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Processo n.º 425/03
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A., sociedade comercial em liquidação por motivo de falência, interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão do Tribunal Central Administrativo de 19 de Dezembro de 2000, para apreciação da constitucionalidade da norma contida no n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na redacção introduzida pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, na parte em que veda às sociedades comerciais o apoio judiciário na modalidade de patrocínio forense gratuito.
2.Ordenada a produção de alegações, a recorrente concluiu do seguinte modo:
“1ª – O presente recurso tem por objecto o dispositivo de artigo 7º, n.ºs 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29/12, na redacção emergente das alterações que naquele diploma foram introduzidas pela Lei n.º 46/96, de 3/9, segundo a qual se encontra excluído por tal normativo o direito ao patrocínio judiciário para as entidades que exploram empresas com fim lucrativo, ainda que demonstrem que não têm meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial ou que o pleito é alheio à sua actividade económica normal.
2ª – A Constituição da República Portuguesa, ao garantir no seu artigo 20° o
«acesso ao direito e aos tribunais», impõe, no seu sentido material, a proibição da denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.
3.ª – Tal direito fundamental comporta no seu núcleo essencial o direito à informação e consulta jurídicas, e ao patrocínio judiciário, sendo este tido como elemento nuclear da garantia constitucional de «acesso ao direito e aos tribunais».
4.ª – A previsão do n.º 2 do artigo 20º da Constituição, segundo a qual as formas do ‘direito ao patrocínio judiciário’ possam ser reguladas por lei ordinária, não comporta a possibilidade de por essa via serem estabelecidos condicionantes ou requisitos que dificultem ou tornem por demais difícil o exercício daquele direito ou, ainda acentuadamente, restrinjam o respectivo conteúdo, sob pena de aqueloutro direito de acesso aos tribunais não passar de um direito fundamental formal.
5.ª – A Constituição estabelece outrossim o carácter universal do reconhecimento do direito ao patrocínio judiciário, tal como inculca desde logo o uso da expressão ‘a todos’ do artigo 20º do diploma fundamental, não se admitindo nem prevendo qualquer distinção entre pessoas singulares e colectivas, nem entre pessoas que desenvolvem uma actividade com fins lucrativos e as outras pessoas.
6.ª – A garantia de acesso ao direito e aos tribunais, tal como consagrada no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, resulta materialmente violada pela norma do artigo 7º, n.ºs 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro (na redacção dada pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro), ao excluir genericamente um elemento do núcleo essencial da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, sem tomar em conta a situação de insuficiência económica das entidades abrangidas e sem considerar o objecto do litígio.
7.ª – Trata-se in casu de uma exclusão geral e em abstracto que tem como resultado que, quanto às entidades em causa, a justiça seja afinal denegada por insuficiência de meios económicos.
8.ª – Mostra-se igualmente violado o princípio da igualdade, na medida em que resulta justamente desse artigo 20º, n.º 1, 2ª parte, que, a insuficiência de meios económicos não é nunca de considerar, à luz daquele princípio, fundamento razoável para a discriminação no acesso aos tribunais, como a que resultaria, neste caso, da privação da possibilidade de obter patrocínio judiciário gratuito.
9ª – Os normativos em apreciação estabelecem uma distinção injustificada entre entidades que desenvolvem uma actividade com fins lucrativos e outras entidades
– o que normalmente significará distinção entre comerciantes e não comerciantes, que é arbitrária, e carecida de fundamento material razoável, no que vai também contrariado o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
10ª – Por último, a norma estabelece uma restrição desadequada, desproporcionada e injustificada da garantia de acesso ao direito, que tem por consequência a limitação do acesso à justiça, excedendo de modo desproporcionado e excessivo o que seria necessário para obviar aos inconvenientes que se entendeu resultarem da legislação anterior, e que como tal justificaram a solução legal agora encontrada, no que vai igualmente violado o artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
11ª – Deve ser assim julgada inconstitucional, por violação dos artigos 20º, n.º
1, 13º e 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro (com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro), na interpretação segundo a qual as sociedades, os comerciantes em nome individual e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada não têm direito a patrocínio judiciário gratuito. Termos em que devem V. Ex.ªs, Venerandos Conselheiros, julgar [não] conforme[s] com a Constituição as normas ora impugnadas, e consequentemente, conceder provimento ao recurso, ordenando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com tal juízo de inconstitucionalidade.” Por parte da recorrida Fazenda Pública não foram apresentadas contra-alegações. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.A decisão recorrida – o acórdão do Tribunal Central Administrativo de 19 de Dezembro de 2000 – negou à recorrente o direito ao patrocínio judiciário com fundamento no artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, dizendo que esta norma lhe veda tal forma de apoio judiciário,
“ainda que demonstrem que não têm meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial ou que o pleito é alheio à sua actividade económica normal.”
É, pois, a norma do referido artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de
29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, que importa apreciar no presente recurso. Por outro lado, importa notar que o presente recurso mantém utilidade, apesar de
à recorrente ter já sido nomeado patrono no processo (fls. 72 e 86 dos autos), na sequência de pedido de apoio judiciário deduzido, perante o Centro Regional de Segurança Social, e que foi deferido na modalidade de nomeação de patrono
(fls. 43 dos autos). É que tal nomeação, posterior à decisão recorrida, teve como causa justamente a obrigatoriedade de constituição de advogado no recurso para o Tribunal Constitucional, prevista no artigo 83º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e teve como finalidade possibilitar o presente recurso (cfr. o despacho a determinar a notificação para a recorrente constituir advogado, a fls. 37 dos autos, bem como o requerimento a solicitar apoio judiciário a fls.
38), mantendo-se, porém, a decisão recorrida (o acórdão do Tribunal Central Administrativo de 19 de Dezembro de 2000) que, face ao disposto no artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, com a redacção dada pela Lei n.º 46/96, negou à recorrente direito a patrocínio judiciário gratuito.
4.Era a seguinte a redacção originária do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro:
«Art. 7.º
1 – Têm direito a protecção jurídica, nos termos da presente lei, as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial.
2 – Os estrangeiros e os apátridas que residam habitualmente em Portugal gozam do direito a protecção jurídica.
3 – Aos estrangeiros não residentes em Portugal é reconhecido o direito a protecção jurídica, na medida em que ele seja atribuído aos portugueses pelas leis dos respectivos Estados.
4 – As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.» A Lei n.º 46/96, de 3 de Setembro, veio, porém, alterar este preceito – no que ora interessa, suprimindo do n.º 4 a referência a sociedades e acrescentando um n.º 5. Estes n.ºs 4 e 5 passaram, assim, a dispor:
«Artigo 7.º
(...)
4 – As pessoas colectivas de fins não lucrativos têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5 – As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento, quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.» Note-se, ainda, que estas normas já não estão em vigor, uma vez que a Lei n.º
30-E/2000, de 20 de Dezembro, que veio alterar o regime de acesso ao direito e aos tribunais, e atribuir aos serviços da segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário, reformulou a redacção deste artigo 7º, reintroduzindo no seu n.º 4 o direito a apoio judiciário das sociedades. O artigo 7º, n.ºs 4 e 5, dispõem, assim, depois deste diploma:
«Artigo 7º
(...)
4 - As pessoas colectivas e sociedades têm direito a apoio judiciário, quando façam a prova a que alude o n.º 1.
5 - As sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada têm direito à dispensa, total ou parcial, ou ao diferimento do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço.» Não é, porém, esta a norma que está em causa no presente processo (considerando que houve um “retrocesso” com o diploma de 2000, cfr. Salvador da Costa, O apoio judiciário, 4ª ed., Coimbra, 2002, pág. 41), mas sim o artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, com a redacção da Lei n.º 46/96, de
3 de Setembro, na interpretação segundo a qual veda a concessão de patrocínio judiciário gratuito às sociedades, ainda que provem que os seus custos são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas e que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal.
5.A questão de constitucionalidade em causa no presente recurso foi já apreciada por este Tribunal (como, aliás, se indica na decisão recorrida). Assim, foi-o, pelo menos, nos Acórdãos n.ºs 97/99, 98/99, 167/99 e 368/99 (publicados, o primeiro e o terceiro, respectivamente, no Diário da República, II Série de 10 Abril de 1999 e 7 de Fevereiro de 2000), que não julgaram inconstitucional a norma em apreço. Importa recordar, porém, que foram apostas várias declarações de voto a todos os acórdãos referidos, defendendo a tese da inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, não existindo também, até hoje, decisão do Plenário do Tribunal Constitucional sobre a norma em questão. Na declaração de voto de vencido aposta pelo ora relator ao citado acórdão n.º
97/99, concluiu-se pela inconstitucionalidade da norma em causa, na medida em que excluía de plano a possibilidade de concessão de patrocínio judiciário gratuito a toda uma categoria de sujeitos definida em abstracto – a saber, as sociedades, os comerciantes em nome individual e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada –, ainda que provassem que os custos do pleito são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas e que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal, assim denegando a justiça por
“insuficiência de meios económicos”, contra o que se dispõe no artigo 20º, n.º
1, parte final, da Constituição da República. Tal posição assentou nos seguintes fundamentos:
“(...) Contemplando o sistema de acesso ao direito e aos tribunais, distinguem-se duas vertentes, de informação jurídica e protecção jurídica, das quais a segunda reveste duas modalidades – consulta jurídica e apoio judiciário (artigo 6º do referido Decreto-Lei n.º 387-B/87). Existem, por sua vez, duas formas de apoio judiciário: dispensa de despesas judiciais e pagamento dos serviços do advogado ou solicitador (artigo 15º, n.º 1, do citado diploma). Os beneficiários do direito à protecção jurídica estão enumerados no referido artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, resultando, na interpretação do n.º 5, em questão, que as sociedades – civis ou comerciais –, bem como os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, não têm direito a patrocínio judiciário gratuito, mas apenas ‘à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento’, e se demonstrarem que o respectivo montante é ‘consideravelmente superior às [suas] possibilidades económicas’,
‘aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço’. Como se vê, esta limitação não só não inclui todas as pessoas colectivas como não é sequer específica de pessoas colectivas. Aplica-se, igualmente, a pessoas singulares, e, mesmo, a entes não personalizados, como são os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada. Assim, a questão de constitucionalidade não se põe no confronto com o artigo 12º, n.º 2, da Constituição. A norma em questão funda-se, antes, na circunstância, comum aos seus destinatários, de estes exercerem uma actividade económica com intuitos lucrativos, sendo (conforme salienta o Ministério Público nas suas alegações, já publicadas, aliás, na Revista do Ministério Público, 1998, n.º 73, págs. 135 e segs.) os titulares de empresas que são (pelo menos, de forma tendencial) visados pela norma. Ora, não podem negar-se certas especificidades destas entidades. Os custos de litigância serão normalmente inerentes ao próprio exercício da sua actividade, justificando-se, nas acções que resultem do ‘giro comercial’ da empresa, a exclusão da dispensa ou redução de custas ou preparos – o que se traduz no citado artigo 7º, n.º 5, embora sempre admitindo a demonstração de que o montante das custas é consideravelmente superior às possibilidades económicas da empresa, aferidas em função dos factores descritos. Todavia, estas especificidades não bastam para fundamentar a privação, para essas entidades, em qualquer caso e sem admissão desta demonstração, do direito a patrocínio judiciário gratuito – que é o que está em causa no presente recurso.
2. Na verdade, a Constituição da República Portuguesa garantiu no seu artigo
20º, o acesso ao direito e aos tribunais, com proibição da denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, sendo o direito ao patrocínio judiciário verdadeiro elemento essencial daquela garantia. Na expressão do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 962/96 (Diário da República, I série-A, de 15 de Outubro de 1996), os mandados desse artigo 20º ‘constituem mesmo a estrutura central da ordem constitucional democrática’, assegurando a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. Como se salientou no Acórdão n.º 316/95 (publicado no Diário da República, II série, de 31 de Outubro de 1995), ‘torna-se claro que o assinalado asseguramento de acesso aos tribunais, a par da proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, sabido que é que, em muitos casos, para naqueles se pleitear se torna necessária a constituição de advogado, há-de implicar, nas hipóteses daquela insuficiência, que se confira o direito ao
«patrocínio judiciário». Significa isto, em consequência, que, muito embora o exercício e as formas do «direito ao patrocínio judiciário» seja, pelo n.º 2 do artigo 20º da Constituição, relegado para a lei, o que é certo é que, dada a implicação a que acima se fez referência, a lei ordinária não poderá estabelecer condicionantes ou requisitos tais que dificultem ou tornem por demais difícil o exercício daquele direito ou, ainda acentuadamente, restrinjam o respectivo conteúdo, sob pena de aqueloutro direito de acesso aos tribunais «não passar de um ‘direito fundamental formal’» (nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª ed., Coimbra, pág.
163)’. (ver, ainda, por exemplo, os Acórdãos n.ºs 415/94, 317/95, 339/95 e
340/95, estes últimos publicados no Diário da República, II série, respectivamente de 1 de Agosto e de 2 de Novembro de 1995). E, além desta essencialidade, salientou-se a universalidade do reconhecimento do direito ao patrocínio judiciário no citado Acórdão n.º 339/95, segundo o qual ‘o direito de acesso aos tribunais, de que é componente essencial o patrocínio judiciário, é assegurado pela Constituição «a todos» (artigo 20º), o que logo inculca a universalidade do respectivo reconhecimento (...)’.
3. Nestes termos, penso que a garantia de acesso aos tribunais, resultante do artigo 20º da Constituição, resulta violada por uma norma que exclui genericamente o direito ao patrocínio judiciário gratuito para as entidades que exploram empresas com intuitos lucrativos, ainda que estas provem a sua insuficiência económica para suportar os respectivos custos, que estes são consideravelmente superiores às suas possibilidades, ou, mesmo, que o pleito é totalmente alheio à sua actividade económica normal. Não se trata, aqui, tão-só de uma restrição ao direito a patrocínio judiciário gratuito, ou de o sujeitar, nos termos da lei, a determinadas condições, mas de uma sua exclusão geral e em abstracto, que tem como resultado que, quanto às entidades em causa, a justiça possa ser ‘denegada por insuficiência de meios económicos’. Tal exclusão de plano do direito ao patrocínio judiciário gratuito não se justifica, aliás, como referi, com a especificidade das entidades com intuitos lucrativos, pois não é permitida a prova de que a acção, naquele caso concreto,
é alheia à actividade económica da empresa (podendo perfeitamente tratar-se, por exemplo, de uma vultuosa acção de indemnização, em que aquela é lesada) – ou, pelo menos (como se faz no próprio artigo 7º, n.º 5, para as custas e preparos), a demonstração de que os custos da acção excedem consideravelmente as possibilidades económicas da pessoa em questão, avaliadas em função de factores objectivos. Não se pode sequer afirmar, em abstracto, que as sociedades, civis ou comerciais, os comerciantes em nome individual ou os titulares de estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada sempre terão meios para suportar as despesas de patrocínio judiciário disponível no ‘mercado’ da prestação de serviços jurídicos. Assim, desde logo, sabe-se, por exemplo, que, apesar da proibição da quota litis, o valor da causa não é despiciendo para a fixação dos honorários dos profissionais do foro, até por se reflectir sobre a importância do serviço prestado e sobre os resultados obtidos (artigo 65º, n.º
1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 84/84, de
16 de Março). Nem me posso dar por satisfeito com a remissão de tais entidades para ‘mecanismos de seguro e prevenção’ dos custos judiciários. Essa remissão (a qual, aliás, não provaria apenas para as entidades em questão), bem como a exigência de, na impossibilidade de pagamento aos profissionais do foro, recorrer, ou aos próprios sócios para suprimento da insuficiência financeira, ou a um processo de recuperação de empresa ou de falência, por manifesta inviabilidade da empresa (e suposto que se verificariam sempre os pressupostos destes processos, existindo, designadamente, uma situação de insolvência), representa, a meu ver, a própria admissão da possibilidade de denegação de justiça por falta de meios para custear o patrocínio judiciário. Exigir a submissão a um processo de falência ou de recuperação da empresa (com eventual consequência da extinção), ou o recurso aos sócios para custear despesas judiciárias, significa que a pessoa colectiva (obviamente, enquanto entidade distinta dos sócios) não poderá recorrer aos tribunais por falta de meios económicos, retirando, sob este prisma, consistência ao seu direito de acesso aos tribunais. Não é, pois, de excluir que a acção em questão seja inteiramente alheia à actividade económica da sociedade, estando, todavia, sempre excluída a possibilidade de as entidades referidas no artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º
387-B/87 obterem patrocínio judiciário gratuito. A meu ver, este resultado ofende, pois, a garantia de que a ninguém pode ser denegada justiça por insuficiência de meios económicos (artigo 20º, n.º 1, 2ª parte, da Constituição). E creio que se viola do mesmo passo o princípio da igualdade, na medida em que – embora sem negar as especificidades das entidades em questão – resulta justamente desse artigo 20º, n.º 1, 2ª parte, que a insuficiência de meios económicos não é nunca de considerar, à luz daquele princípio, fundamento razoável para a discriminação no acesso aos tribunais, como a que resultaria, neste caso, da privação da possibilidade de obter patrocínio judiciário gratuito.
4. Nestes termos, teria negado provimento ao recurso, mantendo o julgamento de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 20, n.º 1, 2ª parte, e 13º da Constituição, do artigo 7º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na interpretação segundo a qual as sociedades, os comerciantes em nome individual e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, não têm direito a patrocínio judiciário gratuito, ainda que provem que os seus custos são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas
(aferidas, designadamente, em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço) e que se trata de acções estranhas à sua actividade económica.”
6.Entende-se que esta fundamentação, na medida em que se reporta ao artigo 20º, n.º 1, 2ª parte, da Constituição da República, é procedente, não sendo, por outro lado, infirmada pelos argumentos invocados nos arestos citados, que se debruçaram sobre a questão de constitucionalidade em causa no presente recurso. Designadamente, não resulta da transcrita fundamentação qualquer dever de equiparação dos termos em que é concedido apoio judiciário a pessoas singulares e a pessoas colectivas, ou a entidades com e sem fim lucrativo – entendendo-se, antes, que ela é compatível com as diferenciações que a boa gestão dos recursos imponham –, mas apenas a impossibilidade de uma exclusão geral e em abstracto, sem possibilidade de prova de que os custos em causa são consideravelmente superiores às possibilidades económicas do concreto sujeito em questão e de que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal. Esta última delimitação contraria, também, o argumento de que poderão estar em causa custos da actividade económica normal, e de que a própria preservação das condições de concorrência impediria a concessão de tal patrocínio judiciário (argumento, este, que, aliás, e como é evidente, provaria demasiado, por também ser aplicável a outras formas de apoio judiciário). Tal exclusão de plano do direito ao patrocínio judiciário gratuito, para uma categoria de sujeitos definida em abstracto, e sem lhes possibilitar a referida prova de que os custos são consideravelmente superiores às possibilidades económicas e de que a acção é alheia à sua actividade económica normal, não pode deixar de ter como resultado que, quanto às entidades em causa, a justiça possa vir a ser “denegada por insuficiência de meios económicos” (como, aliás, não deixa de admitir-se quando se afirma que a alternativa ao pleito poderá ser a insolvência). No presente caso, é isto mesmo que está em causa, pois a recorrente impugna a norma na dimensão segundo a qual as sociedades não têm direito a patrocínio judiciário gratuito ainda “que demonstrem que não têm meios económicos para suportar os encargos de uma causa judicial ou que o pleito é alheio à sua actividade económica normal” (itálico aditado). Entende-se, assim, que esta norma é inconstitucional, concedendo-se provimento ao recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º, n.ºs 1, parte final, e 2, da Constituição da República, a norma ínsita no n.º 5 do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, na interpretação segundo a qual veda a concessão de patrocínio judiciário gratuito às sociedades, ainda que provem que os seus custos são consideravelmente superiores às suas possibilidades económicas e que se trata de acções alheias à sua actividade económica normal. b) Por conseguinte, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida em consonância com o presente juízo de inconstitucionalidade. Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues (vencido pelas razões constantes da declaração de voto da Exmª Senhora Conselheira Fernanda Palma para a qual, com a devida vénia remeto) Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
Declaração de voto
Votei vencida o presente Acórdão, apoiada nas razões que formaram a essência da decisão do Acórdão nº 97/99, bem como a dos Acórdãos nºs 98/99, 167/99 e 368/99. A jurisprudência que solidamente foi fixada nesses Acórdãos é agora afastada, logrando vencimento a perspectiva inerente a uma declaração de voto de vencido aposta em alguns desses arestos. A argumentação expendida no primeiro desses Acórdãos no sentido de não inconstitucionalidade considerou o seguinte: a) Em primeiro lugar, não decorre da Constituição que as entidades com fins lucrativos sejam equiparáveis às pessoas singulares e pessoas colectivas de fim não lucrativo para efeitos de promoção pelo Estado de acesso à justiça; b) Em segundo lugar, as normas sub judicio não esvaziam o direito de acesso à justiça da sua substância, ao não concederem patrocínio judiciário em caso algum
às pessoas colectivas de fim lucrativo; c) Por último, as normas sub judicio não constituem uma restrição desproporcional e injustificada do direito à efectivação do acesso à Justiça.
(...) Assim, desde logo, não decorre dos artigos 20º, nºs 1 e 2, e 13º da Constituição que as pessoas colectivas de fins lucrativos devam ser equiparadas
às pessoas singulares quanto ao conteúdo do direito ao patrocínio judiciário. Aliás, é na consagração do próprio princípio da universalidade que o legislador constitucional introduz, desde logo, uma ressalva quanto às pessoas colectivas em geral, determinando que estas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
“compatíveis com a sua natureza” (artigo 12º, nº 2). Sendo o patrocínio judiciário um instrumento de acesso à justiça, a sua gratuitidade, como forma de protecção jurídica do efectivo exercício daquele direito, corresponde à promoção das condições necessárias para o acesso à Justiça. Ora, a promoção destas condições positivas nos casos de insuficiência económica não tem, necessariamente, a mesma expressão nas pessoas jurídicas com e sem fim lucrativo. Estas últimas, pela sua natureza lucrativa, têm condições para integrar na sua normal actividade económica os custos com profissionais do foro próprios da litigância que nelas é frequente. Assim, tal integração é própria do exercício normal da respectiva actividade económica. Não há, deste modo, uma necessidade lógica e valorativa de equiparar as pessoas singulares, e até mesmo as pessoas colectivas sem fim lucrativo, às pessoas colectivas com fim lucrativo, no que se refere ao direito de que sejam criadas ou promovidas condições de acesso à Justiça através da gratuitidade do patrocínio judiciário, em casos de insuficiência económica. As pessoas colectivas com fim lucrativo integram, pela sua natureza, na estruturação da sua actividade económica esses custos, dispondo, por isso mesmo, de condições para a compensação dos mesmos. E a possibilidade de integração daqueles custos na actividade económica das pessoas colectivas de fim lucrativo não é só uma normalidade, mas é mesmo um pressuposto normativo da própria existência jurídica de tais entidades. A impossibilidade de suportar os custos normais do exercício da actividade económica retira viabilidade a pessoas jurídicas, cuja constituição se justifica apenas para o exercício dessa mesma actividade económica, determinando, porventura, situações de falência e o congelamento da própria actividade económica de tais entidades, como forma de protecção dos interesses patrimoniais de outros e do próprio interesse geral no desenvolvimento saudável da economia. Por outro lado, a protecção jurídica pelo Estado das pessoas colectivas com fim lucrativo através do patrocínio judiciário gratuito corresponderia a uma opção de proteger a litigância de sociedades comerciais e empresas sem condições para assegurar a sua actividade económica, o que não é certamente uma imposição constitucional nem uma prática indiscutível à luz da livre concorrência e do interesse público na protecção da economia.
(...) Sendo claro que há uma diferença de posicionamento das pessoas colectivas com fim lucrativo e das outras pessoas jurídicas quanto à necessidade de protecção jurídica condicionante do acesso à Justiça, resta saber se esse diferente posicionamento deixa de existir, em caso de insuficiência económica, quando as pessoas colectivas de fim lucrativo devam litigar em acções não relacionadas com a sua actividade económica normal, como poderia acontecer em casos de danos provocados por acidentes e outras situações inusitadas. Mas também quanto a estas situações há mecanismos de seguro e prevenção que não podem deixar de ser integrados nos custos das sociedades comerciais e na gestão do seu risco, não estando estas, mesmo em tais casos, nas mesmas condições das pessoas singulares ou das pessoas colectivas com fim não lucrativo. Não se pode dizer, por conseguinte, que dos artigos 20º, nºs 1 e 2, e 13º da Constituição resulte a necessidade de equiparação, quanto à protecção jurídica por patrocínio judiciário gratuito, das pessoas colectivas de fim lucrativo ou a estas equiparadas às restantes pessoas jurídicas.
(...) Por outro lado, as normas sub judicio também não esvaziam o direito de acesso à justiça da sua substância ao não concederem patrocínio judiciário gratuito, em caso algum, às pessoas colectivas com fim lucrativo. Com efeito, tais normas prevêem a dispensa das custas e preparos em casos em que o respectivo montante seja comprovada e consideravelmente superior às possibilidades económicas daquelas entidades, “aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço”. Assim, nos casos em que o “preço da justiça” seja insuportável para aquelas entidades, impede-se que o acesso à justiça seja impossibilitado por insuficiência económica. Os custos com o patrocínio judiciário são, por outro lado, custos negociáveis e mais previsíveis e controláveis para as sociedades comerciais. Deste modo, e independentemente de saber se é por exigência constitucional que o direito de acesso à justiça implica a dispensa das custas e preparos nos casos previstos no artigo 7º, nº 5, da Lei nº 46/96, através dos modos nele previstos, o certo é que, mesmo na perspectiva de um critério exigente de promoção pelo Estado do acesso à Justiça, existe uma resposta suficiente naquela norma.
(...) Em face das considerações anteriores, conclui-se que a igualdade de tratamento entre pessoas colectivas de fim lucrativo e as outras pessoas jurídicas e entidades não lucrativas, em matéria de patrocínio judiciário gratuito, não é imposta pela Constituição. Mas mesmo que se entenda que a diferenciação não pode ser total ou que será necessário respeitar, nas restrições previstas pelas normas sub judicio, uma certa proporcionalidade relativamente às demais situações, dever-se-á, ainda assim, reconhecer que tal diferenciação não só é justificada pela diversidade de condições referida - não sendo, por isso, uma restrição excessiva nem uma diferenciação desproporcionada - como também está sustentada por razões de interesse público. Com efeito, tal restrição do direito ao patrocínio judiciário
é justificável por critérios racionais de gestão do interesse colectivo e de repartição dos encargos públicos, ao dar prioridade e especial protecção no acesso à Justiça às pessoas e entidades sem fim lucrativo e ao exigir que as entidades com fim lucrativo suportem - ou criem mecanismos para isso adequados - os custos da actividade económica de que são beneficiários.
A fundamentação contrária do presente Acórdão acentua, porém, ainda alguns aspectos, tais como o de que poderão não estar em causa custos da actividade económica normal, o de que haverá uma exclusão em absoluto do direito ao patrocínio judiciário gratuito para uma categoria de sujeitos definida em abstracto e sem lhes possibilitar a prova de que os custos são superiores às possibilidade económicas e o de que a acção poderá ser alheia à actividade económica normal. Todos estes argumentos provariam que, em certos casos, seria denegado, por insuficiência de meios económicos, o acesso à justiça. Ora, a tudo isto já o Tribunal Constitucional deu resposta nos anteriores Acórdãos, realçando que a razão de ser última das sociedades comerciais não justifica, de modo idêntico ao das pessoas físicas, a promoção das condições de acesso à justiça. Nestas últimas, a dimensão de acesso à justiça consubstancia uma dimensão da própria dignidade da pessoa humana insusceptível de limitações pela escassez de meios económicos. Naquelas outras, a sua finalidade específica e razão de ser torna aceitável que o acesso à justiça seja por elas exclusivamente providenciado. Não é sequer verdadeiramente concebível que os custos do acesso à justiça possam ser custos completamente alheios à actividade económica que é a substância das sociedades comerciais e que as justifica mesmo que uma acção possa não estar directamente associada à sua actividade económica normal. Perante os custos colectivos da justiça suportados pelos impostos e a escassez de meios do Estado, é tolerável constitucionalmente que o acesso à justiça das sociedades comerciais, pela sua natureza, não seja suportado pelo Estado.
Maria Fernanda Palma