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Proc. n.º 832/03 TC - 1ª Secção Rel.: Consº Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
1 - Nos autos de recurso supra identificados em que é recorrente A. foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 - A., com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 699 e segs., dizendo no respectivo requerimento:
'... não se conformando com o douto Acórdão, na parte em que decidiu pela improcedência da arguida nulidade da prova obtida por fotogramas, do mesmo interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz nos seguintes termos:
- O recurso é interposto ao abrigo do art. 70º n.º 1 alínea b) e f) da Lei 28/82, de 15 de Setembro.
- A recorrente interpôs recurso do Acórdão da relação que atribuiu erroneamente eficácia probatória a um conjunto de fotogramas juntos aos autos.
- O douto Acórdão do STJ negou-se a reconhecer a existência de tal nulidade, entendendo não haver violação de qualquer preceito legal ou constitucional.
- Contudo, existe clara violação do artigo 6º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro e dos artigos 125º e 126º do Código de Processo penal.
- A não aplicação de tais preceitos legais à prova obtida viola o disposto no art. 30º n.ºs 1 e 8 e artº 204º da Constituição da República Portuguesa.
...........................................................................................................'
O recurso foi admitido no STJ, o que, nos termos do artigo 76º n.º 3 da LTC, não vincula este Tribunal.
Cumpre decidir.
2 - Resulta dos autos, com interesse para a decisão do presente recurso o seguinte:
Por acórdão da Relação do Porto, foi confirmada a decisão de 1ª instância que condenou a recorrente, pela prática em co-autoria do crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo artigo 21º n.º 1 do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 5 anos de prisão.
No mesmo acórdão foi conhecida a questão, suscitada pela recorrente, da nulidade da prova obtida através de elementos fotográficos colhidos durante uma busca, ordenada por despacho judicial, no domicílio da recorrente, elementos esses que foram obtidos sem autorização da arguida.
No acórdão decidiu-se que se não verificava violação do disposto nos artigos 125º e 126º n.º 3 do Código de Processo Penal.
A arguida interpôs recurso deste acórdão para o STJ.
Na motivação do recurso, disse a recorrente na parte que interessa:
'............................................................................................................
2 - Ora, o tratamento da questão dos fotogramas, salvo melhor opinião, sofreu um entorse metodológico. Vejamos.
3 - Em primeiro lugar, não há dúvidas que a busca domiciliária foi autorizada pelo Juiz.
4 - Porém, ainda há (se possível) menos dúvidas que - uma vez mais e lamentavelmente, o que é regra - o Juiz não teve presente na busca ... nem o MP.
5 - Apenas polícias, alguns dos quais confessaram em julgamento actos que indiciam fortemente o cometimento pelos próprios, de crime público.
6 - Por outro lado, nas declarações da arguida A., a mesma afirmou perante o tribunal que não autorizou as referidas fotografias. Está gravado!
7 - De qualquer forma, o acórdão mistura o todo, a saber: uma coisa
é uma busca domiciliária autorizada, a qual tem um regime próprio, outra bem diferente é a inclusão de um conjunto de fotogramas nos autos, o qual tem outro regime bem diferente e, dizemos, bem mais restritivo. Em todo o caso diferente
(artº 6º da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro).
8 - Diz o povo e bem: Não confundir 'alhos com bugalhos'! Ou seja: não confundir o regime e o modo de obtenção de fotografias, seja durante uma busca domiciliária ou de outra forma, com o regime restrito da sua obtenção e destinado à sua inclusão nos autos de um processo, o qual até pode ser o mesmo.
9 - É que para a busca domiciliária, basta a autorização do Juiz, embora a lei aconselhe molemente e também a sua presença, (o que quase nunca acontece).
10 - Mas... para as fotografias, permita-se-nos a expressão, outro galo canta!
11 - É preciso autorização do Juiz, acompanhamento, escolha, decisão de inclusão e do quê, destruição do restante. Em síntese: é preciso muito mais! No fundo é o regime das 'escutas telefónicas' devidamente adaptado. É o que ordena a lei. E tal norma processual tem carácter substantivo devendo ser aplicada aos arguidos sempre no sentido que lhes for mais favorável, mesmo retroactivamente.
12 - O que não foi feito. E parece-nos que mal.
13 - Tanto mais que a dinâmica apresentacional dos referidos fotogramas dentro da referida busca domiciliária pretendeu algo: e ... esse algo
é tudo menos em favor dos arguidos. Porque consistiu numa apresentação forjadora de um quadro acusatório que nem sequer condiz com as palavras da arguida.
14 - Acresce que é falso que a defesa tenha aludido a outro diploma legal: a defesa explicou que houve lapso, sim, do tribunal e da verdade contida na acta, tanto mais que, com toda a evidência, o tribunal ' a quo' demonstrou inequivocamente não conhecer na altura a existência mesma da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, que a defesa conhecia desde o 1º dia da sua publicação e, como disse, utilizou noutros processos, como pode provar, nomeadamente nas Varas Criminais do Porto.
15 - É falso pois que tenha sido a defesa a Ter cometido o lapso como afirma o acórdão: o lapso cometeu-o o tribunal 'a quo': o seu a seu dono ! por favor. É uma questão de ética intelectual, assumir os erros e os lapsos e não fugir a eles, baseando-se em formalismos juridistas, só porque no acto não foi arguida a falsidade de uma acta que ainda não existia no papel, em todo o caso à disposição da defesa.
16 - Do todo resulta, a nossos modestos olhos que os referidos fotogramas são nulos.
.............................................................................................................'
E nas respectivas conclusões escreveu:
'Por tudo o que ficou dito o douto Acórdão recorrido enferma dos padecimentos já enunciados, a saber:
A - Atribui erroneamente eficácia probatória ao conjunto de fotogramas, sustentando a defesa que a sua inclusão contrariou o disposto na lei.
(seguem-se conclusões respeitantes a outras matérias)
G - O douto acórdão infringiu assim a Constituição da República Portuguesa, ao recusar aplicar legislação obrigatória.
(seguem-se outras conclusões que respeitam a outras matérias)
G - Infringiu assim o douto acórdão na letra e no espírito os arts.
97º n.º 4; 125º; 126; 374º n.º 2; 379º n.º 1 als. a) e c); 40º n.ºs 2 al. c) e
3; 522º n.º 2 do CPP; artº 6º da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro; e arts 22º, 25;
32ºs 1 e 8; 204 e 205º da Constituição da República.
.............................................................................................................'
O acórdão ora recorrido decidiu a questão em causa nos seguintes termos:
'Pretendem os recorrentes que seja considerada nula a junção de fotografias colhidas no decurso da busca ordenada e efectuada no caso vertente.
Já na 1ª Instância e, depois, no recurso para a Relação os recorrentes haviam suscitado sem êxito esta questão e, também agora entendemos que não lhes assiste razão.
Com efeito, as fotografias juntas a fls. 162 limitam-se a documentar aspectos da busca domiciliária, ordenada por despacho judicial constante de fls.
120, não se mostrando violado qualquer preceito legal ou constitucional.
Improcede, pois, a arguida nulidade, sendo certo que a junção aos autos daquelas fotocópias em nada diminui as garantias de defesa dos recorrentes.'
3 - Como se deixou relatado, o recurso vem interposto ao abrigo de duas das alíneas do artigo 70º n.º 1 da LTC - as alíneas b) e f).
Quanto a esta última é patente a não verificação do pressuposto que nela se impõe: a aplicação das normas invocadas pela recorrente cuja ilegalidade haja sido suscitada com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e). do mesmo artigo e número.
Com efeito, não se vê que a recorrente tenha suscitado a ilegalidade das referidas normas, pelo que nem sequer se coloca a questão de saber se a recorrente utilizou qualquer dos fundamentos de ilegalidade constantes daquelas alíneas.
4 - No que concerne ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70º n.º 1 da LTC exige-se que o recorrente tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade durante o processo e que o tenha feito de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida
(artigo 72º n.º 2 ds LTC).
Sucede que, no caso, e como resulta dos trechos supra transcritos das alegações feitas pela recorrente, não se mostra cumprido tal ónus processual.
Com efeito, a recorrente pugnou aí pela nulidade da recolha e junção aos autos de fotografias obtidas durante uma busca domiciliária, com base nos artigos 125º e 126º do CPP e 6º da Lei n.º 5/2002.
E não questionou a constitucionalidade dessas normas (em particular das contidas nos dois primeiros preceitos) ou, mais concretamente, da interpretação que tinha conduzido a Relação do Porto ao entendimento de que a prova não fora ilegalmente obtida.
Era essa interpretação - aliás mantida no acórdão recorrido - que a recorrente teria que questionar sub specie constitutionis no recurso para o STJ, o que manifestamente não fez, sendo certo que se não tratava de uma qualquer recusa de aplicação de normas, mas tão só uma interpretação das mesmas normas que, face à circunstância de as fotografias se limitarem a documentar aspectos da busca domiciliária efectuada, levava a que elas não fulminassem a prova com nulidade.
Em matéria de constitucionalidade, o que a recorrente se limitou a fazer foi incluir, numa conclusão que sintetizou todos os vícios que ela imputava ao acórdão da Relação, a violação de preceitos legais e constitucionais.
E no que concerne a esta violação - que aliás imputa à própria decisão judicial - nem uma palavra disse para substanciar a alegação, ou seja para dizer o porquê da infracção à Lei Fundamental, sendo apodíctico que a mera violação de preceitos infraconstitucionais não implica, necessariamente, a violação da Constituição.
Em suma, não suscitou a recorrente a questão de constitucionalidade perante o STJ de modo processualmente adequado como o impõe o citado artigo 72º n.º 2 da Constituição.
5 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente fixando-se a taxe de justiça em 6 Ucs.'
Notificada desta decisão, dela veio a recorrente reclamar para a conferência, dizendo, em síntese, que:
- a decisão é nula por nela se dizer que a recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade perante o STJ de modo processualmente adequado como impõe o 'artigo 72º n.º 2 da Constituição', quando esta disposição nada dispõe sobre tal matéria;
- mesmo a não se considerar nula a decisão, deveria a recorrente, de acordo com o n.º 2 do artigo 78º-A da LTC, ser notificada nos termos do n.º 6 artigo 75º-A da mesma Lei por não terem sido indicados os elementos exigidos pelos n.ºs 1 a 4 deste preceito..
Na sua resposta o Exmo Magistrado do Ministério Público entende que a reclamação carece manifestamente de fundamento.
Cumpre decidir.
2 - A alegação do primeiro fundamento da reclamação roça a litigância de má fé.
É, com efeito, patente que a referência feita ao incumprimento do disposto no artigo 72º n.º 2 'da Constituição' - como, de facto, se escreveu - se deve a mero lapso material de escrita; o preceito citado era inequivocamente o artigo 72º n.º 2 da LTC.
Mesmo que a recorrente ignorasse o preceito - de que se reproduziu o conteúdo -, o que, de todo se não admite, por ela estar patrocinada por um técnico de direito, ainda assim seria fácil reconhecer o lapso.
E isto por uma simples razão. É que, como se vê da decisão sumária supra transcrita, o n.º 4 (onde a final foi cometido o lapso) trata da questão do cumprimento do ónus imposto pelo artigo 72º n.º 2 da LTC, preceito que é então correctamente referido como sendo da Lei do Tribunal Constitucional; e, quando se comete o lapso, a expressão 'artigo 72º n.º 2 da Constituição' é imediatamente antecedida da palavra 'citado' com o que se não deixa margem para dúvidas de que aquele preceito se integrava na LTC.
Improcede, assim, a invocada nulidade.
3 - No que concerne ao segundo fundamento, é patente o lapso (não aqui de escrita) da recorrente.
Com efeito, o convite de aperfeiçoamento previsto no artigo 75º-A n.ºs 5 e 6 da LTC reporta-se, apenas, aos requisitos do requerimento de interposição de recurso constantes nos n.ºs 1 a 4 do mesmo artigo e não aos pressupostos processuais do recurso, como era o caso, e cuja falta é logicamente insusceptível de suprimento.
O que se retira do disposto do n.º 2 do artigo 78º-A é unicamente que, nos casos em que, depois do convite previsto no artigo 75º-A n.ºs 5 e 6 da LTC, continue a faltar, no requerimento de interposição de recurso, a indicação dos elementos exigidos pelos n.ºs 1 a 4 do artigo 75º-A da LTC, deve ser lavrada decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso. Nada mais do que isto.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 16 Ucs., tomando-se em linha de conta que a reclamante litiga com o benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Luís Nunes de Almeida