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Processo n.º 943/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. O recorrente A. vem, ao abrigo do disposto no artigo
78.º-A, n.º 3, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar para a conferência da decisão sumária, de 22 de Dezembro de 2003, que decidiu, ao abrigo do n.º 1 desse artigo 78.º-A, não conhecer do recurso.
1.1. Essa decisão sumária tem a seguinte fundamentação:
“1. A. foi condenado, por acórdão do Tribunal Colectivo da 1.ª Vara Mista da Comarca de Guimarães, de 6 de Abril de 2002 (fls. 1953 a 1981), pela prática, em co-autoria material e na forma tentada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 26.º e 29.º do Código Penal, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, e pela prática, em autoria moral e na forma consumada, de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, previsto e punido pelos artigos 1.º, alínea b), e 6.º da Lei n.º 22/97, de 27 de Junho, na pena de
100 dias de multa à taxa diária de 2000$00, o que perfaz a multa de 200 000$00 ou, subsidiariamente ao não pagamento da multa, na pena de 66 dias de prisão.
O arguido interpôs recurso dessa condenação, na parte relativa ao crime de tráfico de estupefacientes, na forma tentada, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 10 de Julho de 2002 (fls. 2234 a 2285), concedido parcial provimento a esse recurso, reduzindo a pena correspondente a esse crime para 4 anos de prisão.
Ainda inconformado, interpôs o mesmo arguido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, porém, foi rejeitado, por acórdão de 29 de Maio de
2003 (fls. 2550 a 2553), nos termos dos artigos 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por ser irrecorrível a decisão da Relação, quer com base na alínea e), quer com base na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do mesmo Código, dado que, tratando-se de recurso interposto apenas pelo arguido e atenta a proibição da reformatio in pejus (artigo 409.º do citado Código), a pena «aplicável» pelo Supremo Tribunal de Justiça nunca poderia ser superior aos
4 anos de prisão fixados pela Relação.
Notificado deste acórdão, o mencionado arguido veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (doravante designada por LTC), indicando que
«as normas constitucionais que o recorrente pretende que o Tribunal aprecie são as constantes dos artigos 31.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e os princípios constitucionais delas decorrentes – princípios da legalidade, da presunção de inocência, in dubio pro reo, nullum crimen sine lege e nulla poena sine lege» (fls. 2578).
Tendo o Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça determinado, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 1, 2 e 5, da LTC, a notificação do recorrente para indicar a norma ou normas cuja inconstitucionalidade pretende que seja apreciada pelo Tribunal Constitucional, bem como a peça processual em que suscitou a questão da inconstitucionalidade (fls. 2588 verso), veio o mesmo responder que «as normas cuja inconstitucionalidade se entende que devem ser apreciadas pelo Tribunal Constitucional são os artigos 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa» e que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada a fls. 34 da motivação do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães e a fls. 13 e 31 da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
O recurso foi admitido pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, decisão que, porém, não vincula este Tribunal Constitucional (artigo
76.º, n.º 3, da LTC).
E, de facto, entende-se que o presente recurso é inadmissível, o que possibilita a prolação de decisão sumária, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
2. O presente recurso vem interposto com invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A admissibilidade deste tipo de recurso depende não apenas de o recorrente haver suscitado uma questão de inconstitucionalidade normativa – isto é, de uma questão de desconformidade entre normas de direito ordinário e as normas e princípios constitucionais, e já não de eventual
«inconstitucionalidade de normas constitucionais» ou de violações da Constituição imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas – perante o tribunal recorrido, em regra antes de ele proferir a decisão recorrida, e de essa suscitação ser feita «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de ele estar obrigado a dela conhecer» (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), como também de a decisão recorrida haver efectivamente aplicado, como ratio decidendi, a norma ou a interpretação normativa arguidas de inconstitucionais.
No presente caso, o recorrente nunca suscitou durante o processo qualquer questão de inconstitucionalidade normativa. Nas passagens das peças processuais indicadas como sendo os locais onde foi suscitada a questão de inconstitucionalidade que pretende ver apreciada, as únicas referências relevantes consistem nas afirmações de que «O Tribunal a quo, apenas e só, com base numa presunção de culpa, sem que esta se possa alicerçar em quaisquer factos portadores de ilícito criminal ou censura, decidiu condenar o recorrente, o que manifestamente viola o artigo 32.º, n.º 2, da CRP» (fls. 34 da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, a que corresponde a fls.
2016 verso destes autos), frase reproduzida a fls. 13 da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (a que corresponde a fls. 2484 destes autos), e de que «O douto acórdão ora em recurso, ao confirmar, em parte, a decisão da 1.ª instância, nomeadamente quanto ao julgamento da matéria de facto e provas utilizadas, violou, entre outros (...) o artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa» (fls. 31 da motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a que corresponde a fls. 2493 destes autos).
Constata-se, assim, que a violação da Constituição é imputada directamente às decisões judiciais impugnadas, em si mesmas consideradas, o que, como se viu, não constitui objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
Acresce que, apesar de expressamente convidado a indicar as normas
(obviamente, normas de direito ordinário) cuja conformidade constitucional pretendia ver apreciada, o recorrente não correspondeu satisfatoriamente a esse convite, indicando como objecto da apreciação do Tribunal Constitucional normas e princípios da própria Constituição, o que é manifestamente desadequado.
Por último, embora o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, não tenha indicado expressamente qual a decisão judicial que pretendia impugnar, a admitir-se ser esta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, então também é óbvio que as normas por este aplicadas para rejeitar o recurso para ele interposto (artigos 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), 414.º, n.º 2, e
420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) nada têm a ver com a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente (relativa a pretensa violação, pelas decisões das instâncias, do princípio da presunção de inocência do arguido). Se, porém, se entendesse que o recorrente pretendia interpor recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, haveria, em rigor, de não apreciar de imediato a sua admissibilidade sem que primeiramente o mesmo fosse
(ou não) admitido pelo Desembargador Relator desse Tribunal, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, da LTC («Compete ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso»); no entanto, no presente caso, não se justifica a determinação do rigoroso cumprimento desse ritualismo, uma vez que surge como patente a inadmissibilidade do recurso mesmo tendo por objecto o acórdão da Relação, pois – repete-se – o recorrente nunca suscitou, ao longo dos autos, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa susceptível que constituir objecto de recurso de constitucionalidade.
3. Em face do exposto, decide-se, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não conhecer do recurso.”
1.2. A reclamação apresentada desenvolveu a seguinte argumentação:
“1 – Sendo exactos todos os pressupostos fácticos alegados no n.º 1 da decisão reclamada, parece ao recorrente não haver razão para a decisão sumária tomada que conclui no não conhecimento do recurso.
As razões de discordância da douta decisão são estas:
2 – O recurso é de facto interposto com base em invocação da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Assim foi recebido pelo Ex.mo Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.
A decisão que condenou o recorrente circunscreve-se à prática de um crime tentado de tráfico de estupefacientes.
Conforme se alegou no requerimento de interposição de recurso dirigido a esse Tribunal, a decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, ao condenar o recorrente pela prática do crime tentado, violou o princípio da livre apreciação das provas e convicção do juiz – artigo 127.º do Código de Processo Penal e o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido
– artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
3 – Ainda, e tendo em vista o n.º 2 do requerimento de interposição de recurso dirigido a esse Venerando Tribunal, o recorrente alegou que foi condenado com base em actos preparatórios de um crime, que não são criminalmente puníveis – n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal.
E ainda porque o artigo 22.º, n.º 1, do Código Penal prevê a tipicidade dos actos de execução dum crime, que são puníveis nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do mesmo diploma legal.
Defende o recorrente que a decisão que o condenou violou os artigos
21.º, 22.º e 23.º do Código Penal, porque os actos eventualmente praticados se circunscrevem a meros actos preparatórios e nunca actos de execução dum crime.
A decisão condenatória, como também foi alegado no já falado requerimento, violou o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, porque os actos julgados e punidos não tipificam o crime de tráfico de estupefacientes.
4 – O ora reclamante esclareceu as dúvidas do Supremo Tribunal de Justiça ao responder ao douto despacho formulado por esse Tribunal dizendo:
– Que a questão da inconstitucionalidade foi suscitada pelo reclamante na motivação dirigida ao Tribunal da Relação de Guimarães e também ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos constantes do n.º 2 do requerimento dirigido àquele Tribunal, e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
5 – As normas violadas decorrem do requerimento de interposição de recurso dirigido a esse Venerando Tribunal, e são:
De direito ordinário: Os artigos 127.º do Código de Processo Penal, artigos 21.º, 22.º e 23.º do Código Penal e o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º
15/93, por violação dos seguintes preceitos constitucionais:
Artigos 29.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa e princípios constitucionais deles decorrentes, a saber:
– Princípio de livre apreciação de prova, com base objectiva;
– Princípio de presunção de inocência do arguido não condenado com trânsito em julgado;
– Princípio de legalidade e tipicidade dos crimes, e;
– Princípios «nulla poena sine lege» e «nullum crimen sine lege»”.
6 – Por último, e quanto às razões fundamentadores da decisão reclamanda, parece-nos que decorria dos autos que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional era do Acórdão da Relação de Guimarães que julgou do mérito da causa, e no entender do reclamante violou as normas de direito ordinário e constitucional, nos termos invocados.
7 – Ex.mos Srs. Juízes Conselheiros:
Estando em causa o valor supremo liberdade do arguido, entendemos ser de prosseguir um processo de decisão, afastado de meras formalidades legais ou burocráticas que possam colidir ou diminuir aquele valor supremo.
Julgamos que no requerimento de interposição de recurso e do seguinte a esclarecer o primeiro, ficou bem claro, ou pelo menos entendia-se o
«espírito» do que se pretendia, no respeitante às normas jurídicas violadas (de direito ordinário e constitucional), como também a decisão de que se recorria e as peças processuais onde havia sido suscitada a questão da inconstitucionalidade.
Pelos motivos expostos, e também sumariamente fundamentados, deve a presente reclamação ser atendida, ordenando-se o prosseguimento do recurso interposto.”
1.3. Notificada desta reclamação, o representante do Ministério Público neste Tribunal Constitucional respondeu, propugnando o seu indeferimento.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Como resulta da simples leitura da presente reclamação, ela, em rigor, não põe em causa os fundamentos da decisão sumária reclamada, antes expressamente reconhece que, nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, nem na resposta ao convite que lhe foi feito para o completar, o requerente indicou as normas de direito ordinário cuja conformidade constitucional pretendia ver apreciada, sendo manifestamente improcedente a alegação de que, nessas peças “entendia-se o
«espírito» do que se pretendia, no respeitante às normas jurídicas violadas (de direito ordinário e constitucional)”.
Acresce que, relativamente às normas de direito ordinário cuja conformidade constitucional pretendia ver apreciada, e que só agora veio identificar – a saber: os artigos 127.º do Código de Processo Penal,
21.º, 22.º e 23.º do Código Penal e 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 –, o reclamante, nos locais por ele indicados (agora reduzidos à fl. 34 da motivação do recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Guimarães, uma vez que veio esclarecer que a decisão impugnada era tão-só o acórdão por este Tribunal da Relação proferido), não suscitou a questão da respectiva inconstitucionalidade normativa – nem, aliás, qualquer outra questão dessa natureza –, em termos processualmente adequados a que o tribunal em causa ficasse obrigado a dela conhecer, conforme se evidenciou na decisão sumária reclamada.
Por estas razões, o recurso de constitucionalidade interposto é inadmissível.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
15 (quinze) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos