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Proc. 196/99 - 1ª Secção Relator: Cons. Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
1.1. A sociedade comercial denominada A. impugnou no Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa a liquidação das imposições incidentes sobre a mercadoria declarada à Alfândega a coberto do DU n.º 17 055 de 10FEV89 da Delegação Aduaneira de Alverca.
No entender da impugnante, os actos de liquidação padeceriam de violação de lei, pelo que deveriam ser anulados. Por outro lado, o recurso era tempestivo por força do disposto no artigo 31º da LPTA, pois, apesar de interposto cerca de sete meses após a prática do acto, tinham oportunamente sido requeridas certidões para prova da existência e conteúdo do acto recorrido, documentos que só “recentemente” haviam sido entregues à recorrente.
Porém, o Tribunal Fiscal Aduaneiro de Lisboa rejeitou o recurso com fundamento na intempestividade do pedido. E, a propósito do regime previsto no invocado artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos (LPTA), disse:
“Refere aquele artigo 31º que se a notificação não contiver os elementos necessários pode interessado requerer a notificação ou entrega de certidão. No caso vertente a certidão pedida foi a própria D.U. cuja tramitação é permanentemente seguida pelo despachante oficial que tem acesso ao seu integral conteúdo e que é nela notificado. Por isso não estamos perante qualquer omissão nos termos do referido artigo 31º. Por outro lado também a exposição efectuada ao Ex.mo Director-Geral das Alfândegas existente no apenso mostra que as questões objecto do presente recurso já eram conhecidas da recorrente antes mesmo do acto de liquidação. Acresce ainda que nos termos do artigo 29º da LPTA o recurso pode ser interposto mesmo antes da notificação do acto. Uma coisa é a interposição do recurso e a outra a prova do acto recorrido. Nos termos do artigo 28º n.º 1 alínea a) da LPTA os recursos contenciosos dos actos anuláveis são interpostos no prazo de dois meses se o recorrente residir no Continente. Tal prazo começa a contar-se independentemente de ter sido dado conhecimento ao recorrente dos fundamentos da decisão, não tendo a apresentação da exposição - reclamando contra o acto - influência na contagem do prazo. Vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos do STA de 23.11.78, 17.5.79 e
19.7.79, sumariados no Boletim n.º 299. Sendo a liquidação um acto vinculado, totalmente submetido à lei, não necessita fundamentação expressa nem notificação pessoal. Veja-se Acórdão STA de 8.10.89 (Apêndice ao Diário da República). No caso vertente, a recorrente teve conhecimento do acto de liquidação pelo menos em 10.2.89 e só em 15.9.89 interpôs o presente recurso, tendo já em tal data sido, em muito, excedido o prazo de recurso. Em conformidade, julga-se intempestivo o recurso não podendo em consequência o Tribunal apreciar as questões de fundo nele suscitadas.”
1.2. Inconformada, a interessada recorreu para o Tribunal Tributário de 2ª Instância, a pedir a revogação desta decisão, concluindo:
“a) A douta sentença agravada constitui grave denegação de justiça, violando direitos fundamentais plasmados na CRP, artigo 20º; b) Todos os actos receptícios necessitam de ser notificados ao seu destinatário, que só através da notificação tomam deles conhecimento, bem como a sua fundamentação; c) O acto impugnado foi dado a conhecer apenas ao despachante da recorrente, ora agravante, pelo que houve necessidade de recorrer à faculdade estabelecida no artigo 31º da LPTA; d) Só a obtenção da certidão completa do D.U. permitiu conhecer o conteúdo integral do acto, e fazer a prova dos mesmos nos autos, dando assim cumprimento ao estipulado no artigo 36º da LPTA; e) Acresce que os actos de liquidação necessitam de ser fundamentados e notificados ao seu destinatário – artigo 268º da CRP artigo 1º n.1 do DL
256-A/76 e artigo 6º n.º 1 do Reg. (CEE) n.º 1854/89; f) A recorrente, ora agravante, só logrou obter a certidão pedida ao abrigo do artigo 31º da LPTA em 17/04/89, tendo interposto o recurso contencioso em
6/6/89, ou seja tempestivamente; g) Acresce que recursos idênticos interpostos na mesma data, distribuídos no 1º Juízo do TFA de Lisboa, foram objecto de apreciação e decisão pelo Meritíssimo Juiz, que considerou os mesmos tempestivos; h) Esta dualidade de critérios de decisão temporal e factualmente idênticos, gera tratamento desigual no acesso à justiça, chegando um direito constitucionalmente consagrado – artigo 20º. Preceitos violados: Artigo 20º e 268º da CRP; artigo 31º e 36º da LPTA; artigo
6º do Reg. (CEE) n.º 1854/89; artigo 1º do DL 256-A/76 de 17/06. Nestes termos e nos mais de direito deve ser anulada a douta sentença recorrida, baixando os autos ao douto Juiz a quo para conhecer o objecto de recurso, como é de Justiça!”
Todavia, o Tribunal Tributário de 2ª Instância julgou improcedente o recurso e manteve a decisão recorrida.
1.3. Novamente inconformada, a recorrente apelou então para a Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:
“O recurso foi interposto tempestivamente; sem o recurso à faculdade prevista no artigo 31º da LPTA e do artigo 22º do CPT, a Recorrente não podia instruir adequadamente o recurso. O despachante oficial apresentou o D.U. no dia 31/1/89, não tendo sido aceite por não estarem contados os D.N; os quais haviam sido suspensos e repostos por decisão administrativa e sem qualquer publicidade. Voltou a apresentar o D.U. no dia 10/02/89, com a declaração que pagaria os D.N. mas que iria interpor recurso contencioso; a partir deste momento, o D.U. seguiu para registo de liquidação e não voltou mais às mãos do despachante. No dia 25/2/89 foi requerida certidão, ao abrigo do artigo 82º da LPTA, a qual não foi passada no prazo de 10 dias, mas sim passados 4 meses. Exigir que os recursos sejam interpostos sem o conhecimento de elementos de facto mínimos, corresponde a inviabilizar a possibilidade de recurso contencioso. Os artigos 31º da LPTA e 22º da CPT, afrontariam o artigo 268º da CRP, se fosse correcta a interpretação que deles é feita no douto acórdão
(inconstitucionalidade material). A Administração criou toda a sorte de obstáculos à interposição do recurso contencioso. Nestes termos e nos mais de direito, deve ser revogado o Acórdão recorrido, dando-se provimento ao recurso, como é de JUSTIÇA!”
De novo sem sucesso, pois a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo também negou provimento ao recurso ponderando essencialmente o seguinte:
“... 2.1. Face a essa factualidade e dando-se como assente que a petição do recurso contencioso fora apresentada em 6.6.89, entendeu-se no acórdão recorrido que tal recurso não tinha sido tempestivamente interposto, conforme a decisão na
1ª Instância. Isto porque, em síntese, actuando os despachantes oficiais como mandatários dos donos das mercadorias, o despachante da recorrente tomou conhecimento do D.U. designadamente do acto de liquidação, pelo menos em 23.02.89, data em que dirigiu um requerimento à Alfândega de Lisboa no qual refere ter aceitado as importações objecto da liquidação, pelo que esta deve ter-se por notificada nessa data, ficando a recorrente habilitada a recorrer desse acto, do qual tomou integral conhecimento, desde então, e não apenas depois de obtida certidão integral do teor do D.U. por esta ser mera fotocópia do mesmo. Sendo que tal certidão não era necessária para prova da prática do acto recorrido, nos termos do artigo 36º da LPTA, dado que este preceito apenas exigia a “identificação” desse acto, podendo os documentos comprovativos da sua prática ser juntos posteriormente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 56º do RSTA. Assim, não se justificava o recurso à faculdade prevista pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 31º da LPTA, porquanto, ao intervir no processamento do DU a recorrente não podia deixar de conhecer o conteúdo integral do acto e a sua fundamentação, não havendo, assim, que contar o prazo para o recurso a partir da entrega da certidão pedida. E o facto de recursos idênticos terem sido julgados tempestivos, não viola o artigo 20º da CR, norma que se limita a assegurar o acesso ao direito e aos tribunais.
2.2. Vejamos, pois, se procedem as críticas ao decidido, constante das conclusões do recurso. Ora, nestas, limita-se a recorrente, depois de referir factualidade coincidente, em parte, com a fixada no acórdão recorrido, e da qual não compete a este Supremo Tribunal Administrativo, no caso, conhecer, nos termos do artigo 21º, 4º do ETAF, a discordar do entendimento seguido naquele acórdão quanto ao âmbito da aplicação dos artigos 31º da LPTA e 22º do CPT, sendo que, aliás, apenas aquele primeiro preceito foi considerado no acórdão e não o artigo 22º da CPT diploma este com vigência posterior aos factos dos autos – 1/7/91, nos termos do artigo
2º do DL 154/91 de 23 de Abril. E o recurso à faculdade concedida no n.º 1 daquele artigo 31º, por parte da ora recorrente, não se justificava, pelas razões expendidas no acórdão recorrido e que aqui se subscrevem, razões essas que aquela não logra invalidar no presente recurso. Na verdade, a certidão por aquela obtida mais não sendo que mera fotocópia do D.U., conforme se deu por assente no acórdão, documento em que a recorrente interveio, nada veio a acrescentar ao que já era do seu conhecimento e que lhe permitia recorrer à via contenciosa assacando ao acto, eventualmente, vício de forma, por falta de fundamentação, ilegalidade essa, aliás, que a recorrente não chegou a invocar, como também se refere no acórdão, quando deduziu o recurso contencioso após obtenção da mencionada certidão. Conforme se vê na alegação do recurso, o que a recorrente pretendia era que o D.U. contivesse a indicação das razões da tributação da mercadoria importada com direitos niveladores, que teria sido suspensa e novamente reposta, situação da qual discordava, ou seja pretendia obter, não a fundamentação do acto tal como fora praticado, mas informações posteriores da Administração sobre as razões determinantes da referida tributação. Ora, é manifesto que tal pretensão não podia ser satisfeita, ao abrigo do artigo
31º da LPTA, por exorbitar das finalidades dessa norma, que visa, apenas, dar ao administrado a possibilidade de tornar efectiva a injunção constante do antecedente artigo 30º, quanto ao conteúdo da notificação ou publicação do acto. E, por todas essas razões, não se vê que a interpretação daquele artigo 31º, tal como foi feita no acórdão recorrido, e que aqui, também, se perfilha, possa ofender o artigo 268º da CR pela recorrente invocado. Em suma, não assiste qualquer razão à recorrente nas críticas que formulou ao acórdão recorrido, o qual deve manter-se na ordem jurídica.”
1.4. Notificada, a sociedade recorrente requereu a reforma deste acórdão argumentando que, entretanto, o Tribunal Constitucional declarara a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma que servira de suporte à impugnada liquidação. Tal circunstância justificaria, em seu entender, que a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo oficiosamente levasse “em conta que a nulidade de que padecia o acto era invocável a todo o tempo” e, consequentemente, que “a apresentação do recurso seria sempre tempestiva”.
Mas a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo indeferiu o pedido de reforma esclarecendo, em suma:
“... 2. Ora, como é sabido, deve o julgador, ao proferir sentença, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, com excepção daquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, nos termos do artigo 660º, n.º 2 do Código do Processo Civil, sendo o incumprimento desse dever sancionado com a nulidade da decisão, nos termos do artigo 668º, 1º, d), daquele diploma, ao qual corresponde, no processo tributário, o artigo 144º, 1 do CPT. Pretende a reclamante que no acórdão de fls. 137 se incorreu em tal nulidade por não se ter conhecido da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 2 da Portaria 283/87, de 7 de Abril, declarada pelo acórdão do TC n. 530/94, publicado pelo DR, I Série-A de 8.11.94, norma esta que está em causa na liquidação dos DU, imposições aduaneiras que, conjuntamente com outros tributos, foram liquidados à ora reclamante. Porém, como bem salienta o Ex.mo Magistrado do Mº Pº junto deste Supremo Tribunal Administrativo no seu parecer, nas alegações e conclusões do recurso a
única inconstitucionalidade invocada pela recorrente respeitava à norma do artigo 31º da LPTA (com correspondência ao artigo 22º da CPT), e essa foi objecto de apreciação no acórdão, nenhuma referência se encontrando no recurso à inconstitucionalidade agora invocada, relativamente à norma do n.º 2 da Portaria n.º 283/87 de 7 de Abril. Assim, não se mostra ter havido omissão de conhecimento de questão colocada à apreciação do Tribunal. Se este, ao apreciar a questão que estava em causa no recurso e se prendia com a interpretação e aplicação do artigo 31º da LPTA, deixou de apreciar a referida inconstitucionalidade, não retirando da norma as consequências, que a ora reclamante reputa como favoráveis à sua pretensão, isso não envolve omissão de pronúncia , mas antes eventual erro de julgamento que, no caso, apenas poderia ser atacado mediante recurso para o TC. Improcede, pois, a arguida nulidade por omissão de pronúncia.”
1.5. Sempre inconformada, a sociedade recorrente recorreu para o Tribunal Constitucional, peticionando:
“... vem requerer a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional. Recurso que é interposto com fundamento nas alíneas b) e g) do n.1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional. O douto acórdão recorrido deu aplicação ao n.º 2 da Portaria n.º 283/87, de 7 de Abril, norma que serviu de suporte à liquidação dos direitos niveladores e que foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral, pelo Acórdão TC n°
530/94, proferido em 08/11/94. O citado acórdão do Tribunal Constitucional foi publicado já depois de produzidas as alegações no recurso jurisdicional dirigido a esse Venerando Tribunal (as alegações foram apresentadas em 13/01/93). A Recorrente alertou esse Venerando Tribunal para aquela declaração de inconstitucionalidade no pedido de reforma do douto acórdão recorrido, onde também salientou que logo na petição de recurso alegou a inconstitucionalidade da norma que fundamenta a liquidação dos direitos niveladores. De qualquer modo, dada a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, o douto acórdão recorrido está viciado de nulidade, invocável a todo o tempo, sendo o presente recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º l do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional. Paralelamente, nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo a Recorrente apontou a inconstitucionalidade material dos artigos 31º da LPTA e
22° do Código de Processo Tributário, na interpretação que lhes foi dada pelas decisões do TFA e do TT 2ª Instância, por violação do disposto no artigo 268° da CRP.”
O recurso foi admitido e, oportunamente, junta a respectiva alegação que conclui:
“I- O douto acórdão recorrido conferiu aos artigos 31° LPTA e 22° do CPT uma interpretação que se julgava extinta, pelo menos a partir da revisão constitucional de 1982; II- Se até àquela revisão constitucional a jurisprudência considerava que, para efeitos de início do prazo de interposição de recurso, bastava que a notificação ou publicação revelassem o autor do acto, a data e o sentido da decisão, com a nova redacção do artigo 268° CRP a situação alterou-se diametralmente; III - Consagrando um efectivo e útil direito de acesso aos tribunais, a CRP garante ao cidadão uma primazia material sobre o formalismo demagógico, permitindo uma reacção justa e eficaz, só possível mediante o integral conhecimento da fundamentação do acto que o lesa; IV- No caso dos autos os efeitos perversos da interpretação conferida ao artigo
31º LPTA são ainda mais evidentes porquanto se referem a uma situação de elevada insegurança decorrente da suspensão e posterior reposição dos direitos niveladores sobre a carne, os quais nunca foram publicadas no Diário da República, tendo esse Venerando Tribunal julgado inconstitucional e declarado a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do n. 2 da Portaria n° 283/87. V- Por outro lado, não pode considerar-se como conforme com a Lei Constitucional a mera apresentação de um acto administrativo ao despachante oficial, sem a entrega de uma cópia, exigindo-se que aquele decore o conteúdo integral do acto; VI- Confundindo identificação com fundamentação, o douto acórdão interpretou o artigo 31º da LPTA em termos inconciliáveis com os preceitos constitucionais acima indicados; VII- Deve pois ser julgada inconstitucional a norma contida no artigo 31º o da LPTA quando interpretada em sentido restrito, isto é, como apenas exigindo a identificação dos actos e não já os seus fundamentos - os quais devem apresentar o itinerário cognoscitivo e valorativo do autor do acto, sob pena de se considerar inexistente ou insuficiente, e ser transmitidos de modo a ser completa e adequadamente compreendidos pelo destinatário. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-se inconstitucional a norma contida no artigo 31° da LPTA, na interpretação que lhe foi conferida pelo douto acórdão recorrido o qual deve ser, consequentemente, revogado.”
2. Previamente, impõe-se examinar o objecto do presente recurso.
2.1. Depois de produzida a sua alegação, a recorrente foi convidada a pronunciar-se sobre uma questão prévia atinente à verificação dos pressupostos de admissibilidade do recurso. O despacho é do seguinte teor:
No presente recurso em que a sociedade comercial denominada A. impugna o acórdão proferido pela 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo com fundamento nas alíneas b) e g) do n.1 do artigo 70º da LCT, é plausível que não possa conhecer-se do recurso previsto na citada alínea g) em virtude de o acórdão recorrido não haver aplicado qualquer norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. E também é plausível que não possa conhecer-se do recurso previsto na alínea b) do n.1 do artigo 70º da LCT, em virtude de o acórdão recorrido não haver aplicado quer a norma constante do artigo 22º do CPT, quer a norma ínsita no artigo 31º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos com a interpretação normativa que a recorrente acusa de inconstitucional. A aceitar-se esta tese, o Tribunal não poderá conhecer da totalidade do recurso.
É, assim, oportuno ouvir a recorrente sobre esta questão, pelo prazo de 10 dias.
A recorrente respondeu reafirmando, no essencial, os argumentos já expostos ao longo da lide acerca da perspectiva com que encarava a sua demanda e a solução que para ela preconizava. Tem o seguinte teor a resposta:
1 - A recorrente requereu (em 27/1/1999) a admissão de recurso para o Tribunal Constitucional com fundamento nas alíneas b) e g) do n. 1 do artigo 70° da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LTC);
2 - Por requerimento entrado nesse Tribunal em 03/03/00, respondendo a douto despacho de 17/2/00, respondeu quanto às dúvidas suscitadas quanto à inconstitucionalidade invocada quanto às normas dos artigos 31 ° da LPTA e 22° do CPT;
3 - Por fim, nas suas alegações de recurso de 19/9/00, fundamentou as inconstitucionalidades invocadas (quer a suscitada ao abrigo da alínea b) do artigo 70º n. 1, quer a suscitada ao abrigo da alínea g) do mesmo preceito);
4 - A inconstitucionalidade invocada ao abrigo da alínea g) do artigo 70°, n° 1 da LTC é a que resulta da aplicação pelo Acórdão Recorrido (Acórdão do STA datado de 25/2/1998) de norma anteriormente declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional. Com efeito, o Acórdão recorrido omitiu pronúncia quanto à invocada norma declarada inconstitucional por Acórdão n° 530/94 desse TC, publicado no DR I Série-A de 8/11/94, que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que se contém no n. 2 da Portaria n° 283/87. A recorrente juntou aos autos o Acórdão n. 677/94 que em processo idêntico aplicou a mencionada declaração de inconstitucionalidade. Pretensão que pelo presente recurso é o fim prosseguido pela recorrente. Em seguimento ao Acórdão Recorrido (Acórdão do STA de 25/2/98) a recorrente requereu (por requerimento de 1/4/1998) a reforma do mesmo, invocando novamente a inconstitucionalidade declarada pelo TC da norma contida no n. 2 da Portaria n° 283/87. Tendo em conta a referida inconstitucionalidade, esta gera a nulidade do acto recorrido, pelo que sempre poderia ser conhecida a todo o tempo. As nulidades são cognoscíveis a todo o tempo. E é a nulidade que a declaração de inconstitucionalidade gera. O STA veio a indeferir tal reforma, por Acórdão de 13/1/1999, negando-se a apreciar a inconstitucionalidade. Apesar da invocação da recorrente. Pelo exposto, quanto à invocada inconstitucionalidade ao abrigo da alínea g) do artigo 70° da Lei Orgânica desse STA, é forçoso conhecê-la no presente recurso, porque foi anteriormente suscitada, tendo o STA consecutivamente recusado-se a conhecê-la e como tal a decretar a nulidade do acto de liquidação recorrido. Dúvidas não há que ocorreu a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma contida no n. 2 da Portaria 283/87, de 7/4. Inconstitucionalidade que o recorrente invocou no processo e que o STA se recusou a julgar verificada. Apesar das insistências processuais nesse sentido, da recorrente.
5- A inconstitucionalidade invocada ao abrigo da alínea b) do artigo 70°, n. 1 da Lei 13-A/98 é a que resulta da aplicação pelo Acórdão Recorrido (Acórdão do STA datado de 25/2/1998) de norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo. E foram as normas contidas nos artigos 31º da LPTA e 22° do CPT cuja inconstitucionalidade o recorrente invocou, por atentarem contra o princípio constitucional do artigo 268° da Constituição, na interpretação que as instâncias recorridas lhe deram. E referimo-nos não só ao Tribunal Tributário de 2ª Instância, mas também ao STA. E não podemos deixar de discordar com o douto despacho a que se responde quando se afirma que o STA no acórdão recorrido não aplicou a norma constante do artigo
22° do CPT, nem a norma ínsita no artigo 31º. O Acórdão recorrido (datado de 25/2/98) considera injustificada a argumentação da recorrente quanto ao artigo 31º da LPTA (págs. 5 e 6 do acórdão recorrido) e
22° do CPT que é a norma idêntica, mas na lei tributária. Secundando integralmente o decidido pela instância de recurso anterior considera que tais normas foram bem aplicadas pelo Tribunal Tributário de 2ª Instância e que por isso não merece a decisão recorrida qualquer censura. Mais julga que, apesar do invocado pela recorrente, não se verifica qualquer inconstitucionalidade no artigo 31º da LPTA na interpretação que foi feita pelo Acórdão do TT de 2ª Instância. Pelo exposto, é patente que o Acórdão recorrido aplicou as normas dos artigos
31° da LPTA e o idêntico em sede tributária artigo 22° do CPT, não os julgando inconstitucionais, na interpretação que lhes foi dada pelo Acórdão do Tribunal Tributário de 2ª Instância, decisão que o STA confirmou inteiramente.
6 - Em conclusão, salvo o muito respeito devido ao despacho a que esta pronúncia responde, devem ser apreciadas as inconstitucionalidades suscitadas pela recorrente, nos diversos requerimentos anteriormente citados, ao abrigo das alíneas b) e g) do n. 1 do artigo 70° LTC.
2.2. Cumpre começar por conhecer desta matéria.
No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, a recorrente invocou as alíneas b) e g) do n.1 do artigo 70º da LTC.
A citada alínea g) permite o recurso de decisões “que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional”. Ora, parece evidente que o acórdão recorrido não aplicou qualquer norma já julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional.
É certo que a recorrente pretendeu, em certa fase, que a 2ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo decidisse a questão mediante a declaração de inconstitucionalidade de norma já analisada neste Tribunal Constitucional. Mas é também certo – aliás, manifestamente certo – que aquele Tribunal se recusou a fazer uso da norma em causa ou da correspondente declaração de inconstitucionalidade, conforme resulta do seguinte passo do acórdão de fls.
170:
“...Pretende a reclamante que no acórdão de fls. 137 se incorreu em tal nulidade por não se ter conhecido da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 2 da Portaria 283/87, de 7 de Abril, declarada pelo acórdão do TC n. 530/94, publicado pelo DR, I Série-A de 8.11.94, norma esta que está em causa na liquidação dos DU, imposições aduaneiras que, conjuntamente com outros tributos, foram liquidados à ora reclamante. Porém, como bem salienta o Ex.mo Magistrado do Mº Pº junto deste Supremo Tribunal Administrativo no seu parecer, nas alegações e conclusões do recurso a
única inconstitucionalidade invocada pela recorrente respeitava à norma do artigo 31º da LPTA (com correspondência ao artigo 22º da CPT), e essa foi objecto de apreciação no acórdão, nenhuma referência se encontrando no recurso à inconstitucionalidade agora invocada, relativamente à norma do n.º 2 da Portaria n.º 283/87 de 7 de Abril.”
É, pois, de afastar, por manifesta impropriedade, o conhecimento do recurso fundado na dita alínea g) do n.1 do artigo 70º da LPTA.
2.3. Subsiste, no entanto, o invocado recurso previsto na alínea b) do n.1 do artigo 70º da LTC, este a interpor de decisões “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”. A formulação legal impõe que, em causa, esteja a inconstitucionalidade de uma norma efectivamente aplicada na decisão recorrida; se a norma impugnada não tiver sido aplicada na decisão sob recurso, não poderá o Tribunal Constitucional conhecer do respectivo objecto (Acórdão 367/94, DR, II série de 07SET94).
É o que se passa quanto à norma do artigo 22º do Código de Processo Tributário que manifestamente não foi aplicada na decisão recorrida. O recurso de inconstitucionalidade interposto da decisão recorrida não pode, portanto, ter como objecto esta norma.
2.4. Pretende ainda a recorrente que deva “ser julgada inconstitucional a norma contida no artigo 31º da LPTA quando interpretada em sentido restrito, isto é, como apenas exigindo a identificação dos actos e não já os seus fundamentos - os quais devem apresentar o itinerário cognoscitivo e valorativo do autor do acto, sob pena de se considerar inexistente ou insuficiente, e ser transmitidos de modo a ser completa e adequadamente compreendidos pelo destinatário”. Face a este pedido, impõe-se previamente apurar se o Tribunal recorrido interpretou e aplicou a norma do artigo 31º da LPTA no aludido “sentido estrito”, ou seja,
“como apenas exigindo a identificação dos actos e não já os seus fundamentos”.
O citado artigo 31º da LPTA, subordinado à epígrafe “notificação ou publicação insuficiente” tem a seguinte redacção:
1. Se a notificação ou publicação não contiver a fundamentação integral da decisão e as demais indicações a que se refere o artigo anterior, pode o interessado, dentro de um mês, requerer a notificação das que tenham sido omitidas ou a passagem de certidão que as contenha.
2. Se o interessado usar da faculdade concedida no número antecedente, o prazo para o recurso conta-se a partir da notificação ou da entrega da certidão que tenha sido requerida.
3. A apresentação do requerimento previsto no número 1 pode ser provada por duplicado do mesmo, com o registo da entrada no serviço que promoveu a publicação ou a notificação, ou por outro documento autêntico.
Ora, sobre o assunto, isto é, sobre a interpretação e aplicação da norma, diz-se no acórdão recorrido o seguinte:
“...o recurso à faculdade concedida no n.º 1 daquele artigo 31º, por parte da ora recorrente, não se justificava, pelas razões expendidas no acórdão recorrido e que aqui se subscrevem, razões essas que aquela não logra invalidar no presente recurso. Na verdade, a certidão por aquela obtida mais não sendo que mera fotocópia do D.U., conforme se deu por assente no acórdão, documento em que a recorrente interveio, nada veio a acrescentar ao que já era do seu conhecimento e que lhe permitia recorrer à via contenciosa assacando ao acto, eventualmente, vício de forma, por falta de fundamentação, ilegalidade essa, aliás, que a recorrente não chegou a invocar, como também se refere no acórdão, quando deduziu o recurso contencioso após obtenção da mencionada certidão. Conforme se vê na alegação do recurso, o que a recorrente pretendia era que o D.U. contivesse a indicação das razões da tributação da mercadoria importada com direitos niveladores, que teria sido suspensa e novamente reposta, situação da qual discordava, ou seja pretendia obter, não a fundamentação do acto tal como fora praticado, mas informações posteriores da Administração sobre as razões determinantes da referida tributação. Ora, é manifesto que tal pretensão não podia ser satisfeita , ao abrigo do artigo 31º da LPTA, por exorbitar das finalidades dessa norma, que visa, apenas, dar ao administrado a possibilidade de tornar efectiva a injunção constante do antecedente artigo 30º, quanto ao conteúdo da notificação ou publicação do acto.”
Este passo do acórdão recorrido demonstra abundantemente que a norma aplicada pela 2ª Secção Supremo Tribunal Administrativo não é aquela que a recorrente pretende aqui sindicar. Na verdade, nada se diz a propósito da desnecessidade da identificação dos fundamentos do acto recorrido – inciso onde a recorrente detecta a alegada inconstitucionalidade – pois o que se disse é que, no caso concreto e mercê das especificidades próprias do procedimento aduaneiro, a certidão obtida mediante o recurso ao artigo 31º da LPTA nada mais era do que uma fotocópia do documento já em poder da recorrente, nenhuma outra menção útil era possível que contivesse que acrescesse ao conhecimento do acto por parte da interessada. O que efectivamente a recorrente pretendia, seria conhecer outros elementos que os documentos, na sua literalidade, não mencionavam.
Em suma, na decisão recorrida nada se afirmou quanto à dita interpretação restritiva do artigo 31º da LPTA, norma que a recorrente pretende aqui sindicar.
Por esta razão se tem que admitir que a norma impugnada não foi efectivamente aplicada na decisão recorrida.
3. Em consequência, decide-se não conhecer do objecto do recurso, uma vez que não ocorrem os respectivos pressupostos.
Custas pela Recorrente; taxa de justiça: 8 UC.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Carlos Pamplona de Oliveira Maria Helena Brito Artur Maurício Rui Moura Ramos Luís Nunes de Almeida