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Proc. nº 519/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. O Ministério Público interpõe recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão do Tribunal Judicial de Loulé, nos autos de recurso de contra-ordenação que se pronunciou pela inconstitucionalidade do artigo 2º do Despacho nº 521/98 do Ministro da Administração Interna, por violação dos artigos 18º, 32º, 205º e 168º, nº 1, alínea d), da Constituição, desaplicando assim a referida norma.
2. O 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Loulé apreciou em recurso a decisão proferida pela DGV de Faro que aplicou a A. a sanção de inibição de conduzir por 60 dias, por infracção ao artigo 81º, nº 1, do Código da Estrada. O Tribunal decidiu “não ser aplicável o disposto no art. 2º do despacho do Ministro da Administração Interna nº 521/98 por violação dos arts. 18º, 32º,
205º e 168º, nº 1, al. d) da Constituição da República Portuguesa” concomitantemente “por falta de competência da DGV para aplicar sanção acessória prevista no art. 139º do CE”. O Tribunal decidiu não manter a decisão recorrida. No que se refere à questão de constitucionalidade pronunciou-se a sentença do seguinte modo:
O CE em vigor consagra, como sanção de aplicação acessória à coima pela prática de contra-ordenação grave e muito grave, a possibilidade de o infractor ser condenado em inibição da faculdade de conduzir por tempo determinado (artº
139°); A aplicação da referida sanção está condicionada aos critérios de ponderação, na respectiva graduação, resultantes do artº 140° do mesmo diploma legal; A sua moldura concreta varia, por isso, entre o limite mínimo imposto pelas razões de prevenção e o limite máximo da culpa do agente; A sua aplicação imbrica no princípio da restrição mínima dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos; Tal sanção tem uma natureza predominantemente criminal, quando aplicada após o pagamento voluntário, em processo administrativo, da coima pelo infractor; Compete, em exclusivo, aos Tribunais a aplicação de medidas de natureza criminal; Além disto, a lei de Autorização legislativa nº 97/97 de 23.08 não autoriza o Governo a atribuir competência à DGV e Governos Civis para a aplicação da referida sanção; Com referência ao despacho ministerial n° 521/98 do Ministro da Administração Interna, que vem atribuir às referidas entidades a competência que a lei lhes não atribui, vêm a DGV e Governos Civis a aplicar aos infractores do CE a sanção de inibição da faculdade de conduzir (artº 2°); Ainda que se entendesse, e não se entende, que o referido despacho está ainda em vigor, tal atribuição de competências sempre violaria a Constituição por referência aos seus arts. 18°, 32°, 205° e 168°, n° 1, al. d); Assim, importa não aplicar o citado artº 2° e, com isso, considerá-lo inconstitucional; Como consequência, atento o vazio legal deixado por essa não aplicação, impõe-se concluir pela falta de competência/legitimidade da DGV/Governo Civil para aplicarem a sanção de inibição da faculdade de conduzir e, por fim, conceder provimento ao recurso, absolvendo o recorrente.
3. Interposto recurso pelo Ministério Público ao abrigo do artigo
70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, e admitido tal recurso, o Ministério Público veio apresentar alegações que concluiu nos seguintes termos:
1° - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de sistema punitivo e de processo contra-ordenacional apenas abrange o respectivo regime geral.
2° - A Lei de autorização legislativa n° 97/97 , de 23 de Agosto, ao abrigo do qual o Governo alterou o Código da Estrada, através do Decreto-Lei n° 2/98, de 3 de Janeiro, nada inova relativamente à atribuição de competência às autoridades administrativas para aplicar sanções contra-ordenacionais.
3° - Não se inclui no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a definição das entidades administrativas com competência para sancionarem determinadas categorias de infracções contraordenacionais, designadamente as estradais.
4° - A sanção acessória de inibição temporária de conduzir estabelecida no Código da Estrada não tem natureza criminal, estando assegurado aos arguidos, incluindo nos casos de pagamento voluntário da coima, os direitos de audiência e defesa, com respeito pelo princípio do contraditório.
5° - Termos em que, na ausência de violação de normas ou princípios constitucionais, deverá proceder o presente recurso.
4. Por parte do recorrido não foi apresentada qualquer alegação dentro do prazo legal.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
5. São colocadas duas questões no presente recurso. A questão da eventual inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Despacho do Ministro da Administração Interna nº 521/98 (D.R., II Série, nº 7, de 9 de Janeiro), que implicaria a falta de competência da Direcção-Geral de Viação e do Governador Civil para aplicar a sanção acessória de inibição de conduzir, na medida em que se entenda, tal como a decisão recorrida, que a Lei de autorização legislativa nº 97/97, de 23 de Agosto, ao abrigo da qual o Governo alterou o Código da Estrada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, não conferiria legitimidade ao Governo para legislar sobre a competência em processos de contra-ordenação da DGV ou dos Governos Civis nem sobre a competência daquelas entidades para aplicarem sanções de inibição da licença de condução. Estaria, assim, em causa o artigo 168º, alínea d), da Constituição. A questão da eventual inconstitucionalidade do preceito anterior pelo facto de a sanção acessória de inibição de conduzir (prevista no artigo 139º do Código da Estrada) ter carácter penal e não poder, por isso, ser aplicada por uma entidade administrativa, mas somente pelos tribunais. Estariam, assim, em causa, os artigos 32º e 205º da Constituição.
6. Começará por se tratar desta última questão, já que uma eventual inconstitucionalidade prejudicaria qualquer juízo (de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade) sobre a norma em crise. Tem a sanção acessória de inibição de conduzir a natureza penal que a decisão recorrida lhe atribui, de modo a ter sido extravasada a competência possível da autoridade administrativa no direito de mera ordenação social? O argumento fundamental utilizado na decisão recorrida para concluir pela inconstitucionalidade da norma atributiva de competência à DGV é o facto de a aplicação de tal sanção “imbricar no princípio da restrição mínima dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos”, quando se der após o pagamento voluntário, em processo administrativo, da coima pelo infractor. A este argumento acresce um argumento indirecto derivado do condicionamento desta sanção pelos critérios de ponderação, na respectiva graduação, resultantes do artigo 140º do Código da Estrada. E, finalmente, é ponto essencial subjacente à fundamentação da decisão recorrida o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 337/86, de 9 de Dezembro, segundo o qual nos autos de contravenção estradais haveria uma diminuição de garantias de defesa injustificada em face do artigo 32º, nºs 1, 3 e 5, da Constituição. Seria, assim, o princípio das garantias de defesa que, indirectamente, também justificaria a natureza criminal da sanção. Este acervo de razões para propugnar a natureza penal desta sanção não é, porém, sufragável. É certo, com efeito, que deriva do princípio da necessidade da pena que o direito penal deve ser chamado a intervir quando são previstas sanções altamente restritivas da liberdade não podendo em geral o direito de mera ordenação social prever sanções privativas da liberdade. Nesse sentido, e apenas nesse, se pode falar de sanções penais a se a propósito da distinção entre o direito penal e o direito de mera ordenação social. Mas uma tal exigência surge na decorrência de um princípio de proporcionalidade entre a natureza do ilícito e um tal tipo de sanções, isto é, da exigência de que sanções altamente restritivas de direitos fundamentais só possam ser atribuídas em função de ilícitos especialmente graves. Porém, o problema suscitado no caso concreto é o de saber se sanções acessórias restritivas de direitos como o que está em causa devem estar totalmente excluídas do direito de mera ordenação social, pressupondo sempre a qualificação como sanção criminal e a decorrente aplicação do processo penal. A resposta a tal questão é negativa. Podem existir sanções restritivas de direitos de alguma intensidade que não atingem, no entanto, a intensidade que passaria a justificar a intervenção do processo penal sendo também adequadas à natureza menos grave (ou até qualitativamente diversa) do direito sancionatório público em questão. Não quer isto dizer que tais sanções, como a inibição de conduzir por um certo lapso de tempo, não possam ser utilizadas no direito penal, sobretudo se atingirem uma certa medida, como penas principais. Não há, quanto a todas as sanções restritivas de direitos, uma exclusiva pertença das mesmas a um certo ramo de direito. O Direito Penal pode utilizar sanções típicas do direito de mera ordenação social, o inverso é que não seria constitucionalmente possível (por exemplo, com a pena de prisão). A inibição de conduzir, sendo uma sanção restritiva de um direito, atinge apenas o direito derivado de uma licença para conduzir que é outorgada a quem demonstrou possuir a qualificação técnica e psicológica adequada para exercer uma actividade que pode acarretar perigos graves para direitos fundamentais de outras pessoas. Não há, naturalmente, uma genérica liberdade de conduzir, mas apenas uma permissão, em certos termos, de uma actividade perigosa e um direito dependente de uma licença. A restrição de direitos aqui em causa não atinge um direito originário, mas o direito derivado da verificação de certas condições. Ora, nestes termos, quando a gravidade de certas infracções ao Código da Estrada justificar um juízo (em certa medida técnico, em certa medida de ponderação preventiva) de que o autor das mesmas não deve manter a licença de condução, não viola qualquer princípio constitucional que à entidade administrativa que deva ter uma específica competência para avaliar tal tipo de situação e os perigos em causa, sendo responsável pela segurança nas estradas, seja concedida a possibilidade de realizar de imediato um juízo sobre a possibilidade de o autor manter a licença de condução, havendo, ainda, aliás, a possibilidade de recurso para os tribunais. Em tal tipo de sanção, de cariz acentuadamente preventivo e protectivo de direitos, nem se atinge uma desporporcionada relação com o ilícito em causa nem a Administração extravasa materialmente a sua área específica de actuação nem existe uma intervenção restritiva de direitos fundamentais que apenas pudesse decorrer de ilícitos com gravidade para serem qualificados como crimes. Com efeito, o ponto de vista da decisão recorrida pressupõe uma de duas teses não necessárias na lógica do sistema constitucional: a de que sanções como a inibição de conduzir por tempo determinado deveriam pressupor factos com indiscutível merecimento penal, e que à luz do princípio da necessidade da pena deveriam ser qualificados como crimes ou a de que os factos que justificam tal sanção, independentemente do merecimento penal intrínseco, deveriam ser considerados crimes por força da aplicação de tais sanções, mesmo que segundo o princípio da necessidade da pena tais factos devessem constar do direito de mera ordenação social. Tais teses impediriam, na prática, a descriminalização de infracções deste tipo e a sua remissão para o âmbito do direito de mera ordenação social, inconstitucionalizando um vastíssimo sector desse ilícito e levariam, contra o princípio da necessidade da pena, à hipertrofia do direito penal. Ora, nem o princípio da necessidade da pena nem as garantias de defesa impõem a qualificação como ilícito criminal dos pressupostos deste tipo de sanção. Por um lado, seria uma inversão do princípio da necessidade da pena derivar, sem mais, a qualificação como crime da necessidade de impor uma determinada sanção, não partindo, antes, da gravidade do ilícito como justificação da sanção com natureza penal. Por outro lado, não derivaria do princípio da necessidade da pena, nomeadamente de uma lógica de adequação e proporcionalidade, a impossibilidade de a sanção de inibição de conduzir ser decorrente de infracções ao Código da Estrada do tipo das que estão em causa neste processo. É manifesta a não inadequação de tais sanções àqueles ilícitos. Há, assim, um conjunto consistente de razões que permite concluir que não viola a Constituição que a aplicação da sanção de inibição de conduzir por tempo determinado seja de competência da autoridade administrativa estando subordinada ao regime do direito de mera ordenação social. Tais razões são, em síntese, a não inadequação e a não desproporcionalidade de tais sanções ao ilícito a que correspondem e o facto de atingirem direitos cujo exercício depende de condições que cabe à Administração verificar. Também o facto de a coima ter sido voluntariamente paga não altera o quadro anterior. O pagamento voluntário da coima realiza apenas o momento fundamentalmente retributivo da punição, mas não esgota nem prejudica finalidades punitivas de cariz preventivo do direito de mera ordenação social justificadas pelo ilícito em causa e concretizadas com a inibição de conduzir. Finalmente, o Acórdão nº 337/86 não constitui qualquer precedente para o caso sub judicio na medida em que se referia a uma realidade distinta – a das contravenções – em que o que estava em causa era a baixa intensidade das garantias de defesa em confronto com o próprio direito de mera ordenação social. Nesse caso, o apelo às garantias de defesa do direito processual penal era o
único modo de permitir uma adequada defesa de direitos no sistema então vigente.
7. Quanto à questão suscitada acerca da inconstitucionalidade orgânica do artigo 2º do despacho atributivo de competência para aplicação das sanções acessórias à DGV há que considerar o seguinte:
1º O despacho ministerial limita-se a aplicar o regime geral do ilícito de mera ordenação social e do respectivo processo consagrado no Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, por força da norma remissiva do artigo 152º do Código da Estrada. Nos termos de tal regime, dispõe o artigo 34º que “no silêncio da lei serão competentes os serviços designados pelo membro do Governo responsável pela tutela dos interesses que a contra-ordenação visa defender ou promover”.
2º A lei de autorização legislativa nº 97/97, de 23 de Agosto, não tinha de autorizar o Governo a atribuir competência a qualquer entidade para aplicação da sanção de inibição de conduzir, estando em causa manter o regime previsto no artigo 34º e não criar um regime excepcional. Assim, em geral, sobre a não relevância da falta de previsão nas leis de autorização legislativa de matérias não inovatórias, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 45/2002, D.R., II Série, nº 287, de 12 de Dezembro de 2002. Deste modo, impõe-se a conclusão de que a matéria em causa está plenamente integrada no regime geral do direito de mera ordenação social, não estando, por isso, de qualquer modo, sujeita à reserva de lei, nos termos do artigo 168º, alínea d), da Constituição.
8. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional não considera que as duas questões suscitadas conduzam a um juízo de inconstitucionalidade sobre a norma em crise.
III Decisão
9. O Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 2º do despacho do Ministro da Administração Interna nº 521/98, de 9 de Janeiro, nas dimensões suscitadas, determinando, consequentemente, a reforma da sentença recorrida de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos