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Processo n.º 209/12
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 354/2012:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, B. e Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, E.P.E., foi interposto recurso, em 27 de fevereiro de 2012 (fls. 1046 a 1050), ao abrigo do artigo 70º (sic, fls. 1046) da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido pela 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em 15 de dezembro de 2011 (fls. 973 a 1023), posteriormente complementado pelo acórdão proferido, pelo mesmo Tribunal e Secção, em 09 de fevereiro de 2012 (fls. 1038 a 1040), que indeferiu pedido de aclaração.
2. Perante a ausência de indicação dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 75º-A da LTC, a Relatora proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento, em 24 de abril de 2012 (fls. 1057 e 1057-verso), nos termos do n.º 6 do mesmo preceito legal, tendo o recorrente respondido a tal convite, através de requerimento entregue em 07 de maio de 2012. Segundo este requerimento, o recorrente interpõe recurso ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pretendendo que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída do artigo 127º do Código de Processo Penal (CPP), “quando interpretado no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova, face à existência de duas perícias científicas contraditórias, uma imputando a causa da morte à atuação do arguido e outra imputando a causa da morte a complicações pós consolidação do dano, abrange a discricionariedade do julgador de optar pela mais desfavorável ao arguido com clara violação do princípio in dubio pró reo constitucionalmente consagrado no artigo 32º - nº 1 da C.R.P.” (fls. 1059).
Posto isto, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
3. O recurso foi admitido por despacho do Relator junto do tribunal “a quo”, proferido, em 08 de março de 2012 (fls. 1051). Porém, por força do n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que deve começar-se por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
4. Deve frisar-se que o Tribunal Constitucional apenas pode conhecer de normas ou interpretações normativas que tenham sido efetivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, conforme expressamente determina o artigo 79º-C da LTC. Ora, da análise da decisão recorrida resulta, sem qualquer margem para dúvidas que aquela nunca interpretou o artigo 127º do CPP no sentido que constitui objeto do presente recurso. Pelo contrário, a decisão recorrida teve em conta o teor do parecer científico originário, tendo-se limitado a considerar que o mesmo foi posteriormente confirmado pelo relatório de autópsia também junto aos autos. Assim, veja-se:
“Os relatórios clínicos e de autópsia não são antagónicos em termos de excluírem o nexo causal entre a agressão e o resultado, bem pelo contrário, compatibilizam-se entre si e afirmam-no quando nos primeiros se diz que resultou perigo para a vida da agressão e depois causa adequada da morte, o que só significa que a morte não sobreveio de imediato da agressão, mas esta terminaria por suprimir necessária, adequadamente e posteriormente a vida humana, supressão que fica a dever-se-lhe.” (fls. 1003)
Ao contrário do que defendera o ora recorrente – e a Procuradora-Geral Adjunta a exercer funções no tribunal recorrido –, a decisão recorrida nunca considerou ter havido qualquer contradição entre o relatório pericial elaborado após o ferimento infligido no ofendido e o relatório de autópsia elaborado após a sua morte. Assim sendo, a decisão recorrida também não aplicou a norma extraída do artigo 127º do CPP no sentido de que o referido relatório pericial poderia ser excluído, enquanto elemento de prova absolutório do ora recorrente.
Em suma, a decisão recorrida nunca aplicou a interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente, pelo que mais não resta do que rejeitar o conhecimento do objeto do presente recurso, conforme determinado pelo artigo 79º-C da LTC.
5. Além disso, tendo sido interposto recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, para que o mesmo pudesse ser conhecido, exigir-se-ia que o recorrente tivesse suscitado a questão de inconstitucionalidade normativa perante o tribunal recorrido, de modo a que este a pudesse ter apreciado (artigo 72º, n.º 2, da LTC). Sucede, porém, que o recorrente – ao contrário do que afirma no requerimento aperfeiçoado – nunca suscitou a inconstitucionalidade da norma extraída do artigo 127º do CPP, nos precisos termos em que agora concebeu o objeto do recurso. Pelo contrário, nas suas alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente limitou-se a alegar o seguinte:
“Os Senhores Juízes Desembargadores puseram em crise não só um relatório técnico-científico dos peritos médicos sem a correspondente contraprova que o Ministério Público e a Assistente poderiam obter em caso de desacordo, o que não fizeram, mas também a livre apreciação da prova consignada no artigo 127º do Código de Processo Penal, esta sim insuscetível de ser questionada por outra «livre apreciação de prova» de um Tribunal Superior sob pena de descaracterização do sentido e alcance do normativo processual penal a que atrás se alude.” (fls. 94)
“De facto, o douto acórdão limita-se a dizer que a documentação clínica, relatórios médicos, relatórios de exame de sanidade e autópsia apontam no sentido contrário do que foi entendido pelos médicos que verteram em tais documentos a sua opinião técnica.
Decisão esta respeitável mas que contraria a opinião dos técnicos e o entendimento dos julgadores da 1ª instância a quem cabe conjugar toda a prova produzida, apreciá-la criticamente, e no exercício do poder-dever da sua livre apreciação (artigo 127º do Código de Processo Penal).” (fls. 927)
“Assim, não tendo concordado com tal opinião técnica, os Excelentíssimos Juízes Desembargadores fizeram decair a avaliação jurídico-penal que o Tribunal de 1ª instância retirou das respetivas conclusões, questionando o princípio da livre apreciação da prova e, no entender do recorrente, com violação do normativo legal processual penal ínsito no artigo 127º do C.P.P.” (fls. 928)
Da análise exaustiva destas alegações de recurso, conclui-se que o recorrente nunca invocou a inconstitucionalidade normativa da interpretação (na sua perspetiva) adotada pelo Tribunal da Relação de Lisboa ou, mais tarde, pelo Supremo Tribunal de Justiça. Pelo contrário, o recorrente limitou-se a afirmar que a interpretação normativa adotada pelos referidos tribunais seria contrária ao próprio artigo 127º do CPP. Ou seja, invocou a ilegalidade das decisões jurisdicionais proferidas, mas não a sua inconstitucionalidade. Assim sendo, torna-se evidente que o recorrente nunca suscitou, de modo processualmente adequado, a inconstitucionalidade normativa que pretende ver agora apreciada, pelo que, por força do artigo 72º, n.º 2, da LTC, sempre se imporia o não conhecimento do objeto do presente recurso.
III – DECISÃO
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro, decide-se não conhecer do objeto do recurso interposto.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em em 7 UC´s para o recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.»
2. Inconformado com a decisão proferida, o recorrente veio apresentar um requerimento através do qual, formalmente, manifesta dúvidas sobre o teor da decisão sumária proferida, mas que, na sua essencial substância, corresponde a uma manifestação de discordância face ao decidido:
«1 – Em alto entendimento de Vossa Excelência e ao contrário do que defendeu o arguido secundado pela Excelentíssima Procuradora Geral Adjunta do Supremo Tribunal de Justiça, a decisão recorrida nunca considerou ter havido qualquer contradição entre o relatório pericial elaborado após o ferimento infligido no ofendido e o relatório de autópsia elaborado após a sua morte.
Assim sendo, a decisão recorrida também não aplicou a norma extraída do artigo 127º do C.P.P. no sentido de que o referido relatório pericial poderia ser excluído, enquanto elemento de prova absolutório do ora recorrente.
Em suma, a decisão recorrida nunca aplicou a interpretação reputada de inconstitucional pelo recorrente, pelo que mais não resta do que rejeitar o conhecimento do recurso apresentado pelo arguido, conforme determina o artigo 79º-C da LTC.
2 – Face ao referido no ponto 1, e salvo melhor opinião, não ficou cabalmente esclarecido para o entendimento do arguido, se o princípio da livre apreciação da prova ínsito no artigo 1 27 do Código de Processo Penal, admite contemplar ou subscrever, simultaneamente, duas situações que vieram ao conhecimento do julgador através dos peritos médicos:
- um relatório do exame pericial efetuado no Instituto de Medicina Legal que atesta que as lesões traumáticas resultantes da ofensa, por si só, consubstanciaram um evento do qual resultou, em concreto, perigo para a vida do ofendido;
- um relatório de autópsia que atesta que a morte da vítima foi devida a pneumonia secundária como complicação de encefalopatia anóxica por traumatismo do pescoço com arma branca.
De notar que as intercorrências infeciosas (respiratórias e urinárias) tiveram lugar entre o período compreendido entre 2 de fevereiro e 20 de agosto de 2009 e a consolidação médico-legal das lesões é de 2 de fevereiro de 2009.
De todo o modo, as perspetivas para o infeliz C. previsivelmente seriam as do estado semi vegetativo, até ao momento em que ocorresse uma das complicações que pusessem fim à sua grave debilitação.
A verdade é que uma das opiniões da ciência médica subscreve o entendimento de que a agressão constitui perigo para a vida da vítima mas não, em concreto, a sua morte.
Se os médicos tiveram dúvidas não se vê, salvo o devido respeito pelos Tribunais Superiores, como pode um julgador optar por uma delas e logo aquela que desfavorece o réu ao arrepio dos princípios gerais do direito penal.
É que o princípio da livre apreciação da prova não é livre ao ponto de decidir para além de toda a dúvida razoável, in casu, a dúvida da ciência médica.»
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se resumem:
«1º
Desde logo, o requerente só aparentemente apresenta um pedido de aclaração.
Na realidade, subjacente à sua argumentação, está a contestação do bem fundado da Decisão Sumária 354/12, de 11 de julho (cfr. fls. 1062-1066 dos autos), o que leva a que o seu requerimento deva, antes, ser entendido como uma reclamação para a conferência (cfr. a este propósito, designadamente, os Acórdãos 716/04, 222/09, 219/10 e 390/10 deste Tribunal Constitucional).
(…)
6º
Ora, o Réu persiste em esgrimir a ideia, que nem por isso adquire maior consistência, de haver lugar a uma contradição entre “um relatório do exame pericial efetuado no Instituto de Medicina Legal” e “um relatório do exame pericial efetuado no Instituto de Medicina Legal”.
7º
Ora, a Ilustre Conselheira Relatora não deixou de sublinhar, sem margem para quaisquer dúvidas, que não foi esse o entendimento do Acórdão recorrido, de 15 de dezembro de 2011, do Supremo Tribunal de Justiça, tendo, inclusive, citado um passo deste, particularmente significativo (cfr. supra nº 3 do presente Parecer) (destaques do signatário):
“Os relatórios clínicos e de autópsia não são antagónicos em termos de excluírem o nexo causal entre a agressão e o resultado, bem pelo contrário, compatibilizam-se entre si e afirmam-no quando nos primeiros se diz que resultou perigo para a vida da agressão e depois causa adequada da morte, o que só significa que a morte não sobreveio de imediato da agressão, mas esta terminaria por suprimir necessária, adequadamente e posteriormente a vida humana, supressão que fica a dever-se-lhe.” (fls. 1003)”
8º
E o Supremo Tribunal de Justiça não deixou, posteriormente, de confirmar esta sua posição, ao apreciar, em novo Acórdão, agora de 9 de fevereiro de 2012 (cfr. fls. 1038-1040 dos autos), o pedido, formulado pelo arguido, de aclaração do Acórdão de 15 de dezembro de 2011.
(…)
9º
O arguido, no seu alegado pedido de aclaração, acaba, assim, por não rebater a dupla argumentação constante da Decisão Sumária 354/12, ora reclamada, limitando-se a repetir, fundamentalmente, argumentos já anteriormente apresentados nos presentes autos, mas que não invalidam os fundamentos da mesma Decisão.
(…)
11º
Por todo o exposto, crê-se que o pedido de aclaração, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 354/12, que determinou a sua apresentação.»
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Apesar de expressamente formular um pedido de aclaração, resulta evidente do requerimento apresentado que o recorrente não pretende qualquer esclarecimento sobre eventuais dúvidas suscitadas pela decisão sumária proferida, cuja evidência e fácil compreensibilidade é inegável. Bem pelo contrário, o requerimento deduzido insiste em argumentos já antes esgrimidos – muitas vezes, aliás, relacionados com matéria de facto cujo conhecimento não cabe a este Tribunal –, com vista a impugnar (materialmente) o sentido e a fundamentação da referida decisão.
Por conseguinte, não havendo nada a esclarecer, restaria apenas indeferir o referido pedido. Porém, em homenagem ao princípio da celeridade processual – ao qual este Tribunal se encontra constitucionalmente vinculado –, justifica-se o aproveitamento do referido requerimento, mediante a sua convolação processual em reclamação para a conferência.
5. Quanto à questão substantiva que se extrai das objeções manifestadas pelo recorrente quanto à decisão sumária, importa apenas reiterar que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça não aplicou, de modo algum, o artigo 127º do CPP no sentido normativo que o recorrente pretendeu dele extrair. Ao contrário do que este sustenta, a referida decisão nunca entendeu ter havido qualquer contradição entre as perícias médicas, não cabendo a este Tribunal apreciar se o fez bem ou mal. Ora, o recorrente aparenta pretender que o Tribunal Constitucional revogue a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto a essa apreciação, quando a Constituição e a lei não lhe atribui esse poder. Pelo contrário, este Tribunal apenas pode apreciar constitucionalidade da interpretação normativa efetivamente aplicada pelos tribunais recorridos
Por conseguinte, face à divergência entre a interpretação normativa reputada inconstitucional e aquela interpretação que o recorrente elegeu como objeto do presente recurso, mais não se impunha do que concluir pela impossibilidade de conhecimento do objeto, como fez a decisão reclamada.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 24 de outubro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro.