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Processo n.º 33/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
(Cons. Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional:
1.Nos presentes autos, o Ministério Público vem interpor recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, da sentença proferida em 28 de Outubro de 2003 pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade A., contra liquidação de taxa pela renovação da licença de publicidade, efectuada pela Câmara Municipal de Lisboa. Segundo o recorrente, esta decisão aplicou as normas constantes dos artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado pelo edital n.º 35/92, já julgadas inconstitucionais nos Acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 63/99, 32/2000 e 346/2001. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido do provimento do recurso, em conformidade com a jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional. A Câmara Municipal de Lisboa, por sua vez, contra-alegou no sentido do não provimento do recurso.
2.As normas em causa foram já julgadas inconstitucionais por várias decisões do Tribunal Constitucional, nomeadamente – e de entre as invocadas pelo recorrente
–, pelo acórdão n.º 346/2001, e, recentemente, pelos Acórdãos n.ºs 92/2002 e
437/2003, tirado por esta mesma 2ª Secção. Esta orientação jurisprudencial, no sentido da inconstitucionalidade orgânica das ditas “taxas de publicidade”, previstas em regulamentos camarários, vem já do Acórdão n.º 558/98 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 41º, págs. 55 e segs.) e foi seguida pelos citados Acórdãos n.ºs 63/99 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 42º, págs. 291 e segs.), 32/2000 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 46º, págs. 283 e segs.), 346/2001 (ainda inédito),
92/2002 (ainda não publicado), e 437/2003. Trata-se, assim, de jurisprudência constante, e, aliás, quase unânime, deste Tribunal (tendo-se registado nestes arestos até hoje apenas um voto de vencido), que cumpre reiterar nos presentes autos, pois não se deparam argumentos susceptíveis de alterar o decidido – não sendo este o caso, designadamente, da ideia de que o anunciante, ao afixar publicidade em fachadas de prédios, de sua propriedade ou devidamente autorizado pelo proprietário, estaria a fazer uma utilização ou “ocupação” do “espaço público”, ou de qualquer bem semi-público, como o ambiente. Como se afirmou nesse Acórdão n.º 437/03, não se divisa no caso qualquer “contrapartida específica, na utilização de um bem semipúblico, para a remuneração periódica da mera permanência do reclamo e friso em questão.” Remetendo para a fundamentação dos citados arestos, há, pois, que repetir o juízo de inconstitucionalidade, e, por conseguinte, conceder provimento ao recurso.
3.Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional, por violação dos artigos 106º, n.º 2, e 168º, n.º
1, alínea i), da Constituição (versão posterior à Lei Constitucional n.º 1/89), os artigos 3º e 16º do Regulamento de Publicidade do Município de Lisboa, publicado pelo edital n.º 35/92; b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues (com a declaração de voto de vencido anexa) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de Voto
Votei vencido por não poder acompanhar a tese que fez vencimento. Aliás, não vendo demonstrada, em lugar algum, a improcedência dos fundamentos que aduzimos no nosso voto de vencido aposto ao Acórdão n.º 436/03, cuja existência, de resto, se omite, sobram-nos razões para continuar a pensar que a razão está do nosso lado.
Por esse motivo aqui se renova a argumentação expendida naquele voto de vencido e que foi a seguinte:
«1. Os conceitos de imposto e de taxa, que relevam para efeitos da sujeição ou não ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal da Assembleia da República (ou de decreto-lei do Governo emitido a coberto de autorização do Parlamento), não se acham expressamente definidos na Lei Fundamental. Tratam-se de conceitos pré-constitucionais, de conceitos que foram sendo construídos ao longo dos tempos pela ciência e doutrina do direito fiscal (Sobre o tema, cfr. entre outros, Teixeira Ribeiro «Lições de Finanças Públicas», 267 e segs., e na «Revista de Legislação e Jurisprudência», 117º, 3727, 289 e segs., Soares Martinez, «Manual de Direito Fiscal», 34 e segs., Cardoso da Costa,
«Curso de Direito Fiscal», 4 e segs., Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, 43 e 44, Alberto Xavier, «Manual de Direito Fiscal», 1º vol., 42 e segs., Maria Margarida Mesquita Palha, Sobre o conceito jurídico de taxa, publicado em Centro de Estudos Fiscais – Comemoração do XY Aniversário – Estudos, 2º Vol., 582 e segs., Sá Gomes «Curso de Direito Fiscal», 92 e segs. e, mais recentemente, Pitta e Cunha, Xavier de Basto e Lobo Xavier, no artigo intitulado Os Conceitos de Taxa e Imposto a propósito de Licenças Municipais, publicado na revista FISCO, n.º 51/52, 3 e segs.). A nossa Constituição adquiri-os com o sentido aí dominantemente construído e com um escopo específico sistemático-funcional [Referimo-nos à sujeição dos impostos ao princípio da legalidade tributária de reserva de lei formal da AR [actualmente os art.ºs
103º, n.º 2, e 165º, n.º 1, al. i), da CRP ] e ao modelo de organização do Orçamento (cfr. art.º 105º e 106º da CRP]. É consabido que, segundo o aí defendido, a diferença específica entre a taxa e o imposto reside, essencialmente em que, na taxa, há um nexo sinalagmático, – outros preferem falar de uma relação de bilateralidade ou um tributo com causa específica individualizada - entre a prestação do obrigado tributário e a contraprestação da autoridade pública, contraprestação esta que se traduz, segundo o defendido por toda a doutrina, na prestação de um serviço público ou no uso de bens públicos e, ainda, para uma parte da doutrina, porventura dominante pela qual alinha a maioria do Tribunal Constitucional, na remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade de efectiva utilização de bens semi-públicos por aquele obrigado tributário, ou, para outra parte da doutrina, com, apenas, pela remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade da prática de certa actividade ou gozo de certa situação. No imposto, não se verifica essa sinalagmaticidade entre prestações, pois que o obrigado tributário não tem direito a obter por via e por causa da prestação efectuada uma contraprestação específica ou individualizada por parte da administração: o imposto é uma exacção pecuniária unilateral que é destinada por modo geralmente indiferenciado ao financiamento com os gastos públicos para a satisfação passiva das necessidades públicas. No mais, poder-se-á dizer não haver diferenças de relevo: ambos os tributos aparecem enquanto prestações coactivamente definidas e sem carácter de sanção.
2. A destrinça entre os dois tipos de tributos releva, primordialmente, como se sabe, pelo diferente grau de garantia jurídica e política que o sistema lhes dispensa. Nos impostos vigora, desde tempos que se perdem na história, o princípio da auto-tributação representativa ou da tributação consentida, apenas podendo ser lançados pelos representantes do Povo [actualmente o art.º 165º n.º
1 al. i) da CRP] – princípio de legalidade tributária de reserva de lei formal do Parlamento. A garantia política exerce-se essencialmente através do voto nas eleições. A garantia jurídica individual consubstancia-se no direito de resistência ao pagamento dos impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição (actualmente, o n.º 3 do art.º 103º da CRP). É certo que também certas entidades que detêm o poder tributário de lançar taxas estão sujeitas à possibilidade de um controlo político: é o caso das autarquias locais e das Regiões Autónomas cujos órgãos são ocupados por pessoas eleitas segundo o princípio democrático - e que, hoje, após a revisão da Constituição de 1997, cabe, também, à Assembleia da República legislar sobre o regime geral das taxas
[art.º 165º, n.º 1, al. i)]. Mas além desta reserva de lei do Parlamento ter, no domínio das taxas, um alcance muito mais restrito, por abarcar apenas o seu regime geral, e mesmo assim introduzido apenas na revisão da Constituição de
1997, pois até, aí, no domínio de vigência da Constituição de 1976, vigorou simplesmente o princípio da simples legalidade administrativa, acontece que, como diz Benjamim Silva Rodrigues, “[...] nem o sistema político está motivado para uma censura deste tipo, nem a estabilidade das finanças das pessoas colectivas de base menor territorial e de outras administrações autónomas a poderia permitir sem grave quebra do funcionamento dos serviços públicos que prestam” (Cfr. Para uma Reforma do Sistema Financeiro e Fiscal do Urbanismo em Portugal, in O Sistema Financeiro e Fiscal do Urbanismo, Actas, Coimbra, Almedina, 2002, págs. 175).
Por isso, como diz o mesmo Autor, “[...] a garantia do contribuinte de não ser apoquentado com a exacção de taxas ilegais acaba por ser
[essencialmente, escreveríamos hoje] simplesmente jurídica, só podendo assentar na própria natureza do tributo e numa dupla dimensão da mesma: a primeira é a de que à quantia exigida tem de corresponder sempre um benefício económico, traduzido na efectiva possibilidade de fruição de certos bens aptos a satisfazerem necessidades humanas – a prestação de uma actividade pública realizada através de uma prestação de serviços, o uso dos bens públicos ou a remoção dos obstáculos jurídicos existentes para o uso de uns ou outros, ou, para a outra doutrina que melhor atenderíamos, a remoção de um obstáculo ou limite jurídico à possibilidade de prática de certa actividade ou gozo de certa situação, embora nem sempre esse benefício aproveite a quem deu lhe deu a causa económica (o caso da taxa de justiça que é paga pelo condenado ou pelo vencido enquanto causante do funcionamento do serviço da justiça)”.
3. Mas além do sempre reafirmado, não é demais realçar, como acentua o mesmo Autor, que a contraprestação da autoridade pública se traduz, ao fim e ao cabo, numa “prestação satisfazente de uma necessidade humana individualizada num concreto sujeito sob a perspectiva de um homem médio e que só nesta medida
é que pode ser vista como respeitante a uma necessidade objectiva” e que, sendo assim, será necessário existir sempre uma “fruição individualizada de bens públicos sentível ou susceptível de ser sentida também individualizadamente pelo contribuinte médio, enquanto pacificando uma sua necessidade”. Vistas as coisas do lado da contraprestação publica, poderá, sem margem para dúvidas, afirmar-se que esta se traduz sempre numa prestação de utilidades económico-jurídicas, numa disposição fruível de bens jurídicos, capazes de satisfazer necessidades humanas individualizadas.
Embora costumando-se identificar esses bens como de “prestação de um serviço público, uso de bens públicos ou, ainda, remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade de efectiva utilização de bens semipúblicos pelo obrigado tributário”, o certo é que sempre estamos perante uma prestação de utilidades económico-jurídicas que são consubstanciadas, em última ratio, na disposição, imediata ou mediatamente [Mas não tão mediata que deixe de haver entre a “utilidade individualizada a que tende a prestação de bens públicos e o pagamento da taxa uma relação de intensidade” que deixe de ser sentível pelo obrigado da taxa “ – cfr. Benjamim Silva Rodrigues, op. cit., págs. 185], fruível ou de utilidades económico jurídicas que são propiciadas por bens públicos ou de utilidades que são dadas por serviços públicos.
4. Estaremos, no caso sub judicio, perante um tributo que seja possível enquadrar no tipo tributário da taxa?
Se for possível surpreender aquela bilateralidade de prestações - do lado do obrigado tributário, uma prestação pecuniária e, do lado da administração, utilidades económico-jurídicas propiciadas por bens semipúblicos ou por serviços públicos – decerto que a resposta será positiva.
A taxa impugnada foi cobrada ao abrigo do disposto nos art.os 46º a
51º do Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Outras Receitas Municipais do Porto, de 1999.
5. Da tipificação legal resulta que a taxa só é devida pela afixação ou inscrição de mensagens publicitárias em bens ou espaços afectos ao domínio público ou deles visíveis.
Dado o acima precisado quanto à natureza da contraprestação pública, não existirá qualquer objecção, pensamos nós, quanto à qualificação como taxa do tributo que seja cobrado pelo município do Porto pela afixação ou inscrição de mensagens publicitárias que seja feita em bens do seu domínio e deles visível, qualquer que seja a doutrina que se adopte quanto á espécie de contraprestação pública possível. Sendo a publicidade feita em bens que pertençam ao município estamos perante a disposição imediatamente fruível de utilidades económico-jurídicas que são propiciadas por esses bens semipúblicos. A questão apenas poderá pôr-se, com algum grau de dificuldade, quanto àqueles casos em que a publicidade visual é “afixada ou inscrita” em suportes físicos que são inteiramente do domínio particular, mas que não deixam de fisicamente ocupar ainda o espaço público aéreo das estradas e das vias públicas, incluindo as ruas com os respectivos passeios, os jardins, as pontes e os viadutos, e deles são também visíveis ou, com maior grau de dificuldade, ainda, em relação à publicidade que está fisicamente afixada em bens do domínio particular - como é o caso dos autos - mas cuja específica utilidade apenas advém essencialmente do facto de poder ser vista dos bens ou espaços afectos ao domínio público.
6. Naquelas situações em que os suportes físicos da publicidade ocupam, também fisicamente, o espaço aéreo daquele primeiro tipo de bens que se deixou enunciado, não pode deixar de entender-se haver aqui uma contraprestação da administração traduzida numa utilidade de fruição de tais bens públicos. Na verdade, pertencem ao domínio público as estradas, assim como todas as vias públicas, incluindo as ruas, com os respectivos passeios, jardins, viadutos e pontes [art.º 84º, n.os 1, alíneas d) e f), e n.º 2, da CRP] [Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, págs. 413].
Se tais anúncios pendem, ainda de qualquer modo, sobre esse tipo de bens públicos, conquanto estejam afixados fisicamente ao prédio ou bem particular, como sejam as fachadas dos imóveis ou outras partes dos mesmos, não
é legítimo afirmar que não existe aqui contraprestação da administração que está traduzida na utilidade de fruição individualizada ou sentível pelo beneficiário particular do espaço aéreo superior aos bens públicos e que deles se tem de ter por elemento constitutivo, mesmo numa lógica de puro domínio privado. A publicidade não deixa de restringir, aqui, com aproveitamento apenas para o beneficiário, o leque de utilidades fruíveis dos bens públicos relacionadas com a utilização do espaço aéreo que corresponde a esse tipo de bens. Digamos que, nessas situações, a publicidade ocupa, simultaneamente, bens privados e públicos.
7. Mas, no nosso modo de ver, a conclusão não poderá ser diferente, qualquer se seja a natureza que se atribua ao direito privado de edificação, naquelas hipóteses em que o suporte físico da publicidade está afixado ou inscrito no prédio particular, mas utiliza o espaço aéreo superior a tais bens para além da dimensão que está consentida como área, espaço de construção ou de edificação privada pelos planos de ordenamento do território, entre os quais se contam os planos municipais, e em que aquele é instalado ou usado para ser visível, essencial ou predominantemente, dos espaços públicos, como acontecerá, normalmente, com os anúncios nos telhados ou nos terraços dos edifícios que sejam propriedade de particulares. Na verdade, segundo decorre do art.º 84º, n.º
1, al. b), da Constituição, pertencem ao domínio público “as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário”. O limite reconhecido ao proprietário ou superficiário, a que se refere este comando constitucional, só pode ser entendido como sendo aquele que os planos de ordenamento do território prevêem para a utilização privada dos imóveis. E isso é assim, porque o ordenamento do território constitui uma imposição constitucional e é esse ordenamento que define quais os modos de utilização do espaço territorial, mesmo privado [cfr. art.os 9º, al. e), 65º e
66º da CRP e 72º, 73º e 84º do DL. n.º 380/99, de 22/9], ao determinar «o destino básico dos terrenos», mediante a sua classificação como solo rural ou urbano, e ao regular «o aproveitamento (do solo) em função da utilização dominante que nele pode ser instalada e desenvolvida, fixando os respectivos usos e, quando admissível, a sua edificabilidade». Deste modo, não pode deixar de fazer-se uma interpretação de concordância prática com aquele preceito da Constituição do art.º 1344º do Código Civil, onde se estabelece que “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície”, que parece ter sido esquecida no recente acórdão deste Tribunal n.º 437/03 , inédito. Nesta perspectiva, poderá dizer-se, com o Professor Fernando Alves Correia, que o direito de edificar é «o resultado de uma atribuição jurídico-pública” decorrente dos planos de ordenamento do território, ou seja enquanto “direito que apenas existe ali onde os planos municipais de ordenamento do território o reconheçam» ou como «poder que acresce à esfera jurídica do proprietário, nos termos e nas condições definidas pelas normas urbanísticas» (Cfr. Estudos de Direito do Urbanismo, Coimbra, 1997, págs. 52 e 53 e O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, págs. 348 e segs.). Nesta óptica, a contraprestação da administração equivale-se à utilidade que é propiciada por um bem que se tem de haver por público por estar já para além do conteúdo do direito de edificação da propriedade privada e que se insere no domínio público aéreo.
Repetindo o que diz o mesmo Professor de Direito (Num parecer inédito sobre a concreta temática, págs. 9 e segs.), poder-se-á com pertinência sustentar que “… embora pertença aos particulares «o espaço aéreo correspondente
à superfície» dos imóveis de privados, por ser abrangido pelo respectivo direito de propriedade (cfr. o art.º 1344º, n.º 1, do Código Civil), o limite superior desse espaço aéreo privado é, no tocante aos imóveis onde tenham sido erigidos edifícios, a cobertura que aí foi levantada ou seja, o respectivo telhado ou terraço. O espaço aéreo acima da cobertura do edifício, esse – repete-se – tem já a natureza de bem do domínio público. É espaço aéreo público, susceptível, no entanto, de uma utilização individualizada pelos particulares que sejam titulares de necessária licença. É, consequentemente, um bem semipúblico.
É que, como sublinhou o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º
329/99, o direito de edificar (rectius, o direito de urbanizar, lotear e edificar) não faz parte da essência do direito de propriedade.
Escreveu-se nesse aresto que, «ainda quando estes direitos assumam a natureza de faculdades inerentes ao direito de propriedade do solo, não se trata de faculdades que façam parte da essência do direito de propriedade, tal como ele é garantido pela Constituição: é que essas faculdades, salvo, porventura, quando esteja em causa a salvaguarda do direito de habitação própria, já não são essenciais à realização do homem como pessoa».
O direito de edificar é, por isso – repete-se -, «o resultado de uma atribuição jurídico-pública» decorrente dos planos. Ou seja: é um direito que apenas existe ali onde os planos municipais de ordenamento do território o reconheçam. E existe no modo como esses planos o reconheçam. São, de facto, os planos municipais de ordenamento do território que fixam o regime de uso do solo
(cfr. o artigo 71º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro), isto
é, «as vocações e os destinos das parcelas de terreno, incluindo a urbanização e a edificação». É nestes planos «que se encontra a resposta à questão de saber se, numa concreta parcela de terreno, é possível construir e, em caso afirmativo, quais os indicadores e parâmetros urbanísticos», pois só pode construir-se nos solos que os planos municipais qualificam como solo urbano:
«solo urbanizado» ou solo cuja urbanização esteja programada».
[...]
Por isto ser assim, o direito de propriedade urbana é «um direito planificado»; e os planos urbanísticos são instrumentos que definem « o conteúdo e limites do direito de propriedade do solo», desse modo o conformando. Conformam-no, designadamente, no sentido de que o direito de propriedade privada, quando o seu objecto sejam solos urbanizados, termina, em altura, na cobertura dos edifícios que neles tiverem sido legalmente erigidos – é dizer: construídos nos solos que, segundo os planos urbanísticos, forem destinados a construção, e construídos no modo por que essa construção for autorizada pelos mesmos planos.
Mas, então, como os edifícios só podem ser construídos com a altura determinada pelos planos, os direitos do proprietário privado só vão até aí – até à altura do edifício cuja construção o plano consente. Daí para cima – repete-se – o espaço aéreo é um espaço aéreo público.
O espaço aéreo acima dos edifícios que sejam propriedade de privados pode, é certo, ser utilizado pelos particulares que pretendam fazer publicidade. Esta, no entanto, carece de licença – é dizer: depende de prévia autorização da respectiva câmara municipal, uma vez que – como se sublinha no art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto – está em causa a «salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental».
A licença só deve, por isso, ser concedida, se a instalação do suporte destinado à publicidade «não provocar obstrução de perspectivas panorâmicas», nem «afectar a estética ou o ambiente dos lugares e da paisagem»;
«não prejudicar a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas»; «não causar prejuízos a terceiros»; «não afectar a segurança das pessoas ou das coisas, nomeadamente na circulação rodoviária ou ferroviária»; «não apresentar disposições, formatos ou cores que possam confundir-se com os da sinalização do tráfego» e «não prejudicar a circulação dos peões, designadamente dos deficientes» (cfr. as várias alíneas do n.º 1 do art.º 4º da citada Lei n.º 97/88, de 17 de Agosto)”.
8. Mas existem outras razões que vão no mesmo sentido, mesmo para quem se coloque do lado da doutrina mais restritiva quanto à espécie da contraprestação pública possível na exigência da taxa. É que, hoje, não é possível deixar de ver o ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, para além de um direito constitucional (art.º 66º, n.º 1, da CRP), também como um bem público ou uma utilidade comummente procurada e exigida pelos cidadãos, na medida em que este
é, hoje simplesmente, o produto do ordenamento do território e de outras acções conformadoras do ambiente que o Estado e, maxime, os municípios promovem. E as pessoas procuram, cada vez mais, esse ambiente humanamente não agressivo, constrangente ou repulsivo. Ora, compete, essencialmente, aos municípios, por mor da sua função constitucional e ordinária de especiais defensores dos interesses locais, especialmente, relativos à área do urbanismo, à salubridade e saúde públicas, a tarefa de intervir positivamente na criação e manutenção de um ambiente sadio. Este será sempre o resultado da intervenção que os municípios tenham sobre os factores que concorrem para o seu melhoramento ou para a sua destruição. A intervenção dos municípios tanto se poderá concretizar através da realização de acções directamente sobre o ambiente, como no domínio do planeamento do seu espaço territorial e na execução de obras que concorram para melhorá-lo, como através da regulação e fiscalização das actividades particulares que interferem com esse ambiente, ou seja, sobre tudo o que interfere com a tranquilidade pública, do sossego público, dos bons costumes, da segurança e da estética urbana (art.º 1º da Lei n. 97/88, de 17/8), entre eles se contando a emissão de sons ou ruídos e a instalação de mostruários, letreiros, painéis ou cartazes. Digamos, nesta óptica, que o ambiente é, predominantemente, o resultado da actuação dos municípios na área do urbanismo e da intervenção positiva sobre os factores que o influenciam, tendo esse bem as características ou qualidades que essa intervenção modelar e salvaguardar. Segundo este ponto de vista, “a afixação ou a inscrição de publicidade para ser vista do espaço público” corresponde a uma utilização individual concreta, ocorrida no domínio de um círculo bem delimitado de pessoas (não sendo, por isso, legítimo o pretenso paralelismo com a utilização das ruas públicas pelas pessoas), do bem colectivo “ambiente” para cuja caracterização concorrem cuja gestão e defesa cabe, em especial, ao município. E não se diga, como se vê defendido no recente acórdão n.º 437/03, inédito, deste Tribunal Constitucional que este bem “não só não é fruto apenas da actividade da entidade que efectua este licenciamento específicos, mas de muitos outros factores, como é fruído genericamente por todos os cidadãos, não sendo objecto de uma contrapartida específica a favor do anunciante”. Tal modo de ver as coisas despreza totalmente a incomensurável e notória diferença de grau de intensidade da actividade específica positiva de intervenção das autarquias e do Estado sobre os factores de cuja concorrência decorre a manutenção ou a reconstituição de um ambiente ecologicamente sadio, pondo no mesmo prato da balança a crescente actividade positiva das entidades públicas de intervenção sobre o ambiente e a atitude essencialmente de abstenção
(em grande parte juridicamente forçada) dos particulares. Por outro lado, dizer-se que o comum dos cidadãos frui o ambiente ecologicamente conformado pela actividade das autarquias e do Estado na mesma medida do anunciante, pelo que o mesmo “não é objecto de uma contrapartida específica a favor do anunciante” é manter-se completamente cego à realidade económica. Basta notar que o anunciante retira de tal bem uma utilidade económica que o comum dos cidadãos dele não distrai de forma alguma, satisfazente das suas necessidades económicas individualizadas, para ver que as utilidades de que se compõe o bem “ambiente” são fruídas de forma e grau muitíssimo diferentes por esses diferentes sujeitos. O comum dos cidadãos não retira desse bem qualquer satisfação de uma sua necessidade económica: esta só existe para o anunciante que a satisfaz pelas utilidades que o ambiente é capaz, nesse domínio, de lhe dar. O comum dos cidadãos é, relativamente a essa potencialidade económica do ambiente, apenas consumidor da actividade publicitária realizada, no caso, mediante o uso pelo anunciante do bem ambiente fornecido segundo regras de acesso limitado e condicionado, o que faz com que o mesmo se converta num bem económico de elevado valor, sem intervenção de qualquer intuito de por aqueles condicionamentos se virem a cobrar taxas sobre o seu uso. E neste plano cabe acentuar também que as taxas são cobradas pelo uso do bem
“ambiente” e não como contrapartida de qualquer actividade de polícia ou de controlo do ambiente e das regras urbanísticas, como se deixa entender no acórdão acabado de referir. A prestação de tais actividades de controlo, em relação às quais se poderia, de facto, conjecturar a cobrança de taxas desde que haja uma fruição individualizada da sua prestação, apenas está admitida como importando “ao processo de produção de um ambiente ecologicamente sadio” de que o anunciante tira proveito económico individualizado.
Só esta visão das coisas explica que em todas as leis de finanças locais, da actual era democrática, tenha sido prevista a possibilidade de lançamento de taxas pela “autorização para o emprego de meios de publicidade destinados a propaganda comercial” [Lei n.º 1/79 – art.º 13º, n.º 1, al. h); DL. n.º 98/84 – art.º 8º, al. h); Lei n.º 1/87 – art.º 11º, al. h); Lei n.º 42/98 – art.º 19º, al. h)]. Bem redutor e minimalista, e quase dispensável, seria um tal preceito, sucessivamente reafirmado, se, no sucessivo pensamento legislativo, estivesse em vista só a possibilidade de legal lançamento de taxas apenas pela autorização e manutenção de publicidade nos imóveis do município (mesmo com abrangência dos que pendem sobre os bens públicos). A legalidade de uma situação dessas poder-se-ia distrair, já, directa e imediatamente, apenas da sua capacidade constitucional e legal de administrar os seus bens próprios, não havendo necessidade de um preceito a facultar o lançamento da taxa de publicidade.
9. Neste âmbito há que notar que o conceito de bem económico e jurídico padece de uma profunda reformulação, ultrapassando-se, de vez, o conceito romanístico, quer quanto à natureza dos bens, quer quanto ao conteúdo do respectivo direito de propriedade. Assim, há que achar lugar para os bens criados pelas novas tecnologias, cuja prestação, quando pública, não pode deixar de justificar a cobrança de taxas ou de tarifas [Como se sabe, não existe grande diferença conceitual entre umas e outras, usando-se predominantemente a designação de tarifas quando as contraprestações públicas são fornecidas no âmbito de um serviço organizado para esse específico efeito (serviços de água, saneamento, transportes, etc.], e pelos novos modos de viver e de sentir da humanidade - para os bens que respondem a novas necessidades do Homem ou a novos moldes de necessidades já antigas. Entre estes conta-se, sem rebuço, o ambiente cujos parâmetros de qualidade e características a sociedade de hoje exige que estejam todos quase que pré-definidos normativamente e que se mantenham dentro de certos níveis de qualidade ou valores. Por outro lado, a aptidão social do direito de propriedade constitui, hoje, não uma limitação do direito mas uma função do próprio direito, surgindo as aptidões sociais do direito não como limites, mas antes como vectores de utilidades que andam a par com as dirigidas essencialmente ao titular privado dos bens. Que o ambiente é, hoje, um bem público resulta com insofismável certeza da extensa regulação que a lei lhe dispensa: o ambiente tornou-se, hoje, - como que a par do direito de propriedade - , objecto de protecção contravencional e criminal (art.os 46º e
47º da Lei n.º 11/87, de 7/4) e de responsabilidade extracontratual (art.os
40º, n.º 4 e 41º da mesma Lei). Por outro lado, trata-se de um bem púbico cuja defesa cabe prevalentemente ao Estado, mas que é levada a cabo essencialmente através das autarquias locais – art.os 37º a 40º da Lei n.º 11/87. Dada a especial natureza de tal bem público, pois interfere directa e imediatamente com a qualidade de vida de todos aqueles que se inserem nele, e numa relação de grande intensidade e tensão, entendeu a lei que não podia descurar, no quer que fosse, a sua defesa. Por isso, para que o atavismo daqueles que gerem a coisa pública não conduzisse a que ele fosse e permanecesse ofendido, a lei cometeu também a sua defesa a todos os cidadãos, membros da comunidade, erigindo-o, assim, à categoria de direito subjectivo público. É o que se colhe do art.º 40º, n.º 4 da Lei n.º 11/87. Inclusivamente, foi, aí, ao ponto de lhes conceder o direito à indemnização, desde que directamente lesados. E na perspectiva de salvaguardar « o ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado», cujo direito o art.º 66º, n.º 1 da CRP garante a todos os cidadãos, o legislador tem interferido cada vez mais em sua defesa. É nesta linha que se posicionam o Decreto-Lei n.º 251/87, de 24/6 (regulamento geral sobre o ruído), depois alterado pelo DL. n.º 292/89, de 2/9; a Portaria n.º 879/90, de 20/9 que estabelece disposições sobre a poluição sonora resultante do exercício de certas actividades; o Decreto-Lei n.º 72/92, de 28/4 e o Decreto-Regulamentar n.º 9/92, de 28/4, que o regulamenta, que contêm um quadro geral de normas de protecção dos trabalhadores contra os riscos decorrentes do ruído. E é, ainda, no mesmo caminho que alinha a Lei n.º 24/96, que estabelece, o regime geral aplicável à defesa dos consumidores, assegurando o seu art.º 10º o direito à acção inibitória destinada a prevenir, corrigir ou fazer cessar práticas lesivas dos direitos do consumidor consignados nessa lei que, nomeadamente, atentem contra a saúde e segurança física. Também a citada Lei n.º 97/88, de 17/8 e o Código da Publicidade (aprovado pelo DL. n.º 330/90, de 23/10 e republicado pelo DL. n.º
275/98, de 9/9, depois de ter sido anteriormente alterado pelos DLs. n.os 74/93, de 10/3, 6/95, de 17/1 e 61/97, de 25/3) têm, como um dos principais objectivos, a salvaguarda de tal bem público, sendo que a defesa dos valores aí afirmados foi cometida essencialmente às câmara municipais, relativamente à área de cada município. E, do mesmo modo, toda a legislação referente ao urbanismo comunga da mesma ideia da criação, manutenção e defesa de um ambiente ecologicamente sadio e equilibrado.
10. Finalmente, nesta mesma linha, há que acentuar que não pode ser em nome das exigências garantísticas, próprias da natureza das taxas, que acima se assinalaram, que será necessário ir tão longe, como tem ido o Tribunal Constitucional. E este – acentue-se – é o diapasão pelo qual num Estado de Direito Fiscal deve, em última ratio, aferir-se a valia dos argumentos. Na verdade, não existem dúvidas que, na perspectiva do homem médio, do cidadão e contribuinte comuns, estamos perante uma utilização pelo concreto obrigado da taxa de uma utilização perfeitamente sentível das potencialidades físicas relativas a um bem público que é emergente, essencialmente, da actuação dos municípios na área do urbanismo, na defesa do sossego, saúde e tranquilidade públicas, e que é tido, comummente, por escasso na perspectiva da sua correcta utilização e cuja defesa – realce-se, mais uma vez - através da fiscalização de intervenções que intercedem negativamente com ele cabe aos municípios. É evidente a existência de uma fruição individualizada de uma utilidade económico-jurídica relativa a bens semi-públicos em termos de uma relação de intensidade perfeitamente perceptível e destrinçável por todos os cidadãos. Não se vê que o obrigado tributário possa invocar que paga um tributo sem uma causa específica ou por um uso comum e indiferenciado dos bens públicos. A melhor prova do acerto de uma posição destas é que o cidadão comum vê essa publicidade enquanto elemento que interfere com o seu habitat cuja conformação e defesa cabe, essencialmente, aos municípios.
Aliás, não vemos que exista, no concreto tipo tributário aqui em análise, uma relação de intensidade conectiva entre o pagamento do obrigado tributário e as utilidades que são propiciadas pela contraprestação da administração menos sentível, perceptível e destrinçável, e nessa perspectiva menos garantística, do que aquela que se verifica nas taxas de realização por infraestruturas urbanísticas ou na tarifa (taxa) de recolha do lixo cuja apreciação foi objecto dos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 639/95,
357/99 e n.º 22/2000, publicados, respectivamente, no D. R. II Série, de
19/3/96, de 2/3/2000 e de 24/3/2000, e em que se considerou estar-se parente uma taxa, ou nas situações em que intercede uma simples possibilidade da utilização dos bens semipúblicos em que, igualmente, se considerou, no acórdão do mesmo Tribunal n.º 354/98, publicado no D. R. II Série, de 15/7/98 caber ainda no conceito de taxa.
11. Estas razões valem, também, segundo se pensa, para quem entenda, além de outros, com Freitas do Amaral (Cfr. in Apreciação da Dissertação de Doutoramento do licenciado Fernando Alves Correia, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXII, 1991, págs. 99-101), que o ius aedificandi é uma faculdade que compõe, naturaliter, o direito de propriedade do solo, e não uma atribuição dos planos urbanísticos e para quem opte pela dita doutrina mais restritiva do conceito de taxa por que alinha o Tribunal Constitucional. É que a utilidade essencial e determinante na óptica do utilizador que o obrigado do tributo obtém pela via do pagamento do tributo não
é propriamente a utilidade traduzida na afixação ou inscrição dos anúncios nos bens do domínio privado mas sim, essencialmente, a utilidade dos mesmos poderem ser visíveis e tidos em conta por quem circula nos espaços públicos planificados pelos municípios e cuja preservação como ecologicamente sadios principalmente lhes compete. Também aqui se poderá dizer, como acima, que, na perspectiva do homem médio, do cidadão e contribuinte comuns, estamos perante uma utilização pelo concreto obrigado da taxa de uma utilização perfeitamente sentível das potencialidades físicas relativas a um bem público ou comunitário tido por escasso na perspectiva da sua correcta utilização local ou autárquica e cuja defesa de fiscalização de intervenções que intercedem negativamente com ele cabe aos municípios, bem esse que são as potencialidades reais do bem público constituído pelo espaço ambiental, planificado, aéreo e urbanístico ou seja do bem público ambiente enquanto produto da intervenção dos municípios. Não se descortina existir, aqui, qualquer perigo de ver o tributo degenerar-se num tributo sem causa individual específica, como acontece com os impostos e com a utilização indiferenciada dos bens que são objecto de satisfação passiva. Nesta
óptica, será legítimo ver a contraprestação pública na susceptibilidade real de tirar um específico e diferente proveito das potencialidades desse concreto bem público.
Estas características levam, por outro lado, a afastar, no caso, a qualificação do tributo como contribuição especial, tipo este que a doutrina tem em geral como imposto, em que não deixa de ser possível surpreender a existência de uma específica causa imediata que concorre com a da necessidade geral de arrecadar receitas. É que, qualquer que seja a definição que se dê dessas contribuições especiais (Cfr. J. Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2003,
2ª edição refundida e aumentada, págs. 26 e segs.; Benjamim Rodrigues, Para uma Reforma......, op. cit., págs. 198 e segs.), é seguro terem elas, todas, um tópico que não concorre na taxa aqui em questão: as contribuições especiais assentam sempre na manifestação de uma específica capacidade contributiva, revelada predominantemente por um aumento do valor dos bens; a taxa em questão não está conexionada ou dependente de qualquer específico aumento da capacidade contributiva, sendo o seu valor achado dentro, pelo menos, o princípio da equivalência jurídica.
12. Mas, ainda, que não se possa ir tão longe, sempre o tributo em causa tem de ser qualificado como taxa quando visto pelo critério do art.º 4º, n.º 2, da Lei Geral Tributária. E esse critério não é de repudiar sem mais, como o fez o recente acórdão n.º 437/03, já referido, só porque se lhe contrapõe uma outra tese doutrinária quanto à espécie de utilidades exigíveis para integrar a prestação pública. Tratando-se de um conceito construído doutrinariamente e que como tal foi assumido pela Constituição, ele deve ser admitido segundo a sua concepção mais ampla conquanto não saiam postergadas as exigências garantísticas que fundamentam as distinção funcional dos conceitos. E já acima vimos que isso não acontece seguramente. Ora, vistas as coisas por esse prisma, o certo é que sempre será possível descortinar aqui uma situação em que a licença representa não um tributo que é pago simplesmente para se aceder a utilidades que existem puramente nos bens privados, fora de qualquer intervenção conformadora do legislador, e em que se poderia falar em “obstáculo artificialmente levantado para, ao removê-lo, a Administração cobrar uma receita” – que alguma doutrina
(Cfr. J. Casalta Nabais, Direito Fiscal, op. cit., págs. 14) que também acompanhamos, considera de impostos – mas um tributo que se paga para remover um limite ou um obstáculo à livre actividade dos particulares que apenas é levantado por evidentes e incontestadas razões de interesse geral de conformação e de possibilidade de realização prática, em que alguma doutrina, em que nos situamos, enquadra na categoria das taxas.
Trata-se de «um limite ou obstáculo substantivo, atinente sobretudo
à concretização e realização prática da liberdade individual e à sua articulação com os interesses públicos de ordem geral» (Cfr. J. Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Coimbra, 1998, págs., 263). Tratam-se de casos em que a utilidade da actividade dos particulares só é verdadeiramente relevante, do ponto de vista da sua possibilidade de realização prática, precisamente porque a lei conforma, regula e limita o exercício de uma tal actividade. De algum modo, é possível afirmar existir, aqui, um bem económico distinto, enquanto produto de uma certa conformação feita pela administração, do que seria o próprio da actividade simplesmente particular, quando exercida livremente. Se fosse permitido fazer livremente toda a publicidade, esta perderia, por um lado, grande parte da sua capacidade de motivação das pessoas e, por outro, deixava de preservar aquele bem público do ambiente ecologicamente sadio. Ora, a actividade publicitária encontra-se, hoje, regulamentada precisamente para defender e preservar o equilíbrio urbano e ambiental, os valores estéticos, paisagísticos, ambientais e de segurança (cfr. a citada Lei n.º 97/88, de 17/8 e no Código da Publicidade, aprovado pelo DL. n.º 330/90, de 23/10 e republicado pelo DL. n.º
275/98, de 9/9, depois de ter sofrido no inter in três alterações). E tais diplomas cometem a defesa destes valores às câmaras municipais relativamente à
área de cada município, sem prejuízo, obviamente, da intervenção necessária de outras entidades (cfr. art.º 1º, n.º 1, da Lei n.º 97/88). Aos municípios cabe, pois, a prossecução daqueles bens jurídicos, quer agindo positivamente, quer negativamente, aqui mediante o exercício do seu poder de polícia. Mas o que é certo é que, também, só de par com essa regulação é que a publicidade alcança a sua maior utilidade, conquanto cingida dentro dos parâmetros legalmente permitidos.
De resto, ao contrário do subentendido em tal recente acórdão, não se trata de apurar o sentido de um certo conceito constitucional pela definição que a lei ordinária lhe veio posteriormente a emprestar, mas simplesmente de constatar que esta lei ordinária acabou por admitir a acepção mais ampla que em termos constitucionais poderia ser atribuída ao conceito da taxa, dentro daquela postura constitucional de apropriação dos conceitos pré-constitucionais existentes. Numa tal perspectiva - e ao contrário do que se infere do referido acórdão - a solução demandada pelo princípio da constitucionalidade será a que postula que se preserve a constitucionalidade do preceito da Lei Geral Tributária que incluiu no conceito de taxa a simples remoção dos obstáculos jurídicos e não a que foi tirada nesse aresto, independentemente de tal preceito da Lei Geral Tributária ser ou não objecto do recurso de constitucionalidade, já que este aspecto apenas contenderá com o pressuposto do recurso de fiscalização da constitucionalidade da norma e não com a sua conformidade constitucional. Deste modo, as câmaras municipais, ao concederem as licenças para a colocação e permanência de publicidade, mesmo que em edifícios privados, mas visíveis dos espaços públicos, estão a remover um limite ou obstáculo jurídico imposto ao livre exercício da actividade dos particulares, limite este que é um limite substantivo porquanto a substância da actividade dos particulares acaba por estar conformada por força dessa intervenção, tendo um conteúdo que só verdadeiramente existe nos termos em que se apresenta por virtude da intervenção administrativa.».
Benjamim Rodrigues