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Processo n.º 889/11
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A., S.A. e recorrida a Sociedade B., Ld.ª, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho daquele Tribunal de 26 de maio de 2010.
2. O recurso de constitucionalidade não foi admitido no tribunal recorrido, com fundamento em intempestividade. A recorrente reclamou então do despacho de não admissão para este Tribunal e através do Acórdão n.º 499/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) a reclamação foi deferida «no que respeita à questão de inconstitucionalidade das normas conjugadas dos artigos 700.º, n.º 3, e 774.º, n.º 2, do CPC, quando interpretadas no sentido de não ser admissível a reclamação para a conferência da decisão singular do relator, no tribunal da relação, que indefere liminarmente o recurso de revisão».
3. Através do Acórdão n.º 292/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o Tribunal decidiu negar provimento ao recurso interposto. Notificada deste Acórdão, a recorrente vem arguir a nulidade do mesmo e, subsidiariamente, requerer a sua reforma, com os fundamentos seguintes:
«Compete ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (LTC), julgar os recursos das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Tais recursos restringem-se, nos termos do artigo 71.º da mesma lei, à questão da inconstitucionalidade suscitada.
Não compete portanto, ao Tribunal Constitucional proceder a uma operação de subsunção jurídica, nem julgar da bondade da decisão judicial.
Sindicável, nos recursos de constitucionalidade como o dos autos e segundo a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, é apenas a eventual desconformidade com a Constituição da República Portuguesa (CRP) de uma determinada interpretação normativa (…).
Ora, como o devido respeito, que é muito, o acórdão 292/2012 procede a uma subsunção jurídica, julgando se ao caso se aplica a reclamação ou o recurso, indo muito para além da averiguação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º2 (n.º1 na redação atualmente em vigor) do CPC, segundo uma determinada interpretação normativa.
Acresce que a análise da conformidade daquelas normas com a CRP, segundo a interpretação que lhes foi dada na decisão singular do senhor Desembargador, ficou por fazer.
No caso dos autos, salvo melhor opinião e o devido respeito e sem prejuízo do disposto no artigo 79.º-C da LTC, cabia ao Tribunal Constitucional, nos termos do acórdão n.º 499/2011, proferido nos presentes autos, responder às seguintes perguntas:
As normas conjugadas dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º 2 (n.º 1 na redação atualmente em vigor) do CPC, quando interpretadas no sentido de não ser admissível a reclamação para a conferência da decisão singular do relator, no Tribunal da Relação, que indefere liminarmente o recurso de revisão, violam o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP?
As normas conjugadas dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º 2 (n.º 1 na redação atualmente em vigor) do CPC, quando interpretadas no sentido de não ser, admissível a reclamação para a conferência da decisão singular do relator, no Tribunal da Relação, que indefere liminarmente o recurso de revisão, violam o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º da CRP?
As normas conjugadas dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º 2 (n.º 1 na redação atualmente em vigor) do CPC, quando interpretadas no sentido de não ser admissível a reclamação para a conferência da decisão singular do relator, no Tribunal da Relação, que indefere liminarmente o recurso de revisão, violam o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da CRP?
Todas as considerações feitas no acórdão 292/2012 se reportam á necessidade de interpor recurso, em vez de reclamar, na perspetiva da lei processual civil.
Nestes termos, vai arguida a nulidade do acórdão n.º 292/2012, nos termos das duas vertentes da alínea d), do artigo 668.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 69.º da LTC.
Neste acórdão, o Tribunal Constitucional deixou de se pronunciar sobre questões que devia apreciar e conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento pois, ficou por apreciar a questão da conformidade com a CRP dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º 2 (n.º 1 na redação atualmente em vigor) do CPC, segundo a interpretação que lhes foi dada pelo relator do tribunal recorrido e, por outro lado, no acórdão n.º 292/2012, procedeu-se a uma subsunção jurídica, julgando se ao caso se aplica a reclamação ou o recurso, indo muito para além da averiguação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 700.º, n.º 3 e 774.º, n.º2 (n.º1 na redação atualmente em vigor) do CPC, segundo uma determinada interpretação normativa.
Subsidiariamente, para o caso de não ser atendida a presente arguição de nulidade, a recorrente vem requerer a reforma do acórdão n.º 292/2012, nos termos da alínea a) do n.º 2, do artigo 669.º do CPC, aplicável por força do disposto no artigo 69.º da LTC.
Isto porque é manifesto que existe um erro na determinação da norma aplicável e no enquadramento jurídico dos factos.
Com efeito, nunca a recorrente equacionou a questão da reclamação da decisão singular do Senhor desembargador relator, nos termos do artigo 688.º do CPC.
Não existe qualquer divergência na doutrina, nem na jurisprudência, nem qualquer ambiguidade legislativa, qualquer que seja a versão aplicável do CPC, quanto ao seguinte:
- O meio próprio de reagir quanto ao indeferimento liminar, por manifestamente infundado, de um recurso de revisão não é a reclamação para o tribunal superior, apresentada nos termos do artigo 688.º do CPC.
Nas palavras de Fernando Amâncio Ferreira (…), citando Alberto dos Reis e Palma Carlos, o despacho de indeferimento de um recurso de revisão obsta ao seu prosseguimento perante o tribunal que proferiu a decisão revidenda, em vez de impedir a interposição de recurso para tribunal superior.
Logo, não faria qualquer sentido reclamar, nos termos do artigo 688.º do CPC, para o tribunal superior, pois este não é o tribunal que seria competente para conhecer do recurso.
Porém, o acórdão 292/2012, alicerça toda a sua argumentação na análise do referido artigo 688.º, como a seguir se ilustra:
- O entendimento doutrinal maioritário vai no sentido de o despacho de indeferimento proferido ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 774.º do CPP, ser impugnável por meio de agravo, já que tal despacho corresponde ao de indeferimento liminar da petição inicial – artigos 234.º-A, n.º 2, 475.º, n.º 2, e 772. º, n. º 4, do CPP (...) Esta posição alicerça-se no disposto no n.º 1 do artigo 688.º, na redação anterior ao Decreto-Lei de 2007, nos termos do qual do despacho que não admita a apelação, a revista ou o agravo pode o recorrente reclamar para o presidente do tribunal que seria competente para conhecer do recurso (excluindo-se, portanto, a revisão) (…)
- Com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, aquele artigo 688.º n.º1, passou a dispor que do despacho que não admita o recurso (não apenas recurso ordinário) pode o recorrente reclamar para o tribunal que seria competente para dele conhecer. Passou a caber ao relator proferir decisão que o admita ou mantenha o despacho reclamado (artigo 688. º, n.º 4), sendo esta última reclamável para a conferência (artigo 700.º, n.º 3.
- Já depois das alterações de 2007, é que alguma doutrina passou a especificar que, quando o indeferimento do requerimento de interposição de recurso ocorra na relação, a admissibilidade de recurso depende de prévia reclamação para a conferência – artigo 700.º n.º 3, do CPC (...). Outros autores não fazem qualquer especificação daquele tipo, continuando a sustentar expressamente que o recorrente pode interpor recurso ordinário da decisão do indeferimento liminar, aplicando-se por analogia o n.º 2 do artigo 234.º-A, não sendo aplicável a reclamação do artigo 688.º, por a mesma ser utilizável apenas quanto a recursos ordinários ou por a rejeição do recurso de revisão não se adequar ao regime geral da reclamação contra o indeferimento, uma vez que este tipo de recurso se assemelha, ao menos num primeiro momento a uma ação autónoma.
Ora, a recorrente nunca reclamou para o tribunal superior, mas apenas e tão só para a conferência da própria Relação onde pendia (e pende) o recurso de revisão, como passo indispensável para a obtenção de um acórdão de que pudesse recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, como defendido com toda a clareza no acórdão n.º 499/2011, do Tribunal Constitucional, proferido nos presentes autos que é aliás, subscrito por um dos Senhores Conselheiros que igualmente assina o acórdão 292/2012, em nenhum dos casos com voto de vencido.
Existe portanto, um erro manifesto na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, entendidos como tal a sucessão de posições que a recorrente foi adotando no decurso do processo.
Termos em que, caso improceda a arguição de nulidade, deve ser reformado o acórdão recorrido».
5. Notificada do requerimento apresentado, a recorrida pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Das disposições conjugadas dos artigos 668.º, n.º 1, alínea d), e 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 69.º da LTC, a decisão judicial é nula quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
1.1. Nos presentes autos cabia ao Tribunal apreciar a conformidade constitucional «das normas conjugadas dos artigos 700.º, n.º 3, e 774.º, n.º 2, do CPC, quando interpretadas no sentido de não ser admissível a reclamação para a conferência da decisão singular do relator, no tribunal da relação, que indefere liminarmente o recurso de revisão», de acordo com a delimitação feita no Acórdão n.º 499/2011. Segundo a requerente, o Tribunal deixou de se pronunciar sobre tal, uma vez que todas as considerações feitas no acórdão se reportam à necessidade de interpor recurso. Sem razão.
O Tribunal entendeu que aquela interpretação normativa não limita o acesso a um outro grau de jurisdição, não violando por isso os artigos 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, uma vez que é recorrível a decisão judicial, proferida na relação, que indefira o requerimento de interposição de recurso de revisão. Isto é: como esta decisão é suscetível de impugnação (pela via do recurso), não há a invocada violação do princípio da proporcionalidade e do direito a uma tutela jurisdicional efetiva. Bem como a alegada violação do princípio da igualdade, parâmetro que o Tribunal teve presente, face ao que se dispõe no artigo 79.º-C da LTC.
É certo que para a apreciação da norma em causa o Tribunal teve de se socorrer do direito infraconstitucional, ao mesmo tempo que dava resposta às alegações da recorrente, centradas no entendimento de que a decisão singular de indeferimento do recurso de revisão, quando proferida no tribunal da relação, não é suscetível de impugnação. E é certo também que «em regra, não se integra nos poderes do Tribunal Constitucional a interpretação do direito ordinário. Porém, se, para a resolução da questão de constitucionalidade equacionada nos autos, for indispensável proceder à interpretação do direito infraconstitucional, então, não o fazer equivaleria a deixar na competência do tribunal recorrido algo que a Constituição especificamente comete ao Tribunal Constitucional: administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 279/2000, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Em suma, o acórdão não é nulo por omissão de pronúncia.
1.2. O acórdão também não é nulo por excesso de pronúncia. Diferentemente do sustentado pela requerente, o Tribunal não foi muito para além da averiguação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 700.º, n.º 3, e 774.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Como já ficou dito, foi para a apreciação da questão de constitucionalidade que o Tribunal se socorreu do direito ordinário. E fê-lo nessa estrita medida. Só por recurso ao direito infraconstitucional era possível responder à alegação da recorrente de que a decisão singular de indeferimento do recurso de revisão, quando proferida no tribunal da relação, não é suscetível de impugnação, violando por isso o princípio da proporcionalidade e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrados nos artigos 18.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.
2. Subsidiariamente, a recorrente requer a reforma do Acórdão n.º 292/2012, com fundamento no que dispõe a alínea a) do n.º 2 do artigo 669.º do Código de Processo Civil.
Segundo esta disposição legal, aplicável à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional (artigo 69.º da LTC), é lícito requerer a reforma da sentença (ou do acórdão, por força do consagrado no artigo 716.º, n.º 1, do mesmo Código), quando tenha ocorrido manifesto lapso do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. Trata-se aqui de um incidente pós-decisório de caráter excecional, em que «o erro manifesto de julgamento de questões de direito», contemplado na alínea a), «pressupõe obviamente, para além do seu caráter evidente, patente e virtualmente incontrovertível, que o juiz se não haja expressamente pronunciado sobre a questão a dirimir, analisando e fundamentando a (errónea) solução jurídica que acabou por adotar (v. g., aplicou-se norma inquestionável e expressamente revogada, por o julgador se não haver apercebido atempadamente da revogação)» (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil I, Almedina, 2004, comentário ao artigo 669.º, ponto II).
Ora, do pedido de “reforma” do Acórdão n.º 292/2012 não se extrai qualquer argumento no sentido de ter ocorrido manifesto lapso na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos. Além de o Tribunal não ter alicerçado toda a sua argumentação na análise do artigo 688.º do Código de Processo Civil, toda a alegação da requerente é significativa da sua discordância quanto ao entendimento de que a decisão judicial, proferida na relação, que indefira o requerimento de interposição de recurso de revisão é suscetível de impugnação por via da interposição de recurso.
Em suma, não há que proceder a qualquer reforma da decisão.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Indeferir a arguição da nulidade do Acórdão n.º 292/2012;
b) Indeferir o pedido de reforma do Acórdão n.º 292/2012.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 23 de outubro de 2012.- Maria João Antunes – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Joaquim de Sousa Ribeiro.