Imprimir acórdão
Processo n.º 612/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Os recorrentes A. e B. vêm requerer, nos termos do artigo 669.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo
69.º da Lei do Tribunal Constitucional, a reforma do Acórdão n.º 4/2004, que indeferiu reclamação de decisão sumária de não conhecimento do recurso por eles interposto do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Maio de
2003, que, por seu turno, havia negado provimento ao recurso do despacho do juiz do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, de 9 de Julho de 2002, que julgara deserto, por não apresentação tempestiva das alegações, recurso jurisdicional anteriormente admitido.
O pedido de reforma tem a seguinte fundamentação:
“1. Nos termos do artigo 669.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, «É ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando: a) tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração».
2. Entendem os Recorrentes ter-se verificado manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos alegados, constando do processo elementos que determinam decisão diversa da proferida.
Senão vejamos,
3. Refere-se no Acórdão em análise que os Recorrentes interpuseram recurso do despacho, de 9 de Julho de 2002, para o Supremo Tribunal Administrativo, «suscitando nas respectivas alegações (fls. 957 a 994), além do mais, a questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo
150.º, n.º 2, alínea c), do CPC, segundo a qual vale como momento da prática do acto o da efectiva e total recepção pelo tribunal do documento remetido por telecópia» (cf. ponto 2.1, § 8), pág. 23 do Acórdão; sublinhado e realce nosso de agora).
4. Prosseguem os Meritíssimos Juízes Conselheiros, referindo-se ao fundamento decisivo do acórdão recorrido, que o mesmo assentou na
«consideração de que “para que possa falar-se de apresentação atempada de alegações (por qualquer das formas legalmente previstas, incluindo por fax ou telecópia), forçoso é que haja alegações, ou seja, que se apresente ou transmita integralmente o referido articulado, não bastando um esboço ou ensaio inacabado dessa apresentação ou transmissão”» (cf. ponto 2.2, 2.º parágrafo, pág. 24 do Acórdão; sublinhado e realce nosso).
5. Como bem se afirma no Acórdão proferido em conferência, «Há, com efeito, que distinguir entre terminus da expedição via telecópia e integralidade da transmissão da peça processual» (cf. ponto 2.2, 3.º parágrafo, pág. 24 do Acórdão; sublinhado no original).
6. Facto é que – e daí a presente reforma – desde logo os Recorrentes anteciparam tal distinção.
7. Os Recorrentes não se limitaram a suscitar a questão da inconstitucionalidade da interpretação da norma do artigo 150.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil (segundo a qual vale como momento da prática do acto o da recepção pelo tribunal do documento remetido por telecópia).
8. Os Recorrentes foram mais longe, suscitando a questão da inconstitucionalidade da interpretação de tal preceito legal, segundo a qual a recepção tem de ser efectiva e total; por outras palavras, que se transmita integralmente o documento remetido por telecópia!
[não existe n.º 9.]
10. Ou seja, precisamente a interpretação normativa, aplicada como ratio decidendi pelo acórdão recorrido, «segundo a qual não vale como apresentação de alegações a expedição por telecópia de apenas uma parte dessa peça processual».
11. Sem esquecermos, como bem se refere no Acórdão proferido em conferência, que «o que é importante é a continuidade do esforço de expedição, que permita atribuir unidade ao acto de comunicação entre a parte e o tribunal»
(cf. ponto 2.2, 1.º parágrafo, pág. 24 do Acórdão),
12. O que manifestamente os Recorrentes fizeram horas depois e logo que lhes foi possível, mediante a entrega do original no dia 18 de Junho de 2002 no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (cf. ponto 2.1, § 3, pág. 21 do Acórdão).
13. Em conclusão, temos que o acórdão recorrido (i) não fez aplicação de parte da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelos Recorrentes, segundo a qual relevante para a determinação do momento da prática do acto, expedido por telecópia, é o termo dessa expedição, mas,
14. (ii) Aplicou parte da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelos Recorrentes, segundo a qual vale como momento da prática do acto o da efectiva e total recepção pelo tribunal do documento remetido por telecópia.
15. Deve, assim, a presente reforma ser deferida e a final o recurso admitido.”
Notificada deste pedido de reforma, a recorrida Ministra de Estado e das Finanças apresentou a seguinte resposta:
“1 – Vêm os requerentes, acima referenciados, pedir a reforma do acórdão n.° 4/2004 desse Venerando Tribunal Constitucional, através do qual foi indeferida a reclamação, então apresentada, da decisão sumária de 16 de Outubro de 2003, que decidiu, ao abrigo do n.° 1 do artigo 78.°-A da LTC, não conhecer do recurso.
2 – Alegam para tanto os recorrentes «ter-se verificado manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos alegados, constando do processo elementos que determinam decisão diversa da proferida». E, em abono da sua tese, sustentam que o acórdão recorrido «não fez aplicação de parte da interpretação normativa arguida de inconstitucional pelos recorrentes segundo a qual, relevante para a determinação do momento da prática do acto expedido por telecópia é o termo dessa expedição mas aplicou parte da interpretação normativa arguida de inconstitucional segundo a qual vale como momento da prática do acto o da efectiva e total recepção pelo Tribunal do documento remetido por telecópia»,
3 – Com isto, dificilmente os recorrentes se poderiam ter expressado dizendo menos e sem qualquer fundamento válido para a pretendida reforma do douto acórdão aqui em causa. Com efeito, por muito que isso custe aos recorrentes, o facto é que não há lugar no caso à pretendida reforma do acórdão porquanto não existe no mesmo qualquer lapso que seja manifesto quer na determinação das normas aplicáveis quer no que toca à qualificação jurídica dos factos. E, em tais circunstâncias, não se verificam os requisitos de que a lei (artigo 669.º, n.° 2, do Código de Processo Civil) faz depender a pretendida reforma.
4 – Na verdade, conforme se refere no douto acórdão reformando, a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelos recorrentes, nas alegações de recurso então apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo, não foi aplicada no acórdão recorrido sendo que a interpretação normativa efectivamente assumida por este acórdão não foi arguida de inconstitucional, podendo sê-lo, durante o processo. E ao afirmar-se que tal interpretação não foi aplicada quer dizer-se seguramente que o não foi na sua totalidade e não em parte como ora pretendem afirmar os recorrentes. Estes dizem que o Tribunal recorrido seguiu a interpretação normativa arguida de inconstitucional segundo a qual vale como momento da prática do acto o da efectiva e total recepção pelo Tribunal.
5 – Mas isso não corresponde à verdade, uma vez que tal interpretação não só não foi aplicada pelo Supremo Tribunal Administrativo como foi explicitamente rejeitada. É que, para efeito de cômputo dos prazos, o Tribunal recorrido entende ser a data da «expedição» a do início dessa mesma expedição caso a mesma não coincida com a do seu termo.
6 – Só que o problema dos recorrentes foi o de não terem logrado provar que o início da transmissão da telecópia das suas alegações ocorrera ainda no dia 17 de Junho de 2002.
7 – Mas, ainda que assim tivesse ocorrido – e não foi o caso – sempre teriam de considerar-se como não «expedidas» tais alegações porquanto, das 233 páginas que constituem as «alegações» dos recorrentes, apenas foram transmitidas, por fax, 3 dessas páginas.
8 – Bem andou, assim, o douto acórdão ora reformando ao considerar não ser admissível o presente recurso de constitucionalidade, desde logo «não tendo sido aplicada a norma arguida de inconstitucional e não tendo sido arguida de inconstitucional a norma efectivamente aplicada».
9 – Como quer que seja, o simples facto de os recorrentes não terem alegado, no seu pedido de reforma, a violação de lei expressa é de per si suficiente para o indeferimento da pretendida reforma do acórdão.
10 – É que, não estando em causa quaisquer documentos ou sequer a qualificação jurídica dos factos, só ocorreria manifesto lapso do juiz, na determinação da norma aplicável, em caso de violação de lei expressa. O que também não vem alegado.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável deve indeferir-se totalmente o pedido de reforma do douto acórdão recorrido.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. O possibilidade de ser pedida a reforma da sentença, consagrada no artigo 669.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na redacção dada pela reforma de 1995/1996 (extensível aos acórdãos por força dos artigos 716.º e
732.º do mesmo Código), quando tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou quando constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz, por lapso manifesto, não haja tomado em consideração, assume carácter excepcional, já que representa um desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (artigo
666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Por isso, tem sido entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais comuns (cf., a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Abril de 2001, processo n.º
2862/00, que “a mesma só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-lo levado ao desacerto”. Como refere Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, págs. 444 e 445), “o erro manifesto de julgamento de questões de direito”, contemplado na alínea a), “pressupõe obviamente, para além do seu carácter evidente, patente e virtualmente incontrovertível, que o juiz se não haja expressamente pronunciado sobre a questão a dirimir, analisando e fundamentando a (errónea) solução jurídica que acabou por adoptar (v. g., aplicou-se norma inquestionável e expressamente revogada, por o julgador se não haver apercebido atempadamente da revogação)”, e “o erro manifesto na apreciação das provas”, previsto na alínea b), traduz-se
“no esquecimento de um elemento que, só por si, implicava decisão diversa da proferida (v. g., o juiz omitiu a consideração de um documento, constante dos autos e dotado de força probatória plena, que só por si era bastante para deitar por terra a decisão proferida)”. Só nestas situações excepcionais é que o legislador entendeu, tendo especialmente em vista os casos em que a decisão proferida (e inquinada por erro manifesto de julgamento) não admite recurso ordinário, que a realização da justiça material justificava o sacrifício do princípio da imutabilidade das decisões.
No presente caso, não padece o acórdão impugnado de qualquer “lapso manifesto” justificador da sua reforma, nem sequer – adiante-se
– de qualquer lapso.
O referido acórdão salientou a necessidade de se distinguir entre terminus da expedição via telecópia e integralidade da transmissão da peça processual (no caso, as alegações do recurso jurisdicional), e o que nele se reconheceu, corroborando o afirmado na decisão sumária reclamada, foi que “a (única) questão de inconstitucionalidade suscitada naquelas alegações [alegações dos recorrentes para o Supremo Tribunal Administrativo] foi relativa à «interpretação da norma que se extrai do artigo
150.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, segundo a qual vale como momento da prática do acto o da efectiva e total recepção [do documento remetido por telecópia] pelo tribunal» (cf. conclusão 7.ª), isto é, o entendimento segundo o qual a data da recepção de documento remetido por telecópia não é a data do início da transmissão, mas a data da sua conclusão, e, assim, um documento cujo envio se iniciou antes das 24h00 do dia 17 de Junho de 2002 mas só se concluiu depois das 0h00 da subsequente dia 18, considera-se apresentada neste último dia” (sublinhado agora acrescentado). E mais se constatou não ter sido essa interpretação normativa (a de que relevante para a determinação do momento da prática do acto expedido por telecópia é o termo dessa expedição) acolhida – antes expressamente rejeitada – pelo acórdão recorrido, acrescendo, por outro lado, que, quanto à interpretação normativa nele aplicada como ratio decidendi (a de que não vale como apresentação de alegações a expedição por telecópia de apenas uma parte dessa peça processual), nunca os recorrentes arguiram a sua inconstitucionalidade, apesar de ela nada ter de insólito, inesperado ou anormal.
No presente pedido de reforma do acórdão, os recorrentes, para além de continuarem a confundir as duas realidades distintas que são, por um lado, a completude da transmissão por telecópia do documento expedido por essa via, e, por outro lado, a insuficiência do documento assim transmitido para valer como alegações por não conter a integralidade desta peça processual, não conseguem indicar nenhuma passagem das suas alegações em que pretensamente teriam arguido a inconstitucionalidade da interpretação normativa aplicada no acórdão recorrido.
Não incorreu, assim, o acórdão impugnado em “manifesto lapso na qualificação jurídica dos factos alegados, constando do processo elementos que determinam decisão diversa da proferida”, contrariamente ao que lhe imputam os recorrentes.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir o presente pedido de reforma do Acórdão n.º 4/2004.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, por cada um deles.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos