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Proc. nº 732/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente a Junta de Freguesia de A. e como recorrido o Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte Decisão Sumária:
1. O Ministério Público junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra instaurou contra a Junta de Freguesia de A. acção declarativa para dissolução de
órgão autárquico, nos termos das disposições dos artigos 9º, nº 1, alínea e), e
11º da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto. O fundamento da acção foi a falta de elaboração da proposta de orçamento. A Junta de Freguesia de A. contestou a acção, sustentando o seguinte:
27º Dispõe a alínea e) do artigo 9º da Lei 27/96, de 1 de Agosto, que “qualquer
órgão autárquico ... pode ser dissolvido quando não elabore ou não aprove o orçamento de forma a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo ocorrência de facto julgado justificativo”.
28º O órgão cuja dissolução se requer tomou posse no dia 8 de Janeiro de 2002 conforme acta de posse junta à P.I.
29º Logo, não podia a R. elaborar um orçamento para entrar em vigor numa data em que ela ainda não tinha assumido funções.
30º Tal obrigação impendia sobre a Junta de Freguesia que esteve em funções até ao dia 31 de Dezembro de 2001, que não a R.
31º Ora, não foi por culpa da R. eleita no dia 8 de Janeiro de 2002 que não foi elaborado o orçamento para entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 2002.
32º E, nem se diga que há coincidência das mesmas pessoas eleitas para o mesmo órgão no dia 8 e aquelas que o compunham antes do dia 8, pois o que está em causa é o
órgão autárquico e não os seus membros.
33º E se se pretende dissolver o órgão que devia elaborar o orçamento de modo a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de 2002, então a presente acção carece de fundamento porque esse órgão já não existe, deixou de exercer funções no dia 8 do mesmo mês.
34º Por último, sempre se dirá que no ano de 2002, por força do acto eleitoral ocorrido em Dezembro de 2001 o orçamento podia ser aprovado até ao fim de Abril de 2002.
35º O que afasta o pressuposto previsto na alínea e) do artigo 9º da referida lei, o qual impõe que a omissão seja relativa à não entrada em vigor no dia 1 de Janeiro.
36º Também, por esta razão, não se verifica o pressuposto invocado para a dissolução da R.
37º E, tendo em conta os factos alegados em 2º a 23º desta contestação, que aqui se reproduzem, faltando apenas 8 meses para o final do ano, não é aceitável, segundo os mais elementares princípios que regem o nosso sistema democrático, querer-se dissolver um órgão que acaba de ser eleito.
38º Dúvidas não há que se trata de manifesto abuso de direito a pretensão que se quer ver realizada com a presente demanda.
39º Mas, a ser esse o sentido da norma da alínea e) do artigo 9º da referida lei, não deixará a mesma de afrontar o princípio constitucional da autonomia do poder local constitucionalmente consagrado no artigo 6º da CRP,
40º E, ainda, será inconstitucional, por violação do artigo 242º nº 3 da CRP, na medida em que não está caracterizada como ilegalidade grave a omissão de não elaboração do orçamento para o ano de 2002, nem a mesma, pelos factos aqui alegados, é uma omissão grave.
41º Pois a falta de orçamento no ano de 2002 não impediu a cobrança de receitas próprias, que nao existem.
42º Como não impediu a realização de despesas de investimento, que não existem, nem estavam previstas existir. Nas respectivas alegações a Junta de Freguesia de A. afirmou o seguinte:
Por último, sempre se dirá o seguinte. Dispõe o artigo 242º nº 3 da CRP que “A dissolução de órgãos autárquicos só pode ter por causa acções ou omissões ilegais graves” . O legislador não classificou como ilegalidade grave a não elaboração ou aprovação do orçamento da Freguesia, ao contrário do que fez relativamente à consecução de fins alheios ao interesse público (alínea i) do art. 9º da Lei
27/96). Ou seja, face ao quadro constitucional para que fosse fundamento para dissolver a Junta de Freguesia era necessário que o legislador, na alínea e) do artigo 9º da Lei 27/96 dissesse que consistia em ilegalidade grave a não elaboração e aprovação do orçamento, mas não diz. Logo, se for fundamento de dissolução a não elaboração do orçamento, a norma do artigo 9º alínea e) é inconstitucional por violação do artigo 242 nº 3 da CRP já que não foi caracterizada como ilegalidade grave a ocorrência daquele facto, mas sim como mera ilegalidade.
* Finalmente, a verificação da ilegalidade e da ilegalidade grave compete aos
órgãos que tutelam administrativamente as autarquias locais, ou seja, ao Governo, nos termos do artigo 5º da Lei 27/96 e não aos Tribunais. A estes apenas está reservada a competência para proferirem as decisões sobre a dissolução do órgão, nos termos do artigo 11º da mesma Lei. Ou seja, é pressuposto necessário da acção de dissolução de órgão autárquico a verificação da ilegalidade ou da ilegalidade grave através da realização de acções inspectivas a levar a cabo pelo órgão que tutela as autarquias locais, o que não ocorre nos presentes autos. Logo, a norma do artigo 11º da Lei 27/96 ao admitir acção de dissolução de órgão autárquico com fundamento em ilegalidade não verificada através do exercício da tutela governamental viola o artigo 242 nº 1 e 2 da CRP e bem assim o princípio da autonomia das autarquias locais. O Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra proferiu a seguinte decisão:
O EMMPº intentou a presente acção para dissolução da Junta de Freguesia de A. do Município de S. Pedro do Sul com fundamento na não elaboração oportuna da proposta de orçamento e sua apresentação ao respectivo órgão deliberativo e ao abrigo do art. 9° al. e) da lei 27/96. Aquele órgão contestou dizendo que não podia haver lugar à elaboração de orçamento por falta de verbas a ainda que só tomou posse em 8.1.02 pelo que não
é responsável pela não elaboração do orçamento em 2001 e ainda que, tendo havido eleições gerais, o orçamento podia ser elaborado e aprovado até ao final de Abril de 2002, pelo que não tem aplicação a previsão daquele art. 9° al. e). Em alegações foram mantidos esses entendimentos e, atentos os documentos juntos aos autos, mostram-se provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1 - Em 8.1.02 foi eleita a Junta de Freguesia de A., do Município de S. Pedro de Sul, para o ano quadriénio de 2002-2005, composta pelos seguintes elementos:
- B. - presidente.
- C. - secretário.
- D. - tesoureiro, os quais se encontram no exercício de funções.
2 - A Junta de Freguesia referida não elaborou proposta de orçamento para o ano de 2002, nem até ao termo de 2001, nem até ao termo de Abril de 2002. Este o factualismo relevante e que se mostra provado, importando agora verificar se ocorre o fundamento de dissolução da mencionada Junta de Freguesia previsto no art. 9° al. e) da lei 27/96, ou seja, por não ser elaborado o orçamento de forma a entrar em vigor no dia 1 de Janeiro de cada ano, salvo ocorrência de facto julgado justificativo, sendo que se trata de um dos fundamentos taxativamente indicados no mesmo art. 9° que justificam a aplicação de uma sanção tão grave como é a dissolução em causa, pelo que apenas nos seus precisos termos podem esses fundamentos ser considerados, no caso a não elaboração do orçamento de forma a entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2002. E entendemos que ele não se verifica efectivamente no caso vertente. Com efeito, tem aplicação no caso a previsão do art. 88° n° 1 da lei 169/99, relativo à aprovação especial dos instrumentos previsionais, onde se prevê que a aprovação das opções do plano e da proposta de orçamento para o ano imediato ao da realização de eleições gerais tem lugar em sessão do órgão deliberativo que resultar do acto eleitoral, até ao fim do mês de Abril do referido ano. De modo que no caso vertente, tendo tido lugar em 16.12.01 as pertinentes eleições gerais, a proposta de orçamento só poderia ser apresentada em data posterior a 1.1.02, mais concretamente em data posterior a 8.1.02, data de instalação da Assembleia de Freguesia, pois que de uma situação especial se trata por virtude de tais eleições gerais, motivo por que a proposta de orçamento não poderia ser elaborada até 1.1.02. Assim sendo é manifesto que não se verifica o fundamento invocado para a dissolução em causa, pois que ele é apenas relativo à não elaboração da proposta de orçamento de modo a entrar em vigor em 1 de Janeiro da cada ano, nada mais. Na verdade, como se disse, os motivos de dissolução estão taxativamente previstos no referido art. 9°, pelo que só nos seus precisos termos podem ser considerados, com exclusão de qualquer analogia, de modo que a situação verificada no caso vertente não se mostra prevista entre esses motivos, pelo que a presente acção deve improceder.
Consequentemente, a acção foi julgada improcedente e a ré foi absolvida do pedido.
2. O Ministério Público interpôs recurso da decisão absolutória para o Supremo Tribunal Administrativo (cf. fls. 108 e alegações de fls. 109 a 113). A Junta de Freguesia de A. contra-alegou, não suscitando qualquer questão de constitucionalidade normativa (cf. fls. 118 e 119). A Junta de Freguesia de A. interpôs, por seu turno, recurso subordinado (a fls.
120 com alegações a fls. 121 e ss.), recurso que não foi admitido por despacho de 29 de Maio de 2003, com fundamento no artigo 682º, nº 1, do Código de Processo Civil (cf. fls. 127). A Junta de Freguesia de A. reclamou do despacho de 29 de Maio de 2003 (fls.
130). O Relator manteve a decisão de não admissão do recurso subordinado (fls.
131) e o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu a reclamação, por decisão de 15 de Julho de 2003 (fls. 138 a 140). O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 30 de Julho de 2003, concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público (cf. fls. 143 e ss.). A Junta de Freguesia de A. interpôs recurso do despacho que indeferiu a reclamação, não tendo sido proferida decisão sobre o respectivo requerimento
(cf. fls. 153 e ss.). A Junta de Freguesia de A. requereu concomitantemente a aclaração do acórdão de
30 de Julho de 2003, aclaração que foi indeferida por acórdão de 10 de Setembro de 2003.
3. A Junta de Freguesia de A. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 30 de Julho de 2003 nos seguintes termos:
A JUNTA DE FREGUESIA DE A., não se conformando com o Douto Acórdão proferido nos autos que julgando procedente o recurso interposto pelo MP e revogando a Douta Sentença proferida pelo TAC de Coimbra, decretou a dissolução da recorrida, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos seguintes:
1º O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei 28/82, na redacção dada pela Lei 85/89 - recurso de decisão que aplicou norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo.
2º Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea e) do artigo 9º da Lei 27/96 de 1 de Agosto.
3º Esta norma viola o artigo 242º nº 3 da CRP, na interpretação que lhe foi dada e aplicada pelo STA.
4º A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos, em primeira instância, na contestação que foi apresentada pela ora recorrente.
5º Pretende-se, ainda, ver apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 110º da LPTA - Lei de processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais e a norma do artigo 682º do CPC na interpretação e aplicação que lhe foi dada pelo STA.
6º Estas normas violam o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20º da CRP.
7º A questão da inconstitucionalidade destas duas normas apenas é suscitada no presente recurso já que foi em última instância (no STA) que o Tribunal fez a sua aplicação e interpretação ao dar provimento ao recurso do MP e não ter ordenado a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância para conhecer de toda a matéria impugnada na contestação.
8º Pretende-se, também, ver apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea e) do artigo 9º da Lei 27/96, de 1 de Agosto com o confronto e aplicação da norma excepcional do artigo 88º nº 1 da Lei 169/99, de 18 de Setembro.
9º Estas normas, na interpretação extensiva e analógica dada pelo STA, violam o artigo 18º e 239º da CRP.
10º A questão da inconstitucionalidade destas normas apenas é suscitada no presente recurso já que foi em última instância (no STA) que o Tribunal fez a sua interpretação e aplicação ao dar provimento ao recurso interposto pelo MP.
11º Por último pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade de todas as normas do artigo 5º e do artigo 11º da Lei 27/96, de 1 de Agosto.
12º Estas normas violam o artigo 242º da CRP na interpretação dada pelos Tribunais de primeira e segunda instância.
13º A questão da inconstitucionalidade destas normas foi suscitada na contestação da ora recorrente apresentada em primeira instância.
14º O presente recurso é de agravo, com efeito suspensivo.
Cumpre apreciar.
4. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995). Resulta ainda do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que a questão de constitucionalidade normativa deve ser suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida. No presente processo, esse tribunal é o Supremo Tribunal Administrativo.
5. A recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional a norma da alínea e) do artigo 9º da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto (artigos 2º e 3º do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade) e a norma desse mesmo artigo “com o confronto e aplicação da norma excepcional do artigo
88º, nº 1, da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro (artigos 8º a 10º do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade). A recorrente afirma que a primeira questão foi suscitada na contestação apresentada no âmbito da acção instaurada pelo Ministério Público e que a segunda questão só foi suscitada no presente recurso de constitucionalidade, por falta de oportunidade processual para o fazer anteriormente. Quanto à primeira questão, a recorrente tinha o ónus de suscitar a questão nas contra-alegações apresentadas no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, uma vez que, como se referiu, nos termos do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, a questão de constitucionalidade normativa deve ser suscitada perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
É irrelevante, neste contexto, que a questão tenha sido suscitada nas alegações do recurso subordinado, uma vez que tal recurso não foi admitido (de resto, a própria recorrente não atribui qualquer relevância a essa suscitação). Quanto à segunda questão, também impendia sobre a recorrente a suscitação da questão de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Administrativo (nas contra-alegações apresentadas), já que a aplicação do artigo 88º, nº 1, da Lei nº 169/99, de 18 de Agosto, em articulação com o artigo 9º da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, foi expressamente abordada pelo Ministério Público nas alegações de recurso apresentadas (cf. fls. 111). Não foi, desse modo, proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo qualquer decisão objectivamente imprevisível ou inesperada. Não se verifica, portanto, quanto às questões enunciadas o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
6. A recorrente pretende também submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as normas dos artigos 110º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, e 682º do Código de Processo Civil insurgindo-se contra a circunstância de o Supremo Tribunal Administrativo “não ter ordenado a baixa dos autos ao tribunal de primeira instância para conhecer de toda a matéria impugnada na contestação” (artigos 5º a 7º do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade). A recorrente afirma igualmente que apenas suscitou tal questão no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, por falta de oportunidade processual. Mais uma vez, porém, não assiste razão à recorrente. Com efeito, a pretensão da recorrente (o conhecimento de toda a matéria da contestação) constava já dos fundamentos do recurso subordinado não admitido. Uma vez que a decisão da primeira instância não terá alegadamente apreciado todas as questões suscitadas pela então ré na contestação e dado ter sido interposto recurso pelo Ministério Público, dispunha a recorrente de todos os elementos necessários para suscitar, nas contra-alegações apresentadas no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, as questões de constitucionalidade que considerasse pertinentes relativas ao não conhecimento dos argumentos apresentados na contestação (argumentos que, na lógica da estratégia processual da recorrente, contrariavam a pretensão do Ministério Público). Nessa medida, não foi proferida qualquer decisão objectivamente imprevisível, pelo que não se verifica o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
7. Por último, a recorrente pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional as normas dos artigos 5º e 11º da Lei nº 27/96, de 1 de Agosto, afirmando que suscitou tal questão na contestação. Mais uma vez, sobre a recorrente impendia o ónus de suscitação da questão nas contra-alegações apresentadas no âmbito do recurso interposto pelo Ministério Público, já que a procedência da pretensão deduzida pelo Ministério Público no recurso implicava a aplicação da dimensão normativa considerada inconstitucional pela recorrente (a recorrente insurgia-se, a fls. 93 e 94, contra a admissão da acção de dissolução do órgão autárquico com fundamento em ilegalidade não verificada através do exercício de tutela governamental, o que estava naturalmente também em questão no recurso interposto pelo Ministério Público). Não se verifica, portanto, também quanto a esta questão o pressuposto processual do recurso interposto, consistente na suscitação durante o processo da questão de constitucionalidade normativa.
8. Em face do exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do presente recurso.
A recorrente vem agora reclamar para a Conferência nos seguintes termos:
A JUNTA DE FREGUESIA DE A., não se conformando com a Douta Decisão Sumária que decidiu não tomar conhecimento do recurso, vem dela interpor RECLAMAÇÃO para a secção competente do Tribunal, nos termos seguintes:
Da Nulidade
1.º Constata-se da Douta Decisão Sumária que o STA não se pronunciou sobre o recurso interposto pela Junta de Freguesia de A. contra o indeferimento da reclamação que não admitiu o recurso subordinado interposto oportunamente e onde eram invocadas as inconstitucionalidades das normas que agora também vem postas a apreciação do Tribunal Constitucional.
2.º Tal recurso subordinado teve em vista o não abandono da questão da inconstitucionalidade arguida em 1ª instância.
3.º Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, verifica-se omissão de pronúncia pelo STA e que não pode ser suprida pelo TC, o que conduz à nulidade do processado.
4.º Assim, a Douta Decisão Sumária devia ordenar que os Autos baixassem ao STA para conhecer do recurso interposto.
5.º E o conhecimento deste recurso é essencial porquanto se trata de saber se devia ou não o STA conhecer do recurso subordinado na medida em que apenas foi interposto com a finalidade dele se conhecer para a hipótese, que se verificou, da procedência do recurso principal.
6.º E nesse recurso subordinado a Junta de Freguesia de A. manteve a questão da inconstitucionalidade das normas que agora vem questionar junto deste Tribunal.
Sem prescindir,
7.º A Douta Decisão Sumária entendeu que a Junta de Freguesia de A. abandonou a questão da inconstitucionalidade já que não a defendeu e manteve junto do STA, mas tão só na primeira instância.
8.º Acrescenta, ainda, que a Junta de Freguesia devia manter a questão da inconstitucionalidade nas contra alegações.
9.º Salvo o devido respeito, que é muito, discordamos deste entendimento.
10.º Em primeiro lugar não é obrigatório que a parte vencedora em primeira instância e em sede de recurso interposto pela parte vencida, apresente contra alegações e formule conclusões.
11.º Depois, se a parte vencedora pretender que o Tribunal a quem conheça de questões que o Tribunal de Primeira Instância não conheceu, é através do recurso subordinado que pode reagir para que delas conheça em sede de recurso e não em sede de contra alegações.
12.º E a questão da inconstitucionalidade da norma é uma dessas questões.
13.º Por outro lado, impor à parte vencedora em primeira instância que mantenha a questão da inconstitucionalidade em sede de contra alegações quando nisso não tem qualquer interesse porque foi julgado procedente o recurso, é impor que pratique actos desnecessários junto do Tribunal ad quem quando este, independentemente da sua arguição, não pode aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição.
14.º A seguir o Douto entendimento sufragado na Decisão Sumária é fazer uma interpretação do artigo 204.º da CRP segundo o qual os Tribunais só não podem aplicar normas que infrinjam a constituição quando seja invocado pelas partes, junto do Tribunal concreto que decide.
15.º Se assim for entendido pelo Tribunal Constitucional então a norma do artigo 70.º n.º 1 alínea b) da LOTC que dispõe “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” é inconstitucional por violar o artigo 204.º da CRP.
16.º Como quer que seja a Junta de Freguesia de A., que obteve vencimento em primeira instância, onde alegou a inconstitucionalidade das normas, não tem o ónus de alegar e formular conclusões no recurso interposto pelo Ministério Público.
17.º Não se pode dizer que o STA foi apanhado de surpresa com a questão da inconstitucionalidade, ora arguida, na medida em que o recurso que lhe foi dirigido pelo Ministério Público não foi em separado e dos autos - contestação da Junta de Freguesia de A. - consta a arguição da inconstitucionalidade das normas que fez aplicação.
18.º E também não se pode dizer que há surpresa com a mesma questão de inconstitucionalidade na medida em que no recurso subordinado e tempestivamente interposto para o STA foi mantida tal questão.
O Ministério Público pronunciou-se do seguinte modo:
1° A presente reclamação é manifestamente improcedente, face à reiterada jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que efectivamente vem impondo à parte que pretenda interpor recurso, fundado na alínea b) do n° 1 do artigo 70°, o ónus de, na contra-alegação que apresente perante o tribunal “a quo”, suscitar subsidiariamente a questão de constitucionalidade que havia colocado à primeira instância.
2° E em nada abalando a argumentação ora expendida tal interpretação jurisprudencial, aliás presentemente confirmada pelo próprio teor do artigo 72°, n° 2, da Lei do Tribunal Constitucional, ao impor à parte recorrente o ónus de suscitar a questão de constitucionalidade de modo procedimentalmente adequado, perante o Tribunal que haja proferido a decisão recorrida.
3° Na verdade, nem tal suscitação, a título subsidiário, se configura obviamente como “acto inútil” nem a imposição de tal ónus viola o artigo 204° da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre apreciar.
2. A reclamante sustenta que na Decisão Sumária se devia ter determinado a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Administrativo para conhecer do recurso interposto da decisão que indeferiu a reclamação da não admissão do recurso subordinado. Contudo, tal recurso não é interposto da decisão recorrida na presente instância de fiscalização concreta da constitucionalidade. A decisão ora recorrida não admite recurso ordinário. Nessa medida, nada havia a ordenar quanto a tal questão. Sobre a mesma pronunciar-se-á o tribunal a quo, nos termos que tiver por convenientes, quando os autos a esse tribunal forem remetidos.
3. A recorrente sustenta não ser “obrigatório que a parte vencedora em primeira instância ou em sede recurso interposto pela parte vencida, apresente contra-alegações e formule conclusões”. Na Decisão Sumária impugnada não se afirmou, porém, ser obrigatória tal conduta processual. Com efeito, o que se sublinhou foi que a suscitação da questão de constitucionalidade consubstancia um ónus, uma vez que o tribunal de recurso poderá decidir o recurso interposto pela “parte vencida” em sentido desfavorável
à “parte vencedora”. Se a recorrente pretendia a ponderação dos argumentos de constitucionalidade tinha, pois, no seu próprio interesse, de suscitar a questão de constitucionalidade normativa que considerasse pertinente. Ao contrário do que sustenta a reclamante, tal ónus não implica a prática de qualquer acto inútil, pois o recurso interposto pelo Ministério Público confronta a então recorrida com uma pretensão que, podendo ser acolhida pelo tribunal de recurso, é contrária à pretensão da ora reclamante (não obstante ter sido proferida uma decisão favorável a esta em primeira instância). Impendia, portanto, sobre a reclamante o ónus de suscitação da questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada (e a suscitação da questão no recurso subordinado não admitido – à qual a reclamante não atribui relevância no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, como se sublinhou na Decisão Sumária reclamada – apenas poderia fundamentar um novo recurso de constitucionalidade interposto da decisão que decidisse tal recurso). Não tendo cumprido esse ónus o recurso não pode ser admitido. A reclamante sustenta ainda a inconstitucionalidade do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por violação do artigo 204º da Constituição, uma vez que de acordo com entendimento acolhido, os tribunais só poderiam não aplicar normas inconstitucionais quando a questão tivesse sido suscitada pelas partes. Em primeiro lugar, sublinhar-se-á que a norma que fundamenta o entendimento acolhido é a do artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Em segundo lugar, em momento algum é sustentado na Decisão Sumária que os tribunais só podem recusar a aplicação de uma norma com fundamento em inconstitucionalidade quando a questão seja suscitada pelas partes. De facto, o que se entendeu (e resulta da lei) é que o recurso da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional tem por pressuposto a suscitação da questão de constitucionalidade normativa durante o processo. Nada impede, porém, que qualquer tribunal, se o seu entendimento for o de que uma norma é inconstitucional ou a inconstitucionalidade de uma norma já tiver sido determinada pelo próprio Tribunal Constitucional, deva recusar a aplicação de tal norma com fundamento em inconstitucionalidade (o que não aconteceu nos presentes autos), tendo então lugar o recurso da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. O Supremo Tribunal Administrativo, na decisão recorrida, não apreciou, portanto, a questão de constitucionalidade porque a reclamante não a suscitou nas contra-alegações, o que não quer significar que não pudesse ter ocorrido oficiosamente uma recusa de aplicação de norma por inconstitucionalidade.
4. Improcede, portanto, a presente reclamação.
5. Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2004
Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos