça é – prossegue – “uma decisão inconstitucional, na medida em que foi interpretada de forma errada o artigo 664º do Código de Processo Civil, violando o princípio do contraditório, uma das vertentes do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º da Constituição”.
Importa decidir.
Cumpre apurar previamente se a norma do artigo 664º do Código de Processo Civil foi aplicada, no acórdão recorrido, com o sentido que o Recorrente recorta nas conclusões da alegação do seu recurso.
O problema resultou da seguinte decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 9 de Julho de 1998 (fls. 471/477):
“ Nas demais conclusões invoca a recorrente a nulidade do contrato a prazo por existir simulação, nos termos do artigo 240°, n° 2 do Cód. Civil e a nulidade do contrato sem prazo por efeitos do artigo 6° do Dec-Lei 572/76 de 20 de Julho e por ser contrário à lei, à ordem pública e aos bons costumes, violando os artºs
286° e 294° do C.C., invocando ainda abuso de direito. A apreciação dessas questões pressupõe, naturalmente, antes do mais, a possibilidade de se afirmar a existência entre as partes de um contrato de trabalho. Com efeito, só no caso de se dever ter como assente a qualificação do contrato celebrado entre o Autor e a Ré como um típico contrato de trabalho é que será possível considerar esse contrato como contrato de trabalho sem termo, por força do preceituado pelo n° 3 do artigo 42° do Regime Jurídico aprovado pelo artigo
1º do Dec-Lei n° 64-A/89 de 27 de Fevereiro, uma vez que esse Regime, nos termos do seu artigo 1º, só se aplica aos contratos de trabalho não excluídos pelo Dec-Lei n° 49. 408 de 24 de Novembro de 1969 que aprovou o novo regime jurídico do contrato individual de trabalho a ele anexo. A qualificação do contrato constante do documento junto a fls. 9, dado como reproduzido na alínea B) da matéria de facto, como contrato de trabalho, configura-se, assim, como questão prejudicial da sua conversão em contrato de trabalho sem termo. Essa questão não foi suscitada nem resolvida na sentença nem no acórdão recorrido, nada obstando, por conseguinte, a que este Supremo Tribunal sobre ela se pronuncie, como se impõe que o faça. Com efeito, nos termos do ano 664° do C.P.C., o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora, em princípio só possa servir-se dos factos pelas partes articulados. Se é da competência do juiz indagar e interpretar, livremente, as regras de direito, é inegável que lhe cabe a qualificação jurídica dos factos. As partes fornecem ao juiz os factos mas a qualificação jurídica destes, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do juiz que a exerce com a liberdade assinalada no citado artigo 664°. O juiz pode e deve, assim, suprir, ex oficio as deficiências ou inexactidões das partes quer quanto à individualização e interpretação da norma, quer quanto à qualificação jurídica do facto, como escreveu Alberto dos Reis, citando Betti, no seu C.P.C. Anotado, vol. V, pág. 93. A qualificação de um contrato pressupõe interpretação que, na definição de MOTA PINTO (Teoria Geral do Direito Civil, 2ª edição, pág. 442) 'é a actividade dirigida a fixar o sentido e alcance decisivo dos negócios, segundo as respectivas declarações integradoras'. O nomen juris dado pelas partes a um contrato não vincula o juiz que sempre pode, livremente, qualificar, diversamente esse contrato, em conformidade com as normas legais aplicáveis. O artigo 1º do regime jurídico aprovado pelo art. 1º do citado Dec-Lei 49. 408 consagra a seguinte noção de contrato de trabalho: 'contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.' A subordinação jurídica, que consiste em a entidade patronal poder, de algum modo, orientar, dirigir e fiscalizar a actividade, em si mesma, de outra pessoa, assim submetida à sua autoridade, é, pois, um elemento essencial do conceito legal de contrato de trabalho. Sem esse vínculo de subordinação ou dependência jurídica, pode haver um contrato de prestação de serviços mas não há contrato de trabalho. A subordinação jurídica é mesmo o principal elemento caracterizador do contrato de trabalho pois nele se encontra a diferença entre esse tipo de contrato e o contrato de prestação de serviços que dele mais se aproxima. Ora os factos dados como provados pela Relação, os únicos a que este Tribunal pode atender, não sustentam a caracterização do contrato celebrado entre a recorrente e o recorrido como um contrato de trabalho uma vez que deles não se pode inferir aquela indispensável subordinação jurídica. Com efeito, o que se provou foi apenas que o recorrido, que já vinha a colaborar com a recorrente, desde 1984, em regime de avença, prestando-lhe assistência nos domínios do Direito Civil e Comercial, em 1 de Setembro de 1991, acordou com esta o constante do documento, junto a fls. 9, dado como reproduzido na al. B) da matéria de facto dada como provada pela Relação. Esse contrato ficou a reger-se pelas cláusulas seguintes:
' 1 - O 2° outorgante continuará a prestar os seus serviços profissionais de orientação e consultadoria jurídica à 1ª outorgante, nas condições em que o vinha fazendo ao abrigo do contrato de avença a que as partes outorgantes se vincularam por troca de correspondência datada de 16-11-84 e 26-11-84.
2 - O presente contrato é pelo prazo de um ano, renovável, com início na presente data.
3 - O local de trabalho do 2° outorgante continuará a ser o seu escritório, deslocando-se aos escritórios da 1ª outorgante em Lisboa, num regime de isenção.
4 - O 2° outorgante passa a usufruir das regalias inerentes ao presente contrato, designadamente em termos de reforma, sendo que os descontos relativos ao primeiro ano da vigência do mesmo serão suportados na retribuição líquida.
5 - O presente contrato não contempla o exercício do mandato judicial que continuará a ser remunerado à parte e caso a caso, conforme vem sendo prática corrente entre as partes.' Este contrato configura-se, assim, claramente, como uma mera continuação do contrato de prestação de serviços, em regime de avença, que vigorava entre os mesmos outorgantes desde 26-11-84, sendo acordado apenas mais o que consta do ponto 4, ou seja, a usufruição pelo 2° outorgante das regalias sociais inerentes, designadamente de reforma. Nesse mesmo sentido provou-se também que o Autor é advogado e colaborava com a Ré nessa qualidade e que o acordo foi celebrado com o intuito de proporcionar ao Autor todos os benefícios de que usufruíam os trabalhadores da Ré e nomeadamente o de lhe conceder o direito de reforma decorridos que fossem cinco anos. Além disso provou-se apenas mais que, por efeito desse acordo, o Autor auferia a retribuição mensal de 160 550$00, subsídio de refeição, subsídios de férias e de Natal, sendo-lhe também fornecido bacalhau e camarão nas condições em que eram fornecidos aos demais trabalhadores da recorrente e que, na sequência desse acordo esta o inscreveu na Segurança Social e passou a efectuar-lhe os respectivos descontos. Estes últimos factos não permitem afirmar que o Autor, após a celebração do contrato que invoca e no qual se baseou a condenação impugnada pela recorrente, passou a prestar os seus serviços à Ré em condições diferentes das anteriormente estabelecidas por contrato de prestação de serviços, em regime de avença. Os factos julgados provados não são, realmente, suficientes para se poder concluir que o Autor alguma vez prestou os seus serviços à Ré, sob a autoridade e direcção desta. Está, assim, arredada a possibilidade de se afirmar a existência de um contrato de trabalho entre o Autor e a Ré, não se justificando, de modo algum, a qualificação como tal do que foi por eles celebrado com o título de Contrato de Trabalho a Termo Certo . Assim, não podendo esse contrato ser qualificado como contrato de trabalho, não lhe é aplicável o regime jurídico da celebração e caducidade dos contratos de trabalho a termo, conforme decorre expressamente do disposto no artigo 1º desse regime aprovado pelo Dec-Lei n° 64-A/89. Consequentemente, não se pode ter por verificado o despedimento ilícito invocado pelo Autor como fundamento do pagamento das retribuições que pediu e em cujo pagamento foi condenada a Ré. Nestes termos, impõe-se concluir, como se conclui, que ao contrato em causa não
é aplicável o n° 3 do artigo 42° do regime jurídico anexo àquele diploma legal de cuja aplicação resultou a condenação impugnada pela recorrente que, consequentemente, fica sem fundamento. Pelo exposto decide-se conceder a revista, revogando-se a decisão por ela impugnada. ”
Contra o acórdão que assim decide, o Autor ora recorrente logo apresentou reclamação, imputando-lhe nulidade (prevista nas alíneas d) e e) do n. 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil) e suscitando o seguinte:
“... IV. Por último, a qualificação, pelo Acórdão proferido, do contrato celebrado entre o Autor e a Ré como de prestação de serviços representou uma verdadeira
'decisão-surpresa', visto que tal questão não fora suscitada antes e sobre ela o Tribunal não ouviu previamente as partes. Ora tendo o Acórdão da Secção feito apelo ao artigo 664° do C.P.C., conclui-se no sentido deste normativo, na interpretação perfilhada pelo mesmo Acórdão, ser inconstitucional, por ofensa do princípio do contraditório, que integra a garantia constitucional do processo equitativo (artigo 20°, n° 4 C.R.P.). A violação do princípio do contraditório, bem como do princípio da cooperação, gera igualmente a nulidade do Acórdão da Secção.
(...)”
A reclamação foi, porém, integralmente desatendida, escrevendo-se, quanto ao que agora concerne:
Quanto às demais questões suscitadas pelo requerente, sem embargo de não ter o Tribunal de sobre elas de se pronunciar por não se incluírem no elenco das causas de nulidade do acórdão, sempre se dirá, relativamente ao invocado incumprimento do n.º 3 do art. 3º do CPC, que a qualificação do contrato podia e devia ter sido alegada na petição inicial, tendo o autor aí toda a oportunidade de se pronunciar a favor da sua caracterização como contrato de trabalho e em contrário da sua qualificação como contrato de prestação de serviços. Na petição inicial podia perfeitamente o autor invocar, como devia, todos os factos susceptíveis de considerar verificados os elementos essenciais de um contrato de trabalho não podendo, assim, dizer-se que, relativamente a essa questão não foi respeitado o princípio do contraditório, consagrado no art. 3º do Código do Processo Civil, tanto mais quanto é certo que se verificava manifesta desnecessidade previamente as partes sobre uma questão em relação à qual foram admitidas a pronunciar-se no processo, em momentos oportunos. Pelo exposto, decide-se desatender as arguidas nulidades e condenar o requerente nas custas do incidente.
Foi na sequência desta decisão que o recorrente interpôs o presente recurso.
Impõe-se, então, averiguar se a norma do artigo 664º do Código de Processo Civil foi aplicada no acórdão recorrido com o sentido que o Recorrente lhe atribui e, seguidamente, se esse sentido é inconstitucional por ofensa do princípio do contraditório.
Com efeito, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC destina-se declaradamente a conhecer da alegada inconstitucionalidade de uma norma aplicada pela decisão recorrida, como razão de decidir (cfr. Acórdão 367/94 in AcTC, vol. 28, p. 147).
O preceito, cuja redacção actual resulta do Decreto-lei 329-A/95 de 12DEZ, é o seguinte:
Artigo 664.º
(Relação entre a actividade das partes e a do juiz)
O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264.º
Ora o simples teor desta norma logo levanta (excluída, por irrelevante para o caso concreto, a referência ao artigo 264º CPC) uma dúvida séria sobre a utilidade do seu comando normativo para a decisão jurisdicional que o Recorrente visa impugnar. E isto porque da conjugação da leitura dessa decisão e das conclusões que fecham a alegação de recurso resulta que a norma não foi interpretada com o sentido que o Recorrente lhe atribui, nem simultaneamente constitui a ratio decidendi do sindicado segmento decisório.
Na verdade, a norma em causa visa definir a relação entre a actividade do juiz e a actividade das partes, no tocante aos materiais de conhecimento, conforme a qualificação do Prof. José Alberto dos REIS (in CPC Anotado, vol. V, p. 92), que prossegue: “pelo que respeita ao direito, a acção do juiz é livre; pelo que respeita aos factos, a sua acção está vinculada.” Isto é: “o juiz é soberano na
órbita estritamente jurídica, move-se dentro dela com inteira liberdade”; por isso, “se é da competência do juiz indagar e interpretar a regra de direito, pertence-lhe evidentemente a operação delicada da qualificação jurídica dos factos. As partes fornecem os factos ao juiz; mas a sua qualificação jurídica, o seu enquadramento no regime legal, é função própria do magistrado, no exercício da qual ele procede com a liberdade assinalada” no preceito.
Certo é que a invocação da norma do artigo 664º do Código de Processo Civil na decisão recorrida tem este preciso significado, isto é, prende-se com a liberdade do juiz quanto à qualificação jurídica dos factos alegados pelas partes, conforme resulta do seguinte passo:
“Os factos julgados provados não são, realmente, suficientes para se poder concluir que o Autor alguma vez prestou os seus serviços à Ré, sob a autoridade e direcção desta. Está, assim, arredada a possibilidade de se afirmar a existência de um contrato de trabalho entre o Autor e a Ré, não se justificando, de modo algum, a qualificação, como tal, do que foi por eles celebrado com o título de Contrato de Trabalho a Termo Certo. Assim, não podendo esse contrato ser qualificado como contrato de trabalho, não lhe é aplicável o regime jurídico da celebração e caducidade dos contratos de trabalho a termo, conforme decorre expressamente do disposto no artigo 1º desse regime aprovado pelo Decreto-Lei n° 64-A/89.”
No entanto, não é esta a “norma” que o Recorrente pretende efectivamente sindicar, conforme por sua vez decorre das conclusões da alegação do recurso:
“Ao considerar com fundamento no artigo 664º do Código de Processo Civil que determinado contrato, o qual foi qualificado pelas partes como contrato de trabalho, consubstanciava antes um contrato de avença, o Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que não convidou as partes para se pronunciarem previamente sobre essa mera qualificação, proferiu uma “decisão-surpresa”, proibida por lei. Por isso, o artigo 664º do Código de Processo Civil, na interpretação perfilhada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional, por ofensa ao princípio do contraditório, que é uma das vertentes do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º da Constituição (garantia de acesso efectivo a uma jurisdição).”
Na verdade, a questão de inconstitucionalidade levantada pelo Recorrente tem a ver já não com a liberdade do juiz na qualificação jurídica dos factos apurados, mas, diferentemente, com o princípio do contraditório, isto é, com a possibilidade que cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões perante o tribunal antes que este tome a sua decisão, posição que este Tribunal assumiu, por exemplo, no Acórdão 259/2000 (DR, II série, 07NOV2000):
“... Tal como se sublinhou no Acórdão n. ° 358/98 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no Acórdão n. ° 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997), o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20°, n. ° 1, da Constituição, que prescreve que “a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
É esta dimensão normativa que o Recorrente quer manifestamente questionar. E essa convicção acentuou-se com a resposta à questão prévia, onde se afirma, que
“não é pelo facto de as decisões-surpresa serem proibidas, ao nível da legislação ordinária, pelo artigo 3º n. 3 do Código de Processo Civil, que se deve deixar e conhecer deste recurso, pois o acórdão fundamentou-se efectivamente no artigo 664º do Código de Processo Civil” e ainda que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça é “uma decisão inconstitucional, na medida em que foi interpretada de forma errada o artigo 664º do Código de Processo Civil, violando o princípio do contraditório, uma das vertentes do direito a um processo equitativo consagrado no artigo 20º da Constituição”.
Ora, no recurso de constitucionalidade radicado – como o presente – na alínea b) do n.1 do artigo 70º da LTC, está excluída a possibilidade de crítica da própria decisão jurisdicional por via da censura a um hipotético resultado decisório constitucionalmente desconforme. Em tal recurso, o Tribunal tem repetidamente alertado que o seu objecto é constituído por normas, ou por determinada interpretação dessas normas, cuja individualização e identificação constitui
ónus do recorrente, aplicadas na decisão recorrida como sua ratio decidendi.
Como se reconhece no citado Acórdão 259/2000, a norma processual onde se precipita aquele princípio do contraditório é o n.3 do artigo 3º do Código de Processo Civil:
“A norma contida no artigo 3° n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões - suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso - que o tribunal vier a decidir.”
Não vem, porém, questionada, no presente recurso, qualquer interpretação normativa desse artigo 3º do Código de Processo Civil, norma de onde resulta o dever de audição prévia da parte e o falado princípio do contraditório, e que, constituindo a matéria em que o Recorrente ancora a questão de constitucionalidade, foi expressamente invocada pelo Tribunal recorrido na decisão da questão que lhe foi colocada por via da reclamação interposta; pelo contrário, é através da norma constante do artigo 664º do Código de Processo Civil que o Recorrente procura delinear aquela questão, mas o certo é que por si só, nas presentes circunstâncias, a invocação de tal norma é insuficiente para preencher o requisito constante da já aludida alínea b) do n. 1 do artigo 70º da LTC.
Em consequência, a disposição impugnada não foi aplicada na decisão recorrida com o sentido que o Recorrente lhe imputa, razão pela qual o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do recurso.
Com este fundamento, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 UC.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida