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Procº nº 769/2003.
3ª Secção. Relator: Conselheiro Bravo Serra.
1. Tendo A., B., C. e D. deduzido embargos à execução para pagamento de quantia certa que contra si fora instaurada pelo Estado Português com base no nº 4 do Decreto-Lei nº 96/87, de 4 de Março, e que corre seus termos pelo 9º Juízo do Tribunal Cível da comarca de Lisboa, o Juiz daquele Juízo, por despacho de 15 de Julho de 2003, considerou o tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo “os executados da instância executiva” e declarando “a mesma extinta”.
Para tanto, recusou, por inconstitucionalidade orgânica, a aplicação da norma ínsita no artº 18º, nº 5, do Decreto-Lei nº 96/87, “na parte em que atribui competência executiva, exclusiva, aos tribunais do ‘foro da comarca de Lisboa’”.
Em síntese, o Juiz em causa entendeu:
- em face das disposições constantes do Decreto-Lei nº
96/87, que estabeleceu um «Programa Específico de Desenvolvimento à Agricultura Portuguesa», o contrato de onde emergiu a invocada dívida que deu origem à execução tem a natureza de contrato de natureza administrativa;
- sendo assim, a apreciação das matérias emergentes de tal tipo de contrato é da competência dos “tribunais da jurisdição administrativa”, por força do estatuído na alínea f) do nº 1 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela “Lei nº 13/02, de
19/2”, não tendo “manifestamente” os tribunais judiciais competência para aquela apreciação;
- muito embora no contrato dos autos constasse uma cláusula que estabelecia que a resolução dos diferendos que surgissem entre os contraentes era da exclusiva competência do tribunal da comarca de Lisboa, com expressa renúncia de qualquer outro, essa cláusula consubstanciava um pacto de competência em razão da matéria, o que era vedado pelo nº 1 do artº 100º do Código de Processo Civil;
- que o Decreto-Lei nº 96/87 foi emitido pelo Governo no uso da sua competência legislativa própria, regulando a norma vertida no nº 5 do seu artº 18º matéria da exclusiva competência parlamentar.
Do despacho de 15 de Julho de 2003 recorreu para o Tribunal Constitucional e ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, o Representante do Ministério Público junto do indicado Juízo, por seu intermédio pretendendo a apreciação do normativo que foi recusado aplicar.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou a entidade recorrente a por si apresentada com as seguintes «conclusões»:
“1° - Face ao quadro normativo vigente à data da edição do Decreto-Lei n° 96/87, de 4 de Março, as acções executivas, fundadas em certidão que constitua título executivo extrajudicial, apenas cabem no âmbito da competência da jurisdição administrativa e fiscal (exercida através dos tribunais tributários de 1ª instância) quando houver lei especial que outorgue a tal jurisdição a cobrança coerciva do débito de que é credor determinada pessoa colectiva pública, independentemente da sua natureza material.
2° - Deste modo, a norma desaplicada na decisão recorrida - ao atribuir aos juizes cíveis de Lisboa a competência material para a cobrança coerciva dos créditos do Estado, originados por apoios financeiros concedidos ao abrigo do PEDAP - não se configura como inovatória em relação ao referido quadro normativo, não sendo, consequentemente organicamente inconstitucional.
3°- Termos em que deverá proceder o presente recurso”.
Por seu turno, os recorridos não apresentaram alegação.
Cumpre decidir.
3. Não relevará, em face dos contornos do vertente caso,
a questão de saber se o contrato do qual alegadamente teria emergido a dívida cuja cobrança coerciva se intentou por intermédio da execução a que foram opostos os embargos assume, ou não, na realidade, a natureza de administrativa.
E isso, justamente, pela circunstância segundo a qual, como à frente se explicitará, ainda que se tratasse de um contrato com tal natureza, e do qual resultaram créditos cuja obtenção coerciva se pretendeu com a execução a que foram deduzidos os embargos, a solução a conferir quanto à questão de constitucionalidade seria a mesma que aquela que decorreria se nos postássemos perante um negócio jurídico de natureza não administrativa.
É que, como resulta do despacho impugnado, o mesmo, após ter entendido que o negócio em causa deveria ser perspectivado como um contrato de natureza administrativa, a apreciação jurisdicional dos diferendos dele emergentes incumbia à jurisdição administrativa, para tanto tendo invocado a disposição constante da alínea f) do nº 1 do artº 4º do Estatuto dos Tribunais e Fiscais aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Simplesmente, olvidou o despacho recorrido que aquela Lei, ao tempo em que foi lavrado tal despacho, nem sequer ainda tinha entrado em vigor.
Efectivamente, como resulta do seu artº 7º (redacção conferida pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro) a respectiva vigência só ocorreu em 1 de Janeiro de 2004.
3.1. Neste contexto, importa analisar se o normativo cuja desaplicação se efectivou no despacho sub iudicio se configura como inovatório relativamente às regras da competência material dos tribunais, matéria essa que, indiscutivelmente, ao tempo da edição do diploma em que tal normativo se insere, constituía [como aliás constitui hoje - cfr. alínea p) do nº 1 do artigo 165º da vigente versão da Lei Fundamental] reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, de harmonia com a alínea q) do nº1 do artigo 168º da Constituição, na versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro.
Estipulam, para o que ora releva, os números 2, 4 e 5 do referido artº 18º:
Artigo 18.º
(Reembolso)
1-
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2 - No caso de incumprimento pelos beneficiários, o gestor do programa notificará os infractores para, no prazo de 30 dias, restituírem os montantes já recebidos a título de ajudas, acrescidos de juros à taxa legal desde a data em que estas importâncias foram colocadas à sua disposição, sem prejuízo da aplicações de outras sanções previstas na lei.
3 -
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4 - Constituem títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo encarregado da execução do programa ou subprograma ao abrigo do qual a ajuda foi concedida.
5 - As execuções instauradas pelo Ministério Público ao abrigo deste artigo, para as quais é sempre competente o foro da comarca de Lisboa, iniciam-se pela penhora.
Ora, do regime constante do então (ou seja, à data da prolação do despacho recorrido) vigente Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril), não se pode concluir que a totalidade das acções executivas destinadas à obtenção de dívidas devidas ao Estado ou a outras pessoas colectivas públicas, fundadas em título executivo extrajudicial - certidão de dívida emitida pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas -, seja da competência dos tribunais administrativos ou fiscais.
Na verdade, e talqualmente assinala a entidade recorrente na sua alegação, da conjugação das normas vertidas na alínea c) do nº
1 do artº 62º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [na redacção anterior à conferida pelo Decreto-Lei nº 229/96, de 29 de Novembro, que é a que releva, atenta a data da edição do diploma que se incorpora a norma em apreço, sendo que, de todo o modo, mesmo depois daquela redacção é o mesmo o sentido da alínea o) do nº 1 do citado artº 62º] e no artº 144º do Código de Processo das Contribuições e Impostos [que era o vigente à data anteriormente referida, mantendo-se regra de conteúdo idêntico na alínea b) do nº 2 do artº 233º do Código de Processo Tributário], resulta que a competência atribuída aos tribunais tributários de 1ª instância para a cobrança coerciva de dívidas a pessoas de direito público está dependente da existência de uma lei que tal preveja, salvo quanto à cobrança das custas e multas aplicadas pelos tribunais administrativos e fiscais.
Sendo assim, e se não houver acto legislativo específico que preveja que a cobrança coerciva de determinados créditos detidos pelo Estado ou outras pessoas colectivas públicas é da competência dos tribunais fiscais (e isso independentemente da natureza material de onde emerge a obrigação que, por incumprida, deu origem ao crédito), resulta claro que essa competência incumbe aos tribunais judiciais, por força do artº 14º da então vigente Lei nº 38/87, de
23 de Dezembro - Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (e o mesmo se passa hoje com o nº 1 do artº 18º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro; cfr., na actual versão da Constituição, a parte final do nº 1 do artigo 211º) -, sendo certo que, em
1987 (data da edição do Decreto-Lei nº 96/87), não estavam os tribunais administrativos dotados, pelo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que então regia, de competência para a execução dos crédito titulados pelo Estado e outra pessoas colectivas públicas, fundadas no título executivo extrajudicial acima indicado, e ainda que decorrente de negócios jurídicos bilaterais de natureza administrativa.
Neste contexto, no particular da atribuição de competência aos tribunais da ordem dos tribunais judiciais, a norma em apreciação mais não faz do que, tautologicamente, reafirmar uma regra que já se surpreendia no ordenamento jurídico vigente à data da edição do Decreto-Lei nº
96/87, pelo que nada de inovatório foi por ela trazido (cfr., por entre outros, os Acórdãos deste Tribunal números 502/97 e 588/99, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente, 4 de Novembro de 1988 e 20 de Março de
2000, onde se concluiu que se uma norma atinente à competência material dos tribunais, norma essa emitida pelo Governo a descoberto de autorização parlamentar, não revestir carácter inovatório, não incorrerá ela no vício de inconstitucionalidade orgânica).
4. Em face do exposto, concedendo-se provimento ao recurso, determina-se a reforma do despacho impugnado de harmonia com o ora decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004
Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida