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Processo n.º 549/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., Limitada, intentou procedimento cautelar comum contra B., Unipessoal, Limitada, e o Banco C., S.A..
Tendo sido decidido não ouvir as Requeridas, foram produzidas as provas oferecidas pela Requerente, após o que foi julgado parcialmente procedente o procedimento cautelar, tendo-se condenado a 2.ª Requerida a abster-se de entregar à 1.ª Requerida qualquer importância que esta lhe peça ao abrigo da Garantia Bancária n.º …., sendo esta condenada a abster-se de pedir àquele Banco o pagamento de quaisquer quantias ao abrigo da mencionada garantia.
Citadas as Requeridas, apenas a 1.ª Requerida deduziu oposição, pedindo o levantamento da providência decretada.
Esta oposição foi julgada procedente, tendo-se ordenado o levantamento da providência.
Desta decisão recorreu a Massa Insolvente da A., Limitada, para o Tribunal da Relação de Guimarães, tendo alegado, além do mais, que o juiz que a proferiu não tinha legitimidade para o fazer.
Foi proferido acórdão em 24 de janeiro de 2012 que negou provimento ao recurso.
A Massa Insolvente da A., Limitada, pediu a aclaração e a reforma desta decisão, o que foi indeferido por novo acórdão proferido em 13 de março de 2012.
A Massa Insolvente da A., Limitada, interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, invocando a inconstitucionalidade das seguintes normas:
- do artigo 383.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, interpretado com o sentido de que a decisão que decide a oposição a uma providência decretada sem a audição prévia do requerido, pode ser proferida por juiz diverso daquele que decretou a providência, por violar os princípios do juiz natural e da igualdade;
- do artigo 386.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, quanto à obrigatoriedade da gravação da prova em procedimento cautelar em que é dispensada a audição do requerido, sem que essa mesma obrigatoriedade exista no procedimento de oposição ao decretamento dessa providência, por violar os artigos 13.º, 20.º e 32.º, da Constituição.
O Desembargador Relator proferiu decisão de não admissão do recurso, com fundamento em que não foram suscitadas adequadamente perante o Tribunal da Relação de Lisboa as questões de constitucionalidade que agora a Recorrente pretende colocar ao Tribunal Constitucional.
A Recorrente reclamou desta decisão, nos seguintes termos:
“2. A Reclamante apresentou no Tribunal da Relação de Guimarães, Recurso para o Tribunal Constitucional, no qual pretendeu ver apreciada a constitucionalidade da interpretação das normas constantes do n°2 do artigo 383° e do n°4 do artigo 386°, ambas do Código do Processo Civil, uma vez que a sua aplicação viola o disposto nos artigos 13°, 20° e 32° da CRP.
3. A Reclamante suscitou a mencionada inconstitucionalidade nas suas alegações de recurso, bem como no requerimento de aclaração do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
4. Alegou a Reclamante em instâncias de recurso e de requerimento de aclaração de acórdão que a decisão da oposição subsequente ao decretamento da providência cautelar, ao ter sido proferida pelo juiz do 1° juízo, e não pelo mesmo juiz que julgou a providência cautelar (2° juízo), viola o principio da plenitude de assistência dos juízes, ínsito no artigo 654° do CPC, do princípio do juiz natural, e o princípio da igualdade previsto no artigo 13° da CRP.
5. A Reclamante entende que, ao contrário do preconizado no n° 2 do artigo 383° do CPC, só deveria intervir na decisão da matéria de facto, o juiz que tenha assistido a todos os atos de instrução e discussão praticados, ou seja, o juiz que julgou a providência cautelar seria o competente para proferir a decisão final da oposição subsequente, pois apenas este tem conhecimento de toda a matéria e de toda a prova produzida, formulando a sua convicção quanto à mesma.
6. Tais argumentos por si aduzidos não foram aceites no douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
7. Requereu pois a Reclamante, a aclaração de acórdão proferido, alegando nomeadamente, que na elaboração da douta decisão não foram atendidos todos os factos alegados.
8. Relativamente a esta questão, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Guimarães nos seguintes termos: “De jure constituendo poderá vir a ser consagrada a tese defendida pela Requerente mas de jure constituto, face ao disposto no art.º 383°, n° 2, do C.P.Civil ela será, por ora, ilegal.”
9. A Reclamante pugna pela inconstitucionalidade da norma constante do n° 2 do artigo 383°, porquanto a sua aplicação em sede de providência cautelar, beneficia o opoente, na medida em que o juiz que preside ao julgamento da oposição ao decretamento da providência cautelar apenas assiste à produção de prova efetuada nesta sede não tendo acesso direto e de facto à prova que foi produzida em audiência que culminou no seu decretamento.
10. A Reclamante abordou a questão supra, nas páginas 9 a 12 das suas alegações e nos artigos 21° a 31° do requerimento de aclaração de acórdão.
11. Por outro lado, alegou a Reclamante que a instância de recurso versa sobre decisões contraditórias, sobre os mesmos factos, num processo de oposição, no qual a requerida teve acesso à gravação da prova da primeira audiência de julgamento que decretou a providência cautelar, teve todos os meios de a refutar, em sede de requerimento de oposição e de, no julgamento respetivo, produzir a prova que mais lhe foi conveniente.
12. No entanto, a Reclamante, embora plenamente convicta do contrário, até ao momento em que requereu o envio das referidas gravações, face aos factos alegados em sede de oposição, não teve oportunidade de refutar a prova produzida pela requerida, não porque dela ter prescindido, mas porque laborou em erro, saindo prejudicado o seu direito em sede de recurso.
13. Deste modo, a falta de gravação da audiência de julgamento da Oposição à providência cautelar obsta ao efetivo direito do recorrente ao recurso em matéria de facto, ou seja, ao reexame total da matéria de facto, contrariando o preceito constitucional vertido no art.° 20 da CRP.
14. Além da violação do direito ao recurso, o facto de a requerida aceder às gravações da primeira audiência de julgamento e de estar essa possibilidade vedada à requerente no que toca à segunda audiência, consubstancia ainda, e de forma manifestamente ostensiva, a violação do princípio de igualdade das partes.
15. Dirá a Reclamante que o processo que julga uma providência cautelar é um só; apesar de fragmentado em diferentes momentos temporais, dando lugar a duas decisões, neste caso contraditórias, sempre existe unicidade quanto às partes e ao diferendo e si mesmo.
16. Ora, entende-se que para as duas fases nas quais se divide o julgamento da providência cautelar deve prevalecer o mesmo princípio
17. Se em sede de julgamento da petição inicial de providência cautelar, sem audiência do requerido, a prova é gravada, sem para o efeito ter sido formulado o respetivo pedido, por maioria de razão, o mesmo deveria ocorrer no julgamento da oposição da decisão que decretou a providência.
18. Requereu pois a Reclamante a aclaração de acórdão proferido, alegando nomeadamente, que na elaboração da douta decisão não foram atendidos todos os factos alegados.
19. Em face do alegado, pronunciou-se o Tribunal da Relação de Guimarães: “Concordamos com a afirmação produzida pela Requerente no item 57 — “Se a gravação da prova não está na disponibilidade da requerente, também não deverá estar na disponibilidade da requerida” — contudo, posto que não estamos perante uma lacuna do C.P.Civil. não podemos recorrer às disposições do art°.10°. do Cód. Civil.”
20. É manifesto que a norma constante do n°4 do artigo 386° do CPO está enferma de inconstitucionalidade.
21. Salvo melhor opinião, esta norma, ao obrigar a gravação da prova produzida em julgamento que decrete a providência cautelar, está a dar tratamento diferente à prova que se produz em sede de julgamento de oposição à providência já decretada, violando dessa forma o principio da igualdade entre as partes contemplado no artigo 13° da CRP.
22. Assim, e embora do texto do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães não conste expressamente a menção de que existem dúvidas quanto a constitucionalidade das normas aplicadas no caso concreto, a verdade é que tal resulta do texto do mesmo.
23. Ao desconsiderar essa dúvida e limitando-se à aplicação das supra referidas normas, violou o Tribunal recorrido os supra citados artigos 13°, 200º e 32° da CRP e, designadamente os princípios da igualdade das partes, do direito ao recurso, de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
24. O respeito pelos supra mencionados princípios teria conduzido necessariamente a uma decisão diversa.
25. A interpretação efetuada viola, assim, o disposto nos artigos 3°, 200º e 32° da CRP.
26. Violação que já foi aflorada no Tribunal Recorrido.
27. A Reclamante abordou a questão supra, nas páginas 12 a 15 das suas alegações e, nos artigos 43°, 47° a 51° do requerimento de aclaração de acórdão.
28. A Reclamante foi convidada a aperfeiçoar o Requerimento de Recurso para o Tribunal Constitucional e respondeu ao convite.
29. O recurso interposto pela Reclamante, contudo, não foi admitido, por decisão preferida em 25 de maio de 2012, a fls., por se ter considerado que as questões de inconstitucionalidade das normas jurídicas nas quais assentam a decisão, não foram invocadas nas alegações de recurso.
30. Todavia, a Reclamante não pode concordar com tal decisão.
31. A inconstitucionalidade foi suscitada em momento oportuno.
32. Ainda que assim não fosse, e considerando uma alegação menos clara das inconstitucionalidades alegadas, sempre se dirá que “A suficiência de uma invocação implícita de inconstitucionalidade há-de avaliar-se por afirmações ou considerandos nas peças processuais que apelem a Lei Fundamental ou aos princípios vinculantes nela plasmados como referencial ultimo — cfr. Ac. TC de 05.02.1991 33. Estão reunidos os pressupostos processuais para o conhecimento do recurso interposto, tendo sido dado cumprimento ao ónus de suscitação prévia, nos termos do artigo 70°, n°1, alínea b) e 72°, n°2 da LTC.”
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação.
Fundamentação
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida.
Assim, a Recorrente para ter legitimidade para pedir ao Tribunal a fiscalização da constitucionalidade das normas por si indicadas no requerimento de interposição de recurso deveria tê-las colocado em primeiro lugar ao próprio tribunal recorrido, em momento e em local que vinculasse aquele tribunal à sua apreciação, ou seja nas alegações de recurso que a ele foram dirigidas.
Ora, da leitura dessas alegações, designadamente do que consta nas páginas 9 a 11 verifica-se que a Recorrente nessa peça não suscitou a questão da inconstitucionalidade das referidas normas, tendo-as apenas discutido no plano infraconstitucional, designadamente confrontando-as com princípios do processo civil.
Apenas no incidente pós-decisório de aclaração/reforma do Acórdão da Relação de Guimarães se aludiu à desconformidade com princípios constitucionais da obrigatoriedade de gravação da prova em procedimento cautelar sem audição de requerido, sem que essa obrigatoriedade exista no procedimento de oposição ao decretamento dessa providência.
Mas, como já acima se disse, esse já não era o momento adequado para suscitar a questão perante o tribunal recorrido, uma vez que nesse incidente apenas estava em discussão a necessidade de aclarar ou de reformar o Acórdão proferido e não a alegada inconstitucionalidade duma norma anteriormente aplicada.
Não se revelando, pois, preenchido o requisito da suscitação adequada perante o tribunal recorrido das normas cuja fiscalização de constitucionalidade se pretende, revela-se correta a decisão reclamada, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada pela Massa Insolvente da A., Limitada.
Custas da reclamação pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 24 de outubro 2012.- João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.