Imprimir acórdão
Proc. n.º 447/03
3ª Secção Relator: Cons. Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. - O Ministério Público recorre, ao abrigo da al. a) do nº1 do artigo 70º e do nº 3 do artigo 72º ( recurso obrigatório) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
( LTC), da sentença do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto que, em recurso contencioso interposto por A., secretário de justiça, residente em
---------------------, da deliberação de 15 de Janeiro de 2002, do Conselho Regional do Norte da Câmara dos Solicitadores, recusou aplicação, por inconstitucionalidade orgânica, à norma constante do artigo 2º do Decreto-Lei nº 343/99, de 26 de Agosto, enquanto revogatória do artigo 7º do Decreto-Lei nº
364/93, de 22 de Outubro (na sequência da autorização legislativa outorgada pela Lei nº 54/93, de 30 de Julho), que definia (transitoriamente, por força do artigo 2º do Decreto-Lei nº 8/99, de 8 de Janeiro) um regime especial de inscrição dos funcionários de justiça, como solicitadores.
O Ministério Público alegou, tendo concluído da seguinte forma:
“1º - Situa-se no âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República a definição do regime atinente à inscrição em qualquer associação pública, nomeadamente no que se refere às condições em que é lícito aos funcionários de justiça obter inscrição na Câmara dos Solicitadores.
2º - Tal regime mostrava-se definido, em termos transitórios, no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, na sequência da autorização legislativa outorgada pela Lei n.º 54/93, de 30 de Julho.
3º - Pelo que não era admissível que o actual estatuto dos funcionários de justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, no uso das competências legislativas próprias do Governo, tivesse procedido à derrogação daquela norma transitória, atinente às ‘associações públicas’.
4º - Assim, a norma revogatória que consta do artigo 2º do citado Decreto-Lei n.º 343/99 deverá ser interpretada, em conformidade com a Constituição, em termos de a genérica revogação por ela operada não atingir o referido regime de inscrição dos funcionários judiciais na Câmara dos Solicitadores, tal como se mostra transitoriamente fixado no artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, em conjugação com o Estatuto dos Solicitadores.”
O Conselho Regional do Norte da Câmara dos Solicitadores também alegou, tendo concluído nos termos seguintes:
“A ) Bem andou a sentença recorrida ao julgar organicamente inconstitucional o Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, com fundamento em violação da reserva relativa da Assembleia da República em matéria de associações públicas, constitucionalmente prevista no artigo 165º, n.º 1, alínea s); B) Em bom rigor, o artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, ao proceder à revogação em bloco do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro, especialmente a norma que condiciona a inscrição na Câmara dos Solicitadores à verificação da condição de cessação de funções, consubstancia uma clara intervenção legislativa incidente sobre a matéria de acesso às associações públicas, neste caso concreto à Câmara dos Solicitadores (n.º 1 do artigo 1º do Estatuto dos Solicitadores); C) Com efeito, ao versar (sem a necessária habilitação) sobre matérias constitucionalmente reservadas à Assembleia da República – e apenas nessa parte
– aquele diploma viola claramente a reserva relativa pertença daquele órgão de soberania (cfr. artigo 165º, n.º 1, alínea s), da CRP), pelo que, repita-se, padece do vício de inconstitucionalidade formal parcial e consequente nulidade, também ela parcial, circunscrita unicamente à alteração, por revogação, do regime legal de acesso à Câmara dos Solicitadores. D) O artigo 2º do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, não pode ser interpretado, em conformidade com a Constituição, no sentido de a genérica revogação por ele operada excluir o artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, porquanto tal interpretação não tem qualquer correspondência com a letra e a vontade do legislador.”
Cumpre decidir.
2.- A sentença recorrida, na parte que interessa, discorreu nos seguintes termos:
“Ora, á luz dos considerandos expostos [ respeitantes à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de associações públicas, aos tipos de inconstitucionalidade e às consequências de aplicação de uma norma inconstitucional por um acto administrativo ] e tendo presente a falta de autorização legislativa por parte do Governo no processo legislativo de que resultou a publicação do D.L. nº 343/99, temos que os seus normativos, mormente o seu art. 02º, são organicamente inconstitucionais, dado que ao revogarem o art. 07º do D.L. nº 343/93, interferiram com os requisitos de inscrição na Câmara dos Solicitadores sem que haja prévia autorização legislativa da AR. a qual detém competência para legislar sobre a matéria [cfr. Art. 165º, nº 1, al. s) da C.R.P. na redacção actualmente vigente – anterior art. 168º, nº 1, al. u) da C.R.P., na versão da Lei nº 01/89]
Nestes termos, nunca poderia, pois, aplicar-se por inconstitucional (cfr. Art. 04º, nº 3 do E.T.A.F.) o regime decorrente do D.L. nº 343/99, na parte em que revoga o art. 07º do D.L. nº 364/93, preceito este que, assim e por isso, se deve considerar como vigorando à data da prolação da deliberação recorrida e como tal obstando à inscrição do recorrente por o mesmo se manter em exercício efectivo de funções judiciais.”
Assim, constitui objecto do presente recurso a norma constante do artigo 2º, al. e), do Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, na parte em que revoga a norma do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro, cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida com fundamento em inconstitucionalidade orgânica [artigo 165º, n.º 1, alínea s), da Constituição].
3. - As questões colocadas no presente recurso foram já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional – de modo uniforme – nos Acórdãos nº 459/2003, publicado no Diário da República, II série, de 21 de Novembro de 2003, nº
500/2003, nº 506/2003, nº 507/2003 e nº 620/2003, nada havendo, nos termos em que agora são debatidas, que justifique revisão ou acréscimo de fundamentação.
Disse-se no Acórdão nº 620/2003, que se retoma por mais recente:
“2.1. A definição dos termos em que a funcionários de justiça é consentida a inscrição na Câmara dos Solicitadores, versando simultaneamente sobre uma regalia daqueles funcionários e sobre as condições de inscrição nesta associação pública, tem sido tratada, ao longo dos tempos, quer no estatuto dos funcionários judiciais, quer no estatuto dos solicitadores, em termos nem sempre coerentes, que importará recordar.
O Decreto-Lei n.º 483/76, de 19 de Junho (Estatuto dos Solicitadores), emitido pelo Governo no uso da faculdade conferida pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea 3), da Lei Constitucional n.º 6/75, de 26 de Março, dispunha no seu artigo 49.º, alínea b):
“Além de ser cidadão português, maior de 21 anos, são condições para inscrição na Câmara dos Solicitadores qualquer das seguintes:
a) Ser licenciado ou bacharel em Direito, com diploma válido em Portugal;
b) Ser escrivão de direito com, pelo menos, dez anos de serviço dessas funções e a classificação mínima de Bom;
c) Ter sido julgado apto pelo grupo orientador de estágio, nos termos do artigo 48.º.”
A alínea b) deste artigo 49.º viria a ser alterada pelo artigo 204.º do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro – que aprovou a orgânica das secretarias judiciais e o estatuto dos funcionários de justiça e foi emitido pelo Governo nos termos do artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição –, com o seguinte teor:
“Os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito à inscrição na Câmara dos Solicitadores, independentemente de quaisquer requisitos, desde que possuam classificação não inferior a Bom.” Pelo Acórdão n.º 347/92 (Diário da República, I Série-A, n.º 279, de 3 de Dezembro de 1992, pág. 5550; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 421, pág. 27; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pág. 99), este Tribunal Constitucional, procedendo à generalização dos juízos de inconstitucionalidade constantes dos Acórdãos n.ºs 283/91 (Diário da República, II Série, n.º 245, de
24 de Outubro de 1991, pág. 10 679; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 408, pág. 133; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.º vol., pág. 387), 464/91
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., pág. 549) e 175/92 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 417, pág. 206), declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade – por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea t), em conjugação com a alínea b), esta com referência ao artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, na redacção de 1982 – da norma do artigo 204.º do Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que altera o disposto no artigo
49.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 483/76, de 19 de Junho. No citado Acórdão n.º 347/92, após se recordar que a alínea t) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (na versão da 1.ª revisão constitucional, a que correspondia a alínea u) do mesmo preceito após a 2.ª revisão constitucional e a que corresponde a alínea s) do n.º 1 do artigo 165.º após a 4.ª revisão constitucional) atribuía à Assembleia da República competência exclusiva, salvo autorização ao Governo, para legislar sobre “associações públicas”, consignou-se:
“Deste modo, ao legislar em semelhante matéria sem credencial parlamentar – no exercício da sua própria competência legislativa – o Governo está, nessa medida, a editar normação eivada do vício de inconstitucionalidade orgânica. Ora, nos três acórdãos que o Ministério Público invocou para fundamentar o seu pedido, o Tribunal Constitucional entendeu ser a Câmara dos Solicitadores uma organização profissional de direito público, tendo presente o disposto no Estatuto dos Solicitadores. Com efeito, resulta da leitura dos artigos 1.º, n.º 1, 2.º e 8.º deste diploma representar aquela Câmara todos aqueles que, no País, exercem a profissão de solicitador, ter por objectivo o estudo e a defesa dos interesses dos solicitadores nos aspectos profissional, moral e económico-social, e sobre eles exercer jurisdição disciplinar. A Câmara é, por conseguinte, uma organização profissional de direito público, na qual, por força do artigo 63.º, n.º 1, do Estatuto, têm de se inscrever todos os que pretendam exercer essa profissão. Não só assim a qualificaram os citados acórdãos – e, anteriormente, se pronunciou semelhantemente a Comissão Constitucional, no seu parecer n.º 1/78, publicado in Pareceres da Comissão Constitucional, 4.º vol., págs. 139 e seguintes –, como também desse modo a qualificam Freitas do Amaral (Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1987, pág. 373) e Jorge Miranda (As Associações Públicas no Direito Português, ed. Cognitio, 1985, pág. 20). Na verdade, e independentemente das dúvidas que a conceituação de associação pública encerra, não está apenas em causa uma base pessoal, caracterizante do associativismo privado, mas ainda a prossecução de interesses radicados a nível de comunidade, cabendo-lhes o desempenho de tarefas que, por natureza, lhe confere um status político que, em primeira mão, competiria ao poder organizatório do Estado. Com o reconhecimento constitucional que às associações públicas foi dado a partir da 1.ª Revisão Constitucional (n.º 3 do artigo 267.º), o Estado confere aos interessados certos poderes públicos, do que resulta a sua sujeição a um regime de direito público, com manifestações evidentes no acto de criação, na conformação organizatória e no controlo da legalidade dos actos. Quando, como é o caso, o mecanismo de administração mediata visa interesses onde predomina o substracto associativo, a associação assim criada reveste-se de estrutura corporativa (cf. Rogério Ehrhardt Soares, «A Ordem dos Advogados. Uma Corporação Pública», in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124.º, págs. 161 e segs. e as intervenções do Deputado Vital Moreira na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional constantes do Diário da Assembleia da República, II Legislatura, 2.ª Sessão Legislativa, n.º 44, Suplemento, de 27 de Janeiro de
1982, pág. 904-(5), e n.º 64, Suplemento, de 10 de Março de 1982, pág.
1232-(20)).” E após transcrever os artigos 49.º do Estatuto dos Solicitadores de 1976 e 204.º do Decreto-Lei n.º 376/77, prossegue o citado Acórdão n.º 347/92:
“Ou seja, os oficiais de justiça indicados no transcrito normativo – secretários judiciais e escrivães de direito na carreira judicial; secretários técnicos e técnicos de justiça principais, na do Ministério Público – desde que dotados de uma certa classificação mínima, a de Bom, passaram a poder inscrever-se na Câmara dos Solicitadores sem necessidade de licenciatura ou bacharelato em Direito ou de terem frequentado com aproveitamento o estágio organizado nos termos do artigo 38.° do Estatuto de 1976, como então exigiam as alíneas a) e c) do artigo 49.° desse texto. E, simultaneamente, alterou-se o regime estabelecido pela alínea b) do mesmo normativo, o que provocou a dispensa da exigência nele contida – desempenho das funções de escrivão de direito durante, pelo menos, dez anos. Considerando que a norma do artigo 204.° foi editada ao abrigo da competência legislativa do Governo, em âmbito material não reservado à Assembleia da República (CRP, artigo 201.°, n.° l, alínea a), redacção comum às 1.ª e 2.ª Revisões Constitucionais), o Tribunal, nos três acórdãos citados, interrogou-se sobre a conformidade constitucional (orgânica) da iniciativa, no domínio da fiscalização concreta, tendo concluído desfavoravelmente mediante a utilização de um elenco argumentativo comum assim sintetizável (para além da natureza da Câmara como associação pública, já assinalada): a) a norma do artigo 204.° veio dispor inovatoriamente sobre a inscrição de uma dada categoria de pessoas naquela Câmara; b) não obstante todos terem o direito de escolher livremente a profissão ou o género de trabalho – CRP, artigo 47.°, n.° 1 – tal não impede que o exercício de determinadas profissões possa ser regulamentado e, designadamente, sujeito a inscrição nas organizações associativas dos respectivos profissionais, de natureza pública, a quem o Estado atribui os poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o seu código deontológico e de exercer competências disciplinares. A esta luz, a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito, o que, no caso, não se verificou. Nada se tem a objectar à orientação assumida pelas decisões em análise. A inovação afigura-se indesmentível, ao menos na parte em que afecta a alínea b) do artigo 49.º do Estatuto, dispensado o requisito de tempo aí exigido para o exercício de funções como escrivão de direito. Por sua vez, a norma do artigo 47.°, n.° 1, da CRP, não obsta à regulamentação do exercício da profissão de solicitador e, nomeadamente, à obrigatoriedade de inscrição dos interessados na Câmara tida esta como associação profissional de natureza pública a que o Estado atribui poderes de controlar o acesso à profissão, de fixar o respectivo código deontológico e de exercer competências disciplinares, como, de resto, constitui jurisprudência deste Tribunal
(Acórdãos n.ºs 46/84 e 497/89, publicados no Diário da República, II Série, de
13 de Julho de 1984 e de 1 de Fevereiro de 1990, respectivamente), e os autores admitem (Rogério E. Soares, estudo citado, pág. 227 e seguintes; e Jorge Miranda, obra citada, pág. 32 e seguintes).” Na sequência desta declaração de inconstitucionalidade, foi repristinada a norma do artigo 49.º, alínea b), do Estatuto dos Solicitadores de 1976, tendo, porém, o Tribunal Constitucional, no uso da faculdade concedida pelo n.º 4 do artigo
282.º da CRP, limitado, por razões de segurança jurídica e de equidade, os efeitos da inconstitucionalidade, “por forma a ressalvar as situações ocorridas de inscrição na Câmara dos Solicitadores ao abrigo da norma agora declarada inconstitucional”. Pela Lei n.º 54/93, de 30 de Julho, ficou “o Governo autorizado, no âmbito da Lei Orgânica das Secretarias Judiciais e o Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376/87, de 11 de Dezembro, e alterado pelos Decretos-Leis n.º 167/89, de 23 de Maio, 270/90, de 3 de Setembro, e 378/91, de
9 de Outubro, a legislar sobre as matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício do poder disciplinar sobre os oficiais de justiça, ao regime disciplinar aplicável e ao direito de inscrição dos oficiais de justiça na Câmara dos Solicitadores” (artigo 1.º), tendo, quanto a este último ponto, sido definidos como sentido e extensão da autorização “proporcionar que os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principal tenham, cessado o exercício desses cargos, direito à inscrição na Câmara dos Solicitadores nos termos previstos no Estatuto destes” (artigo 2.º, alínea g)). No uso desta autorização foi emitido o Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro, que, para além de alterar a redacção de numerosos preceitos do Decreto-Lei n.º
376/87, de 11 de Dezembro, dispôs no seu artigo 7.º:
“Os secretários judiciais, os secretários técnicos, os escrivães de direito e os técnicos de justiça principais têm direito, após a cessação de funções, à inscrição na Câmara dos Solicitadores, nos termos previstos no respectivo Estatuto, sem prejuízo dos direitos já adquiridos por oficiais de justiça.” Pelo Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de Janeiro, foi aprovado novo Estatuto dos Solicitadores, que substituiu o de 1976 (Decreto-Lei n.º 483/76, de 19 de Junho). Quanto à inscrição na Câmara dos Solicitadores, resulta do artigo 60.º do Estatuto dos Solicitadores aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/99 serem requisitos necessários a cidadania portuguesa, a posse de licenciatura em Direito ou bacharelato em solicitadoria e a aprovação em estágio, tendo desaparecido o regime especial de que beneficiavam determinadas categorias de oficiais de justiça. No entanto, o artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 8/99 dispôs que: “A aplicação do presente Estatuto não prejudica a manutenção do regime de inscrição e de estágio na Câmara por um período de três anos”. Consequentemente, o subsequente artigo 3.º, alínea b), excepcionou à revogação do Decreto-Lei n.º 483/76 “as disposições relativas ao estágio e inscrição, que se mantêm em vigor nos termos do n.º 2 do artigo 2.º”. Foi ao abrigo destas disposições transitórias que oficiais de justiça mantiveram, até 9 de Janeiro de
2002 (o Decreto-Lei n.º 8/99, de 8 de Janeiro, entrou em vigor no dia imediato ao da sua publicação – cf. o seu artigo 4.º) o direito de requererem a inscrição na Câmara dos Solicitadores, nos termos até então vigentes. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 343/99, de 26 de Agosto, que aprovou o Estatuto dos Funcionários de Justiça (alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 175/2000, de 9 de Agosto, e 96/2002, de 12 de Abril), editado ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, veio, no seu artigo 2.º, alínea e), revogar expressamente o Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro. Para terminar esta enunciação, resta referir que, por último, o Decreto-Lei n.º
88/2003, de 26 de Abril, veio aprovar um novo Estatuto da Câmara dos Solicitadores, revogando o aprovado pelo Decreto-Lei n.º 8/99. Este novo Estatuto considera como requisitos para a inscrição na Câmara dos Solicitadores, além da aprovação em estágio, ser cidadão português ou da União Europeia e possuir licenciatura em cursos jurídicos ou bacharelato em solicitadoria ou, tratando-se de nacional de outro Estado da União Europeia, ser titular das habilitações académicas e profissionais requeridas legalmente para o exercício da profissão no respectivo Estado de origem. Volta a não estar previsto nenhum regime especial de inscrição para os oficiais de justiça e não se reproduzem as disposições transitórias do diploma de 1999, o que bem se compreende dado que, como se referiu, a sua operatividade cessou em 9 de Janeiro de 2002.”.
4. - Como se relatou, a sentença recorrida considerou organicamente inconstitucional a norma do artigo 2.º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 343/99, interpretada como abrangendo na revogação do Decreto-Lei n.º 364/93, por ela operada, também a norma do artigo 7.º deste diploma, já que se tratava de disposição atinente aos requisitos de inscrição numa associação pública, matéria que integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República definida no artigo 165.º, n.º 1, alínea s), da Constituição (versão da Lei Constitucional n.º 1/97).
Admitida esta interpretação da referida norma, o juízo de inconstitucionalidade surge como incontroverso, atenta a jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que culminou com o Acórdão n.º 347/92, e que se reitera.
Com efeito, a natureza de associação pública da Câmara dos Solicitadores foi reafirmado pelo Estatuto de 1999 (como também o foi pelo recente Estatuto de
2003), sendo indiscutível que as normas relativas aos requisitos de inscrição numa associação pública não podem deixar de ser consideradas como integrando o
âmbito da correspondente reserva relativa de competência legislativa do Parlamento. E, por outro lado, interpretada a alínea e) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 343/99 como revogando também a norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 364/93 – que conferira aos secretários judiciais, aos secretários técnicos, aos escrivães de direito e aos técnicos de justiça principais direito, após a cessação de funções, à inscrição na Câmara dos Solicitadores, nos termos previstos no respectivo Estatuto, sem prejuízo dos direitos já adquiridos por oficiais de justiça – é incontroverso que a mesma versaria inovatoriamente (na medida em que essa revogação faria desaparecer o requisito da “cessação de funções” para inscrição na Câmara dos Solicitadores, requisito cuja falta foi, aliás, decisiva para o sentido da decisão recorrida) sobre matéria atinente à definição dos requisitos de inscrição na referida associação pública. Assim, é forçoso concluir que o Governo legislou, sem credencial parlamentar, em matéria integrada na reserva legislativa da Assembleia da República, com a consequente inconstitucionalidade orgânica.
5. - É certo que o Ministério Público propõe uma outra interpretação, segundo a qual a revogação do Decreto-Lei n.º 364/93 pela alínea e) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 343/99 não abarcaria a norma do artigo 7.º daquele diploma, o que a isentaria do juízo de inconstitucionalidadade orgânica.
Porém, esta posição não recebeu acolhimento deste Tribunal em nenhum dos acórdãos incidindo sobre esta mesma questão, que têm entendido que “se não encontra na letra da lei apoio que permita proceder a uma interpretação conforme com a Constituição, nos termos propostos”.
É esta orientação jurisprudencial que ora se reitera.
6. - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea s), da CRP, a norma da alínea e) do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º
343/99, de 26 de Agosto, na parte em que revoga a norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 364/93, de 22 de Outubro; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 19 de Janeiro de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida