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Processo n.º 124/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.A. deduziu acusação particular por crime de injúrias contra B., no Tribunal Judicial da Comarca da Covilhã. O Ministério Público acompanhou a acusação particular e, por decisão de 17 de Outubro de 2001, o arguido veio a ser condenado em 90 dias de multa à taxa diária de 600$00, numa indemnização de 150
000$00 à ofendida, bem como nas custas do processo. Em 22 de Outubro, a defensora oficiosa, invocando ser o arguido “pessoa conflituosa [que] insiste, com intuitos meramente dilatórios, em que seja interposto recurso da mencionada decisão”, solicitou, “nos termos do n.º 2 do art.º 66º do Código de Processo Penal e do art.º 45º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro”, a dispensa de patrocínio, pedindo “a nomeação de outro defensor oficioso ao arguido” até pronúncia da Ordem dos Advogados, uma vez que estava a correr o “prazo para eventual recurso”. Por despacho de 24 de Outubro de 2001, a Mm.ª Juíza determinou que fosse ouvida a Ordem dos Advogados e declarou o prazo para interposição do recurso
“interrompido”, até que ao arguido fosse nomeado outro advogado. Em 29 de Novembro de 2001, o Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados concedeu escusa à anterior advogada e indicou um advogado estagiário em sua substituição, que foi nomeado por despacho de 7 de Dezembro de 2001 da Mm.ª Juíza do processo, com a indicação de que a partir da notificação se reiniciaria o prazo para a interposição do recurso da decisão de 17 de Outubro de 2001, invocando-se as disposições do “art. 25º, n.º 5, al. a), ‘ex vi’ art.
35º, n.º 2, ambos da Lei n.º 30-E/00, de 20.12”.
2.Em 10 de Janeiro de 2002, o arguido solicitou benefício de apoio judiciário e em 11 de Janeiro apresentou a sua motivação de recurso. Apesar de este ter sido admitido, por despacho de 15 de Janeiro de 2002, o Exmº. Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra entendeu que o recurso era intempestivo, levando à conferência decisão, unanimemente subscrita em 20 de Novembro de 2002, no sentido de que “mal andou a senhora juiz ao despachar no sentido da interrupção do prazo que estava a decorrer”, de que tal decisão “não vincula” o Tribunal da Relação e de que “não existe caso julgado formal”. E acrescentava:
“(...) Mas, ainda que assim não se entendesse temos que no caso vertente não se formaria caso julgado porque o despacho de fls. 85, que interrompe o prazo para interposição do recurso, não foi notificado nem ao Mº Pº, nem à assistente.
(...) Não foi dada oportunidade de exercício do contraditório, pelo que nunca era possível vir a formar-se caso julgado. Assim, temos o recurso como extemporaneamente interposto, pelo que deve o mesmo ser rejeitado.”
3.Após reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra, que foi liminarmente indeferida em 17 de Dezembro de 2002, o (já) advogado do arguido, por ter entretanto requerido a suspensão da sua inscrição na Ordem dos Advogados, dirigiu requerimento ao processo pedindo, nos termos das normas dos artigos 66º do Código de Processo Penal e 45º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, que fosse nomeado outro patrono ao arguido. Em todo o caso, por cautela de patrocínio, apresentou requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, “com fundamento na violação do princípio fundamental plasmado no art. 32º, n.º 1, da C.R.P. e na inconstitucionalidade do art. 420º do C.P.P.”, recurso, este, admitido por despacho de 15 de Janeiro de 2003. Na sequência da indicação do Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, veio a ser nomeada nova advogada ao arguido por despacho de 20 de Janeiro de 2003, proferido pelo Exmº. Desembargador-relator.
4.No Tribunal Constitucional o relator proferiu o despacho de aperfeiçoamento previsto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75º-A da Lei 28/82, de 15 de Novembro. Em resposta, o arguido veio precisar que o sentido do artigo 420º do Código de Processo Penal que reputava inconstitucional era o de que:
“o despacho de interrupção do prazo de recurso não constitui caso julgado formal, implicando imediata rejeição do recurso, por interposto fora de tempo, quando o novo defensor oficioso foi notificado de que começava, após a notificação, a decorrer o prazo para interposição do recurso.” Acrescentou que a inconstitucionalidade de tal interpretação fora suscitada na reclamação apresentada ao Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.
Nas suas alegações, o recorrente concluiu assim:
“1. O douto acórdão recorrido entendeu que o despacho que declarou a interrupção do prazo de recurso não constitui caso julgado formal rejeitando o recurso interposto pelo Arguido Recorrente, por interposto fora de tempo.
2. O Código de Processo Penal faz referência, em alguns dispositivos, ao caso julgado.
3. Dispostivos esses que são manifestamente insuficientes para abarcar todo o regime deste instituto.
4. Pelo que, perante a insuficiência dos dispositivos do Código de Processo Penal e a impossibilidade analógica das normas do referido código, observar-se-ão as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicar-se-ão os princípios gerais do processo penal.
5. O despacho, que declarou interrompido o prazo de interposição de recurso, proferido sobre a relação processual, nos termos do artigo 672º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 4º do Código de Processo Penal, tem força obrigatória geral dentro do processo.
6. O recurso à analogia, in casu, não enfraquece nem diminui os direitos processuais do Arguido, aqui Recorrente.
7. Com efeito, a existir caso julgado formal, o Recorrente não veria, por interposto fora de tempo, rejeitado o seu recurso.
8. Pelo que, a prevalecer a interpretação plasmada no acórdão recorrido, violam-se irremediavelmente as garantias de defesa do arguido constitucionalmente reconhecidas.
9. Denegando-se ao Recorrente um direito fundamental, qual seja o direito de recurso, plasmado no art. 32º, n.º 1, da C.R.P.
10. Tendo aquele despacho recaído sobre o requerimento de dispensa de patrocínio do Defensor nomeado em que alegou que 'o arguido que é uma pessoa conflituosa e insiste, com intuitos meramente dilatórios, em que seja interposto recurso da douta sentença proferida nos presentes autos'.
11. O regime a aplicar à dispensa de patrocínio requerida seria e será o previsto no n.º 3 do artigo 45º da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro.
12. Competindo à Ordem dos Advogados pronunciar-se pela classificação, ou não, do acto como abrangido pelo segredo profissional fundamento alegado para a dispensa do patrocínio requerido.
13. A falta de notificação do despacho, que declarou interrompido o prazo de interposição de recurso, aos demais sujeitos processuais constitui uma irregularidade.
14. Irregularidade que não foi arguida nem, oficiosamente, foi ordenada a sua reparação, mas que afectou as garantias de defesa do Arguido, ora Recorrente.
15. As normas contidas no artigo 420º, n.º 1, do C.P.P. e no artigo 45º, n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 30-E/2000, de 20/12, têm de ser interpretadas com sentido de que o despacho que declara interrompido o prazo de recurso constitui caso julgado formal no processo quando o novo defensor oficioso foi notificado de que reiniciava, após a notificação, o prazo para interposição do recurso.
16. Pois a prevalecer a interpretação plasmada no acórdão recorrido, tais normas estão feridas de inconstitucionalidade por violação das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República”. Por sua vez, as contra-alegações do Ministério Público encerravam deste modo:
“1. É incompatível com os princípios da confiança e segurança jurídica e das garantias de defesa em processo penal a interpretação normativa segundo a qual não é aplicável, no âmbito deste processo, o instituto do caso julgado formal, sendo sempre possível ao Tribunal, em via de recurso, reapreciar oficiosamente quaisquer decisões precedentes - ainda que proferidas no âmbito de um incidente autónomo - que possam, reflexamente, ter incidência na contagem de um prazo processual (no caso, o prazo para o arguido interpor recurso da decisão condenatória).
2. E valendo – na óptica da decisão recorrida – tal regra da livre e oficiosa revisibilidade mesmo nos casos em que as demais partes ou sujeitos do processo se tiverem – dada a sua actuação processual subsequente – conformado com o despacho, alegadamente ilegal, proferido no incidente de substituição do defensor.” Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
5.Embora nas suas alegações o recorrente tenha invocado a inconstitucionalidade das normas do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 45º, n.ºs. 1 e
3, da Lei n.º 3-E/2000, de 20 de Dezembro, o facto é que no requerimento de interposição do recurso – que delimita o seu objecto (cfr. v.g., Acórdãos n.ºs
634/94, 20/97 e 243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de 1995, 1 de Março de 1997 e em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol., pp. 609-614) – só aquele primeiro artigo foi referido. Assim, porque nas alegações de recurso o recorrente pode restringir o objecto do recurso, mas não ampliá-lo, só a norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal integra o presente recurso.
«que se especifique claramente a O segmento que importa apreciar da previsão de tal norma é o que se reporta à rejeição do recurso por se verificar “causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414º, n.º 2”, sendo que, no caso, esta causa decorre de uma alegada intempestividade da interposição do recurso embora tal recurso tenha sido interposto dentro do prazo fixado pela Mm.ª Juíza da 1ª instância, na sequência da substituição do defensor do arguido. Ainda que o conjunto de normas potencialmente convocáveis para fundar a rejeição do recurso, integrando outras para além da que está em causa, pudesse também ter integrado o seu objecto, em verdade a que determinou a decisão – e não só a decisão mas até a sua própria forma (em conferência) – foi a que foi impugnada. E, como já se escreveu (Acórdão n.º 255/98, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Novembro de 1998), basta questão jurídico-processual cuja inconstitucionalidade se pretende efectivamente suscitar, podendo rectificar-se ou corrigir-se a respectiva “base legal” em função do enquadramento que o tribunal a quo vá realizando ao longo das diferentes decisões». Ora, a questão jurídico-processual foi claramente especificada na resposta ao despacho de aperfeiçoamento proferido neste Tribunal e é da sua solução que depende a aplicação, tal como foi feita, da norma impugnada. Pode, portanto, passar-se ao conhecimento do objecto do recurso, até porque, como se escreveu nos Acórdãos n.ºs 248/90 e 17/97 (publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 23 de Janeiro de 1991 e de 30 de Abril de
1997), “no domínio dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao contrário do que acontece em sede de fiscalização abstracta, não é possível dissociar-se a norma ou normas postas em causa da própria relação jurídica substancial a que foi ou foram aplicadas, nem tão-pouco das circunstâncias objectivas em que essa aplicação ocorreu. E isto é assim porque será a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o juízo deste Tribunal sobre a eventual invalidade constitucional da respectiva norma.”
(cfr. também o Acórdão n.º 210/90, publicado no Diário da República, II Série, de 22 de Janeiro de 1991). Está em causa, portanto, a rejeição liminar do recurso com base na sua intempestividade e esta supõe que o despacho judicial que determinou a interrupção do prazo do recurso não constituía caso julgado formal. Ou, mais precisamente, está em causa a interpretação da norma do n.º 1 do artigo
420º do Código de Processo Penal, segundo a qual é extemporâneo o recurso interposto pelo novo defensor do arguido dentro do prazo reiniciado a partir da sua nomeação, depois de ter sido proferido em 1ª instância despacho a declarar interrompido o anterior prazo de interposição de recurso, devido ao pedido de escusa do anterior patrono, deduzido na sua pendência.
6.Segundo o recorrente, esta dimensão normativa, limitando no domínio do processo penal o princípio do caso julgado formal constante do artigo 672º do Código de Processo Civil, que é direito subsidiariamente aplicável (cfr. o artigo 4º do Código de Processo Penal), implicaria, em situações como a dos autos, a violação do n.º 1 do artigo 32º da Constituição, na medida em que equivaleria a uma denegação do direito de recurso – direito antes reconhecido por decisão judicial que fixou os termos em que poderia ser exercido. Nos termos do artigo 35º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, o
“patrono nomeado pode pedir escusa, mediante requerimento dirigido ao presidente do conselho distrital da Ordem ou ao presidente da secção da Câmara dos Solicitadores, no qual se contenha a alegação dos motivos da escusa”, e este pedido de escusa, “apresentado na pendência de acção judicial, interrompe o prazo que estiver em curso, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 25.º” Se este pedido de escusa do defensor do arguido, nos casos em que é admitido, determina a interrupção do prazo que estiver em curso, é claro que uma interpretação normativa que viesse a ter como consequência a recusa de tal efeito teria, por esse motivo, de ser considerada surpreendente. No presente caso, não está, porém, apenas em questão o carácter imprevisível, ou surpreendente, da interpretação normativa adoptada pelo tribunal recorrido, mas, sobretudo, a contradição de anterior decisão que afirmara o efeito interruptivo do prazo de recurso, sem que contra ela tenha sido interposto recurso. Por outro lado, não cabe ao Tribunal Constitucional, no presente processo, pronunciar-se sobre o efeito da não comunicação ao Ministério Público e à assistente do despacho de interrupção do prazo do recurso, nem sobre os efeitos da subsequente actuação processual de ambos, nem se afigura isso necessário para o que ora importa. O que importa é aferir da interpretação da norma que determinou a rejeição liminar de um recurso com base na intempestividade, não suscitada por nenhum interveniente processual, decorrente do prazo de recurso decretada no tribunal inferior.
7.Como se referiu no Acórdão deste Tribunal n.º 109/99 (publicado no DR, II série, de 15 de Junho de 1999), retomando jurisprudência anterior,
“5.1. Este Tribunal tem sublinhado, em múltiplas ocasiões, que o processo penal de um Estado de Direito tem que ser um processo equitativo e leal (a due process of law, a fair process, a fair trial), no qual o Estado, quando faz valer o seu ius puniendi, actue com respeito pela pessoa do arguido (maxime, do seu direito de defesa), de molde, designadamente, a evitarem-se condenações injustas. A absolvição de um criminoso é preferível à condenação de um inocente. Tal como se escreveu no Acórdão n.º 434/87 (publicado no Diário da República, II série, de
23 de Janeiro de 1988), o processo penal, para além de assegurar ao Estado ‘a possibilidade de realizar o seu ius puniendi’, tem que oferecer aos cidadãos ‘as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta’. O processo penal, para – como hoje exige, expressis verbis, a Constituição (cf. artigo 20º, n.º 4) – ser um processo equitativo, tem que assegurar todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (cf. o artigo 32º, n.º 1, da Lei Fundamental). No Acórdão n.º 61/88 (publicado no Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988) – depois de se acentuar que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, ‘se proclama o próprio princípio da defesa’ e, portanto, apela-se, inevitavelmente, para ‘um núcleo essencial deste’ – escreveu-se, na verdade, o seguinte:
‘A ideia geral que pode formular-se a este respeito – a ideia geral, em suma, por onde terão de aferir-se outras possíveis concretizações (judiciais) do princípio da defesa, para além das consignadas no n.º 2 do artigo 32º – será a de que o processo criminal há-de configurar-se como um due process of law, devendo considerar-se ilegítimas, por consequência, quer eventuais normas processuais, quer procedimentos aplicativos delas, que impliquem um encurtamento inadmissível das possibilidades de defesa do arguido.’
(Cf. também o Acórdão n.º 207/88, publicado no Diário da República, II série, de
3 de Janeiro de 1989). Assim, pois, como se sublinhou no Acórdão n.º 135/88 (publicado no Diário da República, II série, de 8 de Setembro de 1988), se o processo deixa de ser um due process of law, um fair process, viola-se o princípio das garantias de defesa. O princípio das garantias de defesa é violado toda a vez que ao arguido se não assegura, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa. Dizendo de outro modo: sempre que se lhe não dá oportunidade de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cf. os Acórdãos nºs 315/85 e
337/86, publicados no Diário da República, II série, de 12 de Abril de 1986, e I série, de 30 de Dezembro de 1986, respectivamente). Ora, quando, designadamente, se trata de decidir se deve recorrer-se de uma sentença condenatória, sobremaneira se a pena aplicada foi de prisão, o arguido e o seu defensor têm que ponderar muito bem os prós e os contras da decisão que tomarem. E isso exige o conhecimento do teor exacto da sentença. E reclama, bem assim, um tempo suficiente para poderem reflectir e decidir, pois seria inadmissível que se vissem forçados a fazê-lo precipitadamente. Porque isto é assim, é que este Tribunal, logo no seu Acórdão n.º 40/84
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º volume, páginas 241 e seguintes), julgou inconstitucional – justamente por violação do artigo 32º, n.º
1, da Constituição – a norma constante dos artigos 561º e 651º, § único, do Código de Processo Penal de 1929, e do artigo 20º do Decreto-Lei n.º 605/75, de
3 de Novembro, e do assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/79, de 28 de Junho, segundo a qual, em processo sumário, o recurso restrito à matéria de direito tinha que ser interposto logo depois da leitura da sentença (cf., no mesmo sentido, os Acórdãos nºs 17/86, 104/86, 123/86, 202/86, 210/86 e 265/86, publicados no Diário da República, II série, de 24 de Abril, 4 de Agosto, 6 de Agosto, 24 de Agosto, 5 de Novembro e 29 de Novembro, de 1986, respectivamente).” E, especificamente em matéria de prazos para recurso, afirmou-se no Acórdão n.º
41/96 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 33º, 1996, págs.
235-245):
“O processo penal de um Estado de Direito há-de ‘assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi’; mas há-de também ‘oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam cometer-se no exercício desse poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta’(cfr. Acórdão n.º 434/87, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Janeiro de 1988, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 371, p. 160). Tal processo há-de ser, assim, um due process of law, no sentido de que, nele, há-de o arguido poder defender-se. Este, o núcleo essencial do princípio da defesa, que, no artigo 32º, n.º 1, da Constituição, se proclama.
(…) Esta cláusula constitucional – que se apresenta com um cunho reassuntivo e residual (relativamente às concretizações que já recebe nos números seguintes do artigo 32º) e que, na sua abertura, acaba por revestir-se de um carácter acentuadamente programático – contém, ao cabo e ao resto, um eminente conteúdo normativo imediato a que se pode recorrer directamente, em casos limite, para inconstitucionalizar certos preceitos da lei ordinária (cfr. Figueiredo Dias, in A Revisão Constitucional, o Processo Penal e os Tribunais, p. 51). E contém esse conteúdo normativo imediato, justamente, porque aí se proclama o próprio princípio da defesa e, portanto, inevitavelmente, se faz apelo para o seu núcleo essencial, cuja ideia geral é a de que o processo criminal tem de assegurar sempre ao arguido a possibilidade de ele se defender (cfr. também o Acórdão n.º
186/92, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Setembro de 1992). O princípio das garantias de defesa – afirmou-se no já citado Acórdão n.º 434/87
– será violado ‘toda a vez que ao arguido se não assegure, de modo efectivo, a possibilidade de organizar a sua defesa’; ou seja: sempre que se lhe não dê oportunidade real de apresentar as suas próprias razões e de valorar a sua conduta (cfr. Acórdão n.º 315/85, publicado no Diário da República, II Série, de
12 de Abril de 1986).” Ora, num processo em que a interrupção do prazo do recurso, declarada por decisão do tribunal a quo, seja considerada inválida pelo tribunal ad quem, mesmo quando os restantes intervenientes processuais se conformaram com tal interpretação, nenhum deles reagindo contra esse despacho, o direito de recurso antes reconhecido por decisão judicial em certos termos – num certo prazo que restava – vem a ser praticamente inutilizado pelo tribunal ad quem, sendo frustrada a confiança legítima depositada pelo recorrente na anterior decisão do tribunal a quo, contra a qual nenhum outro sujeito processual reagiu. Na verdade, no presente caso, como salienta o Ministério Público nas contra-alegações produzidas no Tribunal Constitucional, a decisão da 1ª instância veio determinar a “concessão ao arguido de uma verdadeira prorrogação ou extensão do prazo para exercer o direito de recurso da decisão condenatória contra si proferida – assentando, naturalmente, toda a sua estratégia processual subsequente na consolidação de tal situação processual, decorrente de ‘a parte contrária’ se ter conformado com tal decisão. Ora, como é manifesto, a oficiosa revogação de tal despacho – apesar da autonomia do incidente em que o mesmo se inseriu – afecta a segurança e confiança no fluir da causa e põe em crise o exercício do direito ao recurso, ínsito no princípio constitucional das garantias de defesa”. Considerando a projecção da decisão recorrida, com este teor revogatório, no iter processual e na posição do arguido/recorrente, tem de reconhecer-se, na verdade, que um processo assim configurado, em que a garantia do recurso é deste modo postergada, contra a confiança legitimamente fundada em decisão anterior não impugnada que determinara a prorrogação do prazo, não pode ser considerado um due process of law, e não se conforma com as garantias de defesa que a Constituição assegura em processo penal – designadamente, com o reconhecimento, entre estas, do direito ao recurso. Assim, no contexto de aplicação dessa norma ao caso dos autos, o que se tem de concluir é que a interpretação do artigo 420º, n.º 1, do Código de Processo Penal em apreciação, ao levar a considerar como intempestivo o recurso interposto dentro do prazo fixado por despacho do tribunal a quo, apesar de este não ter sido impugnado, afronta directamente o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República, ofende os princípios da segurança e certeza jurídicas, e retira ao processo aqui em causa as características de um due process of law (e, dir-se-á ainda, viola também, indirectamente, o n.º 3 deste artigo 32º, na medida em que, por essa via de interrupção do prazo e revogação da interrupção, se evita que o arguido seja efectivamente assistido por um defensor em todos os actos do processo – questão que, porém, se pode deixar aqui em aberto, tendo-se alcançado a conclusão de que a norma é inconstitucional por violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição). A norma em questão, ao possibilitar a revogação oficiosa de uma decisão judicial, não impugnada, que havia tido como efeito a extensão do prazo para o arguido exercer o direito de recurso da decisão condenatória, afecta, aliás, também, de forma intolerável, os princípios da segurança e da confiança jurídica, ínsitos no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição da República. Tal dimensão normativa é, pois, inconstitucional, sendo de conceder provimento ao recurso.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1, e do princípio da segurança e da confiança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º, ambos da Constituição da República Portuguesa, a norma do n.º 1 do artigo 420º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual é extemporâneo o recurso interposto pelo novo defensor do arguido dentro do prazo reiniciado a partir da sua nomeação, depois de ter sido proferido em 1ª instância despacho, não impugnado, a interromper o anterior prazo de interposição de recurso, motivado por pedido de escusa do anterior patrono deduzido na sua pendência; b) Em consequência, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos