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Proc. n.º 411/03
3ª Secção Relator: Cons. Gil Galvão
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. A., ora recorrente, intentou contra a Caixa Geral de Aposentações, ora recorrida, acção declarativa com processo ordinário, no âmbito da qual pedia, designadamente, que fosse declarado que a Autora “é herdeira hábil do falecido[...] para efeito de atribuição de pensão de sobrevivência, nos termos do artigo 2020º do CC e do artigo 41º n.º 2 do Estatuto das pensões de Sobrevivência [...].” Por decisão da 11ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, de 8 de Outubro de 2001, foi a acção julgada improcedente, uma vez que o tribunal entendeu que, sendo a acção proposta contra a Caixa Geral de Aposentações, a Autora tem de provar, além do direito a alimentos, nos termos do artigo 2020º do CC, a inexistência ou insuficiência dos bens da herança do falecido para satisfação do referido direito, pelo que, “[...]pese embora a prova do direito a alimentos, não logrou a Autora provar, por um lado a incapacidade financeira das pessoas referidas na al. d) do art.º 2009º do CC, por outro a insuficiência ou inexistência dos bens da herança do falecido subscritor da Ré para satisfação do direito a alimentos[...]”.
2. Inconformada com esta decisão a ora recorrente apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa. Este negou provimento ao recurso, não só por entender que, recaindo sobre a candidata a pensionista o ónus da prova da impossibilidade de obter alimentos dos obrigados mencionados nas alíneas a) a d) do artigo 2009º do Código Civil, esta não fez prova de tal impossibilidade, mas também porque,
“ainda que assim não fosse, a acção teria de naufragar pelo outro fundamento considerado na sentença – o da omissão da alegação e prova da inexistência ou insuficiência dos bens da herança para atribuição da pensão de alimentos. Existindo património bastante, ao invés do que sucede nas relações matrimoniais legalmente constituídas, não haverá “de jure constituto”, lugar à atribuição da pensão de sobrevivência.”
3. Novamente inconformada, recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado, nomeadamente, as seguintes conclusões:
“1. Mercê do estatuído no Art° 718° do Cod. Proc. Civil, na medida em que manda aplicar o fixado no Artº 668° do mesmo Diploma, aos acórdãos proferidos na Segunda Instância, em recurso de apelação, ficarão estes afectados do vício da nulidade, sempre que se não pronunciem sobre questão posta e, assim, a apreciar;
2. Deste modo, encontra-se ferido de nulidade o douto acórdão recorrido, por não ter conhecido de questão posta pela Autora, também na sua alegação de recurso, quando tal devia ter sido feito;
3. Na verdade, invocou a Autora que a pensão de sobrevivência, a cargo da Ré e em benefício da Autora, na situação de união de facto existente com o seu falecido companheiro, filia-se no aforro que foi efectuado, por este, ao longo de toda a vida, do desempenho de funcionário público e, através dos descontos mensais e respectivos depósitos a favor da Caixa Nacional de Aposentações;
4. Ora, segundo também alegou, esta pensão nada tem a ver com a de alimentos, baseada nas relações para-familiares nem na fundamentada nas, relações familiares, ambos previstas nos Arts. 2020° e 2009° do Cod. Civil;
5. Efectivamente, estas e aquelas são diferentes, autónomas e independentes e, mais, cumuláveis;
6. Daí, como no douto acórdão não se teve em conta esta questão levantada, verifica-se a sua nulidade;
7. Mas, mesmo que se venha a entender inexistir esta nulidade, sempre a presente acção devia ser julgada procedente;
8. Assim, tem direito à pensão de sobrevivência, a pagar pela C.G.A. a Autora companheira, como sua herdeira hábil, de companheiro falecido, que exerceu a sua actividade como funcionário público, durante toda a sua vida;
9. E, tal, por preencher as condições previstas no Art. 2020º do Cód. Civil, que consistem na vida em comum, como marido e mulher, durante pelo menos dois anos, uma vez que o falecido era viúvo, de longa data, não sendo, portanto casado;
10. Este direito à pensão de sobrevivência, provenientes de autêntica União de Facto alicerça-se no aforro que foi realizado pelo falecido companheiro, ao longo de toda a sua vida de desempenho das funções de serviço público, através dos descontos, por mês, que, à ordem de respectiva Instituição da Caixa Geral de Aposentações, foram sendo depositadas;
11. O direito aos alimentos da companheira sobrevivente, no tocante à herança, baseia-se nas relações parafamiliares da União de Facto a onerar os bens daquela;
12. O direito a alimentos dos próprios familiares da companheira sobrevivente filia-se nas relações familiares que os unem;
13. O direito à pensão de sobrevivência é, por isso, completamente autónomo e independente do direito a alimentos à custa da herança do companheiro falecido, bem como do direito a alimentos dos próprios herdeiros da companheira sobreviva;
14. São todos estes direitos complementares entre si;
15. Não possui a Autora bens alguns nem rendimentos para satisfazer as suas necessidades, por mais primárias e fundamentais que sejam;
16. Para obter a pensão de sobrevivência é irrelevante haver bens na herança, suficientes ou não, do falecido companheiro;
17. Sem interesse algum também o é a obtenção dos alimentos à custa dos próprios familiares que, no caso dos autos, os irmãos, dado a Autora não ter pais e ser solteira, e os recursos daqueles serem precaríssimos e só permitirem a satisfação das necessidades elementares deles;
18. Sendo, assim, como o é, segundo o próprio disposto nas leis atrás citadas, podia a Autora socorrer-se de uma acção para pedir os alimentos à herança do falecido ou lançar mão de uma acção para obter a pensão de sobrevivência, dirigida contra a respectiva Instituição, ou intentar uma única acção contra a herança e a Instituição com vista a obter os alimentos e a pensão de sobrevivência, tudo a correr pelo Tribunal Civil;
19. Ao ser decidido, como foi, pela confirmação da sentença e pela improcedência da presente acção, operou-se não acatamento dos comandos legais aludidos, nomeadamente, os Arts. 40°, n.º 1 e 41°, n.º [2] do Dec. – Lei 142/73 de 31 de Março, na redacção do Dec.-Lei 191-B/79 de 25 de Junho e os Arts. 2020 e 2009° do Cód. Civil;
20. Deve, uma vez que é o desfecho correcto e admissível, ser dada a acção provada e procedente, deferindo-se todos os pedidos deduzidos pela Autora;
21. Mas, mesmo que se pense de forma diversa, sempre esta acção tem de ser considerada provada e procedente, com a também procedência de todos os pedidos formulados na petição inicial;
22. E, isto por, quando os Arts. 40° e 41º do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público se reportam aos Arts. 2020 e 2009º, apenas destes deve extrair-se o requisito de que depende a união de facto;
23. Na verdade, quanto ao demais, ou seja, a obtenção da qualidade de hábil, para a atribuição do direito da pensão ao companheiro sobrevivo, não ter relevância alguma a possibilidade de obtenção de alimentos da herança do companheiro sobrevivo, ou dos próprios herdeiros, uma vez que estas condicionantes sempre representariam exigências inconstitucionais, por ferirem o estatuído nos Arts. 13º e 36º da Constituição da República Portuguesa que consagra o direito de igualdade e tratamento não díspar dos casados e dos unidos de facto e convivência como se de casados se tratasse.
24. Donde resultar dessa inconstitucionalidade a procedência da acção aludida.
[...]”.
4. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 3 de Abril de 2003, julgou improcedentes, no essencial, as conclusões do recurso, negando a revista. Escudou-se para tanto na seguinte fundamentação:
“[...] Como decorre do regime das pensões de sobrevivência (arts. 26° e sgts. do DL 142/73 com as alterações introduzidas pelo DL 191-B/79), de 25/06), o direito
à pensão de sobrevivência de quem estiver numa situação de facto nos termos do art. 2020° do CC, depende da obtenção prévia de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos. Por sua vez tal direito a alimentos, nos termos da parte final desta norma, depende da circunstância negativa de o requerente os não poder obter dos respectivos parentes ou cônjuges nos termos das als. a) a d) do art. 2009° do CC. Perante a matéria de facto provada, cujo elenco tal como o descreve a Relação aqui se dá por reproduzido, concluíram as instâncias pela improcedência da acção com o fundamento da ausência de prova quanto à falada impossibilidade de os alimentos serem obtidos ao abrigo do referido art. 2009°. No acórdão recorrido considerou-se ainda que sempre a acção teria que naufragar por omissão de alegação e prova da inexistência ou insuficiência dos bens da herança do contribuinte da R para a atribuição da pensão de alimentos. Concorda-se em parte com a recorrente quando alega a independência e autonomia do direito à pensão de sobrevivência relativamente ao direito a alimentos à custa da herança do companheiro falecido já que, aquele, dependendo embora de lhe ser reconhecido o direito a alimentos pela herança, não depende de esta ter ou não ter bens suficientes. Mas dúvidas não há de que o direito à pensão depende, absolutamente, da prova em juízo da existência dos pressupostos que lhe permitiriam reclamar alimentos independentemente de os bens da herança serem ou não suficientes para tal. Porém, quanto às pessoas que possam invocar situações de facto análogas às dos cônjuges, reafirma-se que a invocação do direito à pensão de sobrevivência, depende da prova do direito aos alimentos o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do companheiro falecido com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das als. a) a d) do art. 2009° do CC. Não pode deixar de concordar-se com o decidido nas instâncias pois não foi feita a prova desta impossibilidade, mas sempre se dirá que o reconhecimento do direito a alimentos nos termos do art. 2020° teria que ser obtido em acção em que tivesse sido demandada a própria herança e não, como aqui sucedeu, contra a Caixa Geral de. Aposentações. Dir-se-á ainda que o sentido da decisão sempre prejudicaria o conhecimento da questão de a reclamada pensão se basear em aforros feitos pelo falecido [...], ao longo de vários anos, não ocorrendo, assim, a invocada nulidade. Também se não vê que tenham sido ofendidos os princípios constitucionais da igualdade e do direito de constituir família como pretende a recorrente ao invocar a violação das normas dos arts. 13° e 36° da CRP . Conclui-se, assim, pela improcedência, no essencial, das conclusões do recurso. Nestes termos, negam a revista [...]”
5. Deste acórdão, interpôs a ora recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“[...] Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dos Arts. 40°, n° 1 e 41°, n° 3, do Estatuto das pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público do Dec.-Lei n° 142/73, de 31 de Março, na redacção do Dec.-Lei n° 191-B/79 de 25 de Junho, no sentido de que estes ao reportarem-se aos Arts. 2020 e 2009 do Cod. Civil, para além da prova da união de facto, para efeito do reconhecimento da qualidade de hábil, para a atribuição do direito à pensão de sobrevivência por parte do companheiro vivo, fazerem depender este direito do mesmo companheiro sobrevivo, também dos requisitos de prova da não possibilidade de obtenção de alimentos da herança do companheiro falecido ou dos próprios herdeiros do companheiro vivo. A exigência destes requisitos de impossibilidade da obtenção de alimentos da herança do companheiro falecido ou dos próprios herdeiros do companheiro sobrevivo, para além da demonstração da existência da união de facto, na interpretação desses preceitos, ou seja, os falados Arts. 40° e 41° dos referidos Decretos-Leis e Arts. 2020° e 2009 do Cod. Civil, ofendem, por inconstitucionalidade, os Arts. 13° e 36° da Constituição da República Portuguesa que consagra o direito de igualdade de tratamento não díspar dos casados e dos unidos de facto e convivência como se de casados se tratasse, tratamento este a conceder em pé de igualdade decorrente dos princípios constitucionais da igualdade e do direito de constituir família, presentes nestes dispositivos da nossa Lei Fundamental.[...]”
6. Já no Tribunal Constitucional foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Ao serem exigidos os condicionalismos no douto acórdão recorrido, que conduziram à improcedência da acção, da inexistência de bens na herança do companheiro falecido e da impossibilidade de obtenção de pensão de seus parentes legais, por parte da companheira sobrevivente, para o direito da atribuição da pensão de sobrevivência a esta, a que se reportam os Arts. 40° e 41 ° do atrás citado Estatuto das Pensões de Sobrevivência dos Funcionário Públicos, isto derivado da referência aos Arts. 2020° e 2009° do Cód. Civil, recorreu-se a preceituado inquinado do vício de inconstitucionalidade;
2. Esta inconstitucionalidade filia-se, ao considerar-se aplicáveis esses ambos condicionalismos, na violação do consagrado nos Arts. 13°, 36° e 67° da Constituição da República Portuguesa em vigor, que consagram os princípios da igualdade de direito, do direito à constituição de família e do direito à protecção, pela comunidade e pelo Estado, dos elementos que integram a família que é considerado esteio fundamental da sociedade;
3. A não atribuição do direito à pedida pensão de sobrevivência em relação à Autora, como companheira viva de companheiro falecido, que viviam em união de facto estável e duradoura, por se entender depender desses dois condicionalismos quando à viúva de funcionário público isso não é exigível, tal reveste tratamento não igualitário e apoiado em fundamentação não racional, justa e objectiva;
4. A Constituição ao falar do direito de constituir família e de contrair casamento, comporta que a constituição de família não o é só produto do casamento, mas também resulta da situação de união de facto estável e duradoura;
5. A protecção que a Constituição igualmente confere aos elementos da família estende-se, não só aos casais ligados pelo casamento, mas também aos em vida de união de facto, estável e duradoura;
6. A carta dos direitos fundamentais adoptada pela União Europeia conduz a esse entendimento que abrange a família derivada do casamento e da união de facto;
7. O avanço da sociedade e o reconhecimento da protecção da união de facto, na legislação que lhe é aplicável, conduz a não poder conceber-se tratamento diferente à viúva de funcionário público falecido e à companheira sobreviva, em união de facto estável e duradoura de funcionário público;
8. face a todo o exposto, entende a recorrente ter-se operado a invocada inconstitucionalidade que, tida como existente, conduzirá à procedência da acção a decidir no Tribunal recorrido. NESTES TERMOS, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, por via disso, julgado inconstitucional, por violação dos Arts.13°, 36° e 67°, devidamente conjugados, da Constituição da República Portuguesa em vigor, a exigência das condições da inexistência de bens na herança do companheiro falecido e da impossibilidade de obtenção de pensão alimentar dos herdeiros do companheiro sobrevivo, que viveu em união de facto estável e duradoura, para efeito de reconhecimento do direito
à pensão de sobrevivência, a que se referem os Arts. 40° e 41° do mencionado Estatuto das Pensões de Sobrevivência, exigências essas que se consideraram advir da alusão destes aos Arts. 2020 e 2009 do Cod. Civil, [...]”.
7. Contra-alegou a recorrida, tendo concluído da seguinte forma:
“1. A lei restringe os efeitos jurídicos da união de facto, em matéria de prestações por morte, a quem tenha vivido em tais condições por mais de dois anos com pessoa não casada:
2. O Tribunal Constitucional vem considerando uniformemente que o princípio, com assento constitucional, da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeçam o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular;
3. É, com efeito, pacífico que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa não veda à lei a realização de distinção. Proíbe-lhe, apenas a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional;
4. Denota-se, no campo da doutrina e da jurisprudência - em consequência das diferenças entre duas realidades sociológica e culturalmente não inteiramente assimiláveis -, uma preocupação em distinguir entre o chamado concubinato duradouro e a comunhão duradoura de vida em condições análogas às dos cônjuges, exigindo este último um tipo legal mais exigente de convivência;
5. A interpretação feita no douto Acórdão recorrido não merece qualquer reparo ou censura, sendo a única admissível.”.
Apresentado e discutido memorando, cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. Do objecto do recurso
8.1. É o seguinte o teor dos preceitos que dão origem à interpretação questionada:
“Artigo 40º
(Herdeiros hábeis)
1 - Têm direito à pensão de sobrevivência como herdeiros hábeis dos contribuintes, verificados os requisitos que se estabelecem nos artigos seguintes: a) Os cônjuges sobrevivos, os divorciados ou separados judicialmente de pessoas e bens e as pessoas que estiverem nas condições do artigo 2020.º do Código Civil; [...] Artigo 41.º
(Ex-cônjuge e pessoa em união de facto)
[...]
2 - Aquele que no momento da morte do contribuinte estiver nas condições previstas no artigo 2020.º do Código Civil só será considerado herdeiro hábil para efeitos de pensão de sobrevivência depois de sentença judicial que lhe fixe o direito a alimentos e a pensão de sobrevivência será devida a partir do dia 1 do mês seguinte àquele em que a requeira, enquanto se mantiver o referido direito.
Por outro lado, o n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil (na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro) tem a seguinte redacção:
“1. Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º.
[...]”
Finalmente, ainda com interesse para os autos, o artigo 2009º, n.º 1, do Código Civil, por sua vez, enumera as “pessoas obrigadas a alimentos”, mencionando, nas alíneas a) a d), o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes, os ascendentes e os irmãos.
8.2. A conjugação do estatuído nestes preceitos levou a que, no acórdão recorrido, se afirmasse: “concorda-se em parte com a recorrente quando alega a independência e autonomia do direito à pensão de sobrevivência relativamente ao direito a alimentos à custa da herança do companheiro falecido já que, aquele, dependendo embora de lhe ser reconhecido o direito a alimentos pela herança, não depende de esta ter ou não ter bens suficientes”, bem como que “dúvidas não há de que o direito à pensão depende, absolutamente, da prova em juízo da existência dos pressupostos que lhe permitiriam [à recorrente] reclamar alimentos independentemente de os bens da herança serem ou não suficientes para tal” e, ainda que, “quanto às pessoas que possam invocar situações de facto análogas às dos cônjuges, reafirma-se que a invocação do direito à pensão de sobrevivência, depende da prova do direito aos alimentos o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do companheiro falecido com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das als. a) a d) do art. 2009° do CC”.
Assim sendo, questionando a recorrente a constitucionalidade da interpretação dos preceitos em causa, na medida em que exijam requisitos “para além da demonstração da existência da união de facto”, por considerar “não poder conceber-se tratamento diferente à viúva de funcionário público falecido e à companheira sobreviva, em união de facto estável e duradoura”, há, em primeiro lugar, que proceder à delimitação do objecto do recurso. É que, de facto, as transcrições que acima se fizeram permitem concluir que, para o Supremo Tribunal de Justiça, o direito à pensão de sobrevivência depende do reconhecimento do direito a alimentos pela herança, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do companheiro falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas. a) a d) do art. 2009° do Código Civil, mas não da prova da inexistência de bens na herança.
Deste modo, embora o requerimento de interposição do recurso refira igualmente uma interpretação dos preceitos questionados no sentido de que o direito à pensão de sobrevivência depende “também dos requisitos de prova da não possibilidade de obtenção de alimentos da herança do companheiro falecido ou dos próprios herdeiros do companheiro vivo”, da análise da decisão recorrida pode concluir-se que, em rigor, estão em causa as normas constantes da alínea a) do n° 1 do artigo 40° e do n.º 2 do artigo 41° do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público, interpretadas no sentido – aplicado na decisão recorrida - de que a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende não apenas da prova da união de facto - convivência com o falecido há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges -, mas também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil.
9. Da utilidade do conhecimento do recurso
Identificada a questão, importa verificar se da mesma pode e deve o Tribunal Constitucional conhecer. Na verdade, tendo o acórdão recorrido afirmado que “não pode deixar de concordar-se com o decidido nas instâncias pois não foi feita a prova desta impossibilidade [da obtenção de alimentos nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º do Código Civil], mas sempre se dirá que o reconhecimento do direito a alimentos nos termos do art. 2020° teria que ser obtido em acção em que tivesse sido demandada a própria herança e não, como aqui sucedeu, contra a Caixa Geral de. Aposentações”, pode colocar-se a questão da utilidade do conhecimento do recurso.
Na verdade, conforme este Tribunal tem repetidamente afirmado (cfr., entre outros, os Acórdãos n.ºs 337/94 e 3/2000 – publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 4 de Novembro de 1994 e de 8 de Março de 2000
-, e os Acórdãos n.ºs 283/97, 556/98, 490/99 - disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental. Isso significa, como se afirmou no Acórdão n.º 556/98, já citado, que “o recurso de constitucionalidade
é um recurso instrumental, só fazendo sentido dele conhecer quando a decisão que o resolve se pode projectar com utilidade sobre a causa”, concluindo-se assim
“que dele se não deva conhecer quando se não verifique qualquer efeito útil do mesmo sobre ela”.
Acontece, porém, que, mesmo que se entenda que a referência efectuada no acórdão
à necessidade de o reconhecimento do direito a alimentos ser obtido em acção contra a própria herança - e não contra a Caixa Geral de Aposentações – deve ser considerada integrada no fundamento da negação da revista, o facto é que, a ser considerada inconstitucional a interpretação agora questionada, na integral dimensão suscitada pela recorrente ou numa dimensão que abale a necessidade de fazer prova do direito a alimentos da herança, numa acção a intentar contra esta, com o prévio reconhecimento da impossibilidade de os obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º do Código Civil, forçosamente haverá que concluir que, estando apenas em causa a pretensão de obtenção de uma pensão de sobrevivência, desnecessária será qualquer outra acção, que não a destinada a fazer valer aquela pretensão perante a entidade obrigada ao pagamento dessa pensão de sobrevivência. Não estamos, assim, perante um caso em que o conhecimento do recurso seria inútil.
10. Da alegada inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 40°, n°
1, alínea a), e 41°, n° 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público – Decreto-Lei n.° 142/73, de 31 de Março, na redacção do Decreto-Lei n.° 191-B/79, de 25 de Junho.
10.1. Antes de proceder à análise da questão, convirá fazer uma advertência. De facto, dada a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito do processo de fiscalização concreta, restrita à apreciação da questão de constitucionalidade da norma aplicada, não está em causa neste recurso, nem poderia estar, a determinação de qual a “melhor interpretação” das normas infraconstitucionais questionadas, quanto à remissão que nelas se faz para os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 2020º do Código Civil. Do mesmo modo, também não está aqui em causa determinar se, tendo em atenção a evolução legislativa dos últimos anos, a interpretação acolhida pelo tribunal recorrido é a mais correcta. Na verdade, tendo sido alargada de forma significativa, depois da legislação de 1977, a protecção legal das pessoas que vivem em união de facto, poderia questionar-se, nomeadamente, se o reconhecimento do direito a
“protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei”, não deveria conduzir a uma diferente interpretação dos preceitos em causa. Nesta sede, porém, apenas há que verificar se a exigência da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º do Código Civil, resultante da interpretação feita quanto à remissão operada pelos artigos 40°, n.º 1, e 41°, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público, é ou não inconstitucional.
10.2. Entende a recorrente que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorreu
“a preceituado inquinado do vício de inconstitucionalidade”, por violação dos
“princípios da igualdade de direito, do direito à constituição de família e do direito à protecção, pela comunidade e pelo Estado, dos elementos que integram a família”. De facto, ainda segundo a recorrente, “o avanço da sociedade e o reconhecimento da protecção da união de facto, na legislação que lhe é aplicável, conduz a não poder conceber-se tratamento diferente à viúva de funcionário público falecido e à companheira sobreviva, em união de facto estável e duradoura de funcionário público”.
Vejamos.
Sobre uma questão paralela a esta, em que estava em causa a apreciação da constitucionalidade de uma outra norma – a constante do artigo 8º (que tem como epígrafe “situação de facto análoga à dos cônjuges”) do Decreto-Lei n.º 322/90, de 18 de Outubro (diploma que definiu a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social) -, na interpretação segundo a qual a atribuição de pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da segurança social, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da verificação do facto de este não poder obter alimentos das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º do Código Civil, o Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar no Acórdão 195/2003, entretanto disponível na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm. Aí se concluiu, embora com votos de vencido que entendiam existir uma violação do princípio da igualdade, pela improcedência do recurso de constitucionalidade. Para chegar a tal conclusão, afirmou-se, após uma extensa exposição da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre aquele princípio, nomeadamente, o seguinte:
“[...] Ora, será que a distinção entre cônjuges (contemplados como titulares do direito às prestações em questão no artigo 7º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 322/90) e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de fixação das condições de atribuição da pensão de sobrevivência, requerendo para estas que não possam exigir alimentos aos seus familiares mais próximos, é violadora do princípio da igualdade? A perspectiva da recorrente parece ser a de que a distinção entre pessoas casadas e pessoas em situação de união de facto, para efeitos de atribuição da pensão de sobrevivência, viola o princípio da igualdade por ser destituída de fundamento razoável, constitucionalmente relevante, considerando, designadamente, que “sempre será necessário fazer prova da já referida vivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges”. Cumpre, porém, reconhecer que este último argumento dá por pressuposto o reconhecimento de uma imposição constitucional, por força do princípio da igualdade, de um mesmo tratamento para cônjuges e pessoas que vivem em união de facto (ainda que há mais de dois anos). Ora, numa certa perspectiva pode, é certo, admitir-se que uma certa caracterização da situação de união de facto, pela sua duração e por outras circunstâncias (por exemplo, a existência de filhos comuns) a aproxima da situação típica dos cônjuges. No caso, porém, a exigência de uma convivência há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges serve apenas para caracterizar de forma mínima a situação de união de facto que poderá ser juridicamente relevante, para lhe serem reconhecidos – embora, segundo o Código Civil, em medida bastante limitada e muito distinta da relação entre os cônjuges – alguns efeitos jurídicos. É que, diversamente do que acontece com a relação matrimonial, em que um acto revestido de uma forma jurídica solene marca a criação de uma nova relação jurídica, no caso da convivência entre pessoas não casadas, justamente por estar em causa uma situação de união de facto, o tempo mínimo de convivência é considerado relevante pelo legislador para o efeito de reconhecimento de efeitos jurídicos
(assim, por exemplo, o artigo 1º, n.º 1, das citadas Lei n.ºs 135/99 e 7/2001 condicionam ambos os efeitos jurídicos que reconhecem à circunstância de se tratar de pessoas “que vivem em união de facto há mais de dois anos”. O problema não pode, pois, ficar resolvido logo com a mera invocação da existência de uma convivência há mais de dois anos, em condições análogas às dos cônjuges. Antes está, precisamente, em saber se uma situação de união de facto, assim caracterizada, pode ser tratada de forma diversa do casamento, para o efeito em causa. Ora, como este Tribunal tem reconhecido, existem diferenças importantes, que o legislador pode considerar relevantes, entre a situação de duas pessoas casadas, e que, portanto, voluntariamente optaram por alterar o estatuto jurídico da relação entre elas – mediante um “contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”, como se lê no artigo 1577º do Código Civil –, e a situação de duas pessoas que (embora convivendo há mais de dois anos “em condições análogas às dos cônjuges”) optaram, diversamente, por manter no plano de facto a relação entre ambas, sem juridicamente assumirem e adquirirem as obrigações e os direitos correlativos ao casamento. Assim, como se salientou, por exemplo, também no referido Acórdão n.º 275/2002,
“não se pode excluir a liberdade do legislador de prever um regime jurídico específico para os cônjuges, visando, por exemplo, a prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio”. Pelo que, “considerando desde logo a existência de especiais deveres entre os cônjuges”, se pode dizer, como se afirmou no citado Acórdão n.º 14/2000, que
“(...) de harmonia com o nosso ordenamento (ainda suportado constitucionalmente), o regime das pessoas unidas pelo matrimónio confrontadamente com a união de facto não permite sustentar que nos postamos perante situações idênticas à partida e, consequentemente, que requeiram tratamento igual.” Ora, um dos pontos em que o tratamento jurídico diverso entre ambas as situações pode relevar é, justamente, o das condições, ora em causa, para o reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência no caso da união de facto. Importa, aliás, recordar que, por exemplo, quem vive em situação de união de facto também não é herdeiro (nem legitimário, nem legítimo) do de cujus com quem convivia, apenas tendo um direito a exigir alimentos da herança, se não os puder obter das pessoas referidas no artigo 2009º, n.º 1, alíneas a) a d) do Código Civil. E, se é certo poder sustentar-se que os fundamentos e a natureza dos direitos à pensão de sobrevivência e a alimentos são distintos, não pode deixar de notar-se o paralelo entre a situação sucessória do convivente em união de facto – reduzida ao referido direito a exigir alimentos da herança – e a situação decorrente da norma em causa, quanto à condição questionada para atribuição da pensão de sobrevivência. Ora, nem esta diferenciação de tratamento pode considerar-se destituída de fundamento razoável ou arbitrária, nem, por outro lado, se baseia num critério que tenha de ser irrelevante, considerando o efeito jurídico visado. Na verdade, trata-se, aqui, tal como na distinção da posição sucessória do cônjuge e do convivente em união de facto, justamente de um daqueles pontos do regime jurídico em que o legislador trata mais favoravelmente a situação dos cônjuges, não só visando objectivos políticos de incentivo ao matrimónio – enquanto instituição social que tem por criadora de melhores condições para assegurar a estabilidade e a continuidade comunitárias –, mas também como reverso da inexistência de um vínculo jurídico, com direitos e deveres e um processo especial de dissolução, entre as pessoas em situação de união de facto. Tal diverso tratamento jurídico não pode considerar-se destituído de fundamento constitucionalmente relevante, não podendo divisar-se na norma em apreço violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental.
[...]”
10.3. Ora, ainda que se admita que o princípio da igualdade não pressupõe, necessariamente, uma imposição constitucional de, em todas as situações, dar um mesmo tratamento aos cônjuges e aos que vivem em união de facto, a questão de constitucionalidade ora colocada não fica automaticamente resolvida, havendo que apurar se a interpretação normativa em causa não violará outras normas ou princípios constitucionais.
Invoca a recorrente que a interpretação questionada viola igualmente o “direito
à constituição de família e o direito à protecção, pela comunidade e pelo Estado, dos elementos que integram a família”.
Em relação a este ponto, embora se admita que a Constituição, ao falar do direito de constituir família e de contrair casamento, comporta a interpretação no sentido de que a constituição de família não é apenas produto do casamento, mas pode também resultar de uma situação de união de facto estável e duradoura
(que, no caso dos autos, terá durado, pelo menos, 29 anos), não se poderá ter por adquirido que dessa distinção entre “constituir família” e “contrair casamento” (art.36º,1 da CRP), bem como da protecção devida à família “como elemento fundamental da sociedade” (art. 67º,1 da CRP) resulte necessariamente, para o legislador, uma obrigação de reconhecer e proteger a união de facto estável e duradoura, em termos rigorosamente idênticos aos da família baseada no casamento.
Mas ainda que assim se considere, e mesmo que se entenda, na linha dos Acórdãos n.ºs 275/2002 e 195/2003, que o legislador é livre de prever um regime específico para os cônjuges, visando, por exemplo, “a prossecução de objectivos políticos de incentivo ao matrimónio” e que esta liberdade permite que o legislador considere que o “unido de facto”, ao contrário do cônjuge, possa não ser herdeiro do “de cujus”, sempre se poderá questionar se a interpretação dos preceitos em causa, efectuada pela decisão recorrida, no sentido de que a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil, suporta o teste da constitucionalidade, nomeadamente se respeita as exigências do princípio da proporcionalidade ou da 'proibição do excesso'.
10.4. É pacífico que os fundamentos e a natureza dos direitos a alimentos e à pensão de sobrevivência são diversos.
O direito a alimentos resulta de relações familiares ou para-familiares e visa fazer face a uma situação de necessidade do alimentando. O direito à pensão de sobrevivência, por seu turno, tem por base descontos obrigatoriamente realizados, ao longo da vida profissional (durante um período mínimo), pelo funcionário público entretanto falecido, sendo relevantes, para a determinação do montante da pensão, não só o montante da contribuição, mas também o período contributivo. Além disso, a pensão de sobrevivência é paga por uma entidade pública, para a qual obrigatoriamente descontam os funcionários públicos, e o seu objectivo é compensar parte da perda dos rendimentos determinada pela morte do beneficiário da Caixa Geral de Aposentações. O direito à pensão de sobrevivência é, por isso, autónomo e independente de um direito a alimentos, quer à custa dos próprios familiares, quer à custa da herança de um companheiro falecido.
A atribuição do direito a uma pensão de sobrevivência surge, assim, mais do que como consequência do reconhecimento de uma necessidade de protecção da família, fundada no artigo 67º da Constituição, como corolário do direito à segurança social, previsto no artigo 63º também da Constituição. Nos termos do n.º 3 deste artigo, “o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez, orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”, o que pode ser encarado como tradução de uma preocupação fundada na dignidade da pessoa humana, referida no artigo 1º, e que resulta também do princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º, ambos da Constituição. E mesmo que se entendesse que tais princípios não imporiam, necessariamente, a consagração de um mecanismo como a pensão de sobrevivência, certo será que tal mecanismo se pode considerar neles fundado.
Há, então, que indagar se a exigência de que o companheiro sobrevivo, “unido de facto” a um beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, prove, numa acção necessariamente intentada contra a herança do companheiro falecido, além da situação de união de facto estável e duradoura, não só a necessidade de alimentos, mas também a sua absoluta indigência, por impossibilidade de os obter por parte dos seus familiares (descendentes, ascendentes, ou irmãos), para que possa, posteriormente, beneficiar de uma pensão de sobrevivência, atribuída pela entidade pública para a qual o companheiro falecido foi obrigado a descontar durante a sua vida profissional, representa um sacrifício excessivo e desproporcionado, violando, nesse caso, o princípio da proporcionalidade.
10.5. O princípio da proporcionalidade opera como limitação ao exercício do poder público, funcionando, em sede de direitos, liberdades e garantias, como um limite às restrições admissíveis. Nesta matéria, a exigência de proporcionalidade está expressamente mencionada no n.º 2 do artigo 18º da Constituição, mas, em termos genéricos, como limitação geral ao exercício do poder público, pode considerar-se que tal resulta iniludivelmente do próprio princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da mesma Constituição.
O Tribunal Constitucional tem tido frequentemente oportunidade de se pronunciar sobre tal princípio, não só para com ele confrontar normas penais incriminatórias, mas também outras normas, que estabeleciam limitações a direitos fundamentais.
Da sua jurisprudência, cujo sentido foi sintetizado no Acórdão n.º 187/01
(também disponível, tal como os restantes que a seguir citaremos, na página Internet do Tribunal Constitucional, no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm), decorre, nomeadamente, que o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, se desdobra como se afirmou já no Acórdão n.º 634/93, citando a doutrina, “em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”. Existem assim, três exigências na relação entre as medidas e os fins prosseguidos. Ou seja, como se afirmou no Acórdão n.º 1182/96 “num primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa […] é apropriada à prossecução do fim a ela subjacente”; de seguida, “haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos termos, significou a «menor desvantagem possível» para a posição jusfundamental decorrente do direito […]”; finalmente, haverá que “pensar em termos de «proporcionalidade em sentido restrito», questionando-se «se o resultado obtido (...) é proporcional à carga coactiva» que comporta”. Por outro lado, estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, um largo âmbito de discricionariedade, pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder assinalar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, um carácter manifestamente excessivo da medida ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.
10.6. Ora, no caso que nos ocupa (e de outros não há que agora cuidar), as normas questionadas foram interpretadas no sentido de que o companheiro sobrevivo, para que lhe possa vir a ser atribuída a pensão de sobrevivência, devida pela instituição pública para a qual o companheiro falecido foi obrigado a descontar durante a sua vida profissional, terá, além de provar a existência da união de facto e a necessidade de alimentos, de fazer prova, ainda, numa acção intentada directamente contra a herança do falecido, da impossibilidade de obter alimentos dos seus familiares, referidos nas alíneas a) a d) do artigo
2009º do Código Civil. Isto é, o companheiro sobrevivo terá de fazer prova de um estado de absoluta indigência, para que a Caixa Geral de Aposentações, “pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e com património próprio, que tem por escopo a gestão do regime de segurança social do funcionalismo público em matéria de pensões” e que incorporou o Montepio dos Servidores do Estado (Decreto-Lei n.º 277/93, de 10 de Agosto), lhe pague a pensão de sobrevivência, devida em caso de morte de beneficiário daquela Caixa. A exigência que lhe é feita de que, embora pretenda, única e exclusivamente, que lhe seja atribuída uma pensão de sobrevivência, instaure uma acção contra a herança para a prova do direito a receber alimentos dessa herança está, por seu turno, intrínseca e indissoluvelmente, ligada à exigência de prova, nessa acção, daquela indigência absoluta, ou seja, da impossibilidade de obtenção de alimentos por parte dos seus familiares referidos nas alíneas a) a d) do art. 2009º do Código Civil, tanto mais que, no caso dos presentes autos, está não só provada a situação de “união de facto” – “pelo menos desde 1970 até
25/04/99 [data do falecimento] a A. [recorrente] e M. [beneficiário da Caixa Geral de Aposentações] viveram juntos na mesma casa como se marido e mulher fossem, nomeadamente dormindo na mesma cama e tomando as refeições juntos” -, mas também está provado que a recorrente “não dispõe de quaisquer rendimentos e não tem bens que lhos proporcionem”, de modo a assegurar uma sobrevivência minimamente digna.
Assim sendo, não estaremos perante uma medida manifestamente inadequada ou excessiva, eventualmente com inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação a vantagens que, porventura apresente?
A resposta deve ser afirmativa.
De facto, tendo presente que o direito de constituir família (artigo 36º, n.º 1, da Constituição) não é apenas produto do casamento, mas pode também resultar de uma situação de união de facto estável e duradoura (nos termos que o legislador, dentro da sua liberdade de conformação, fixa), é, no mínimo, duvidoso que o condicionamento do direito à pensão de sobrevivência, tal como fixado na interpretação normativa que é objecto do recurso - necessidade da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil -, possa ser considerado um instrumento adequado e aceitável para a prossecução de eventuais objectivos políticos de protecção ou incentivo ao casamento. Ao invés, não deixaria, se assim fosse utilizado, de lhe ser aplicável a crítica de que poderia conduzir a uma perversão mercantilista da instituição casamento. Por outro lado, não sendo o
“unido de facto” herdeiro do de cujus, mais difícil se revela sustentar aquele condicionamento.
É certo que se poderia entender que, sendo os recursos escassos e podendo a pensão de sobrevivência envolver, ao menos em parte, a mobilização de fundos públicos, o objectivo visado pela norma, na interpretação da decisão recorrida, seria o de reduzir essa necessidade de fazer intervir aqueles fundos, remetendo para entidades privadas a solução de uma situação de eventual carência económica. Se assim fosse, porém, desde logo se poderia discutir a legitimidade desse procedimento, sobretudo tendo em atenção que tal pensão está ainda intrinsecamente relacionada com os descontos efectuados em vida do beneficiário. Por outro lado, sempre seria contestável a ideia de que o referido condicionamento constituísse a “menor desvantagem possível” para a posição jusfundamental decorrente do direito à segurança social e à protecção nas
“situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho”, já que outros meios poderiam ser encontrados para atingir o objectivo visado (por exemplo, alargando o período de garantia). E, finalmente,
“em termos de proporcionalidade em sentido restrito”, é manifesto que “o resultado obtido é desproporcionado em relação à carga coactiva que comporta”, com inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação a vantagens que, porventura, apresente.
Recordando, então, o que se deixou dito sobre as três exigências que o princípio da proporcionalidade postula para a relação entre as medidas e os fins prosseguidos, se bem que se pudesse afirmar, desde logo, que a interpretação normativa em causa o viola quanto à primeira dessas exigências, isto é, quanto à adequação ao fim visado, qualquer que este seja, e que seria extremamente contestável que o não violasse quanto à segunda, isto é, quanto ao princípio da exigibilidade, sempre seria indiscutível que o viola em relação à terceira, ou seja, quanto ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da “justa medida”.
Ora, não existe motivo ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido para uma tal solução e a citada violação não é permitida, “ainda que fora das hipóteses cobertas pelo artigo 18.º, n.º 2, da Constituição”, uma vez que, como se escreveu, por exemplo, nos Acórdãos n.ºs 205/00 e 491/02 deste Tribunal, há
“exigências do princípio da proporcionalidade decorrentes, já não especificamente do artigo 18º, n.º 2, da Constituição, mas do princípio geral do Estado de direito, consignado no artigo 2º da mesma”. Estando em causa um direito consagrado na Constituição, o condicionamento apontado não pode considerar-se legítimo, pois não respeita as exigências constitucionais: é, no mínimo, de muito duvidosa adequação ao fim que porventura vise atingir; não é indispensável e excede manifestamente o que seria necessário. Deve, por conseguinte, ser qualificado como desnecessário e desproporcionado, não respeitando, por isso, o princípio da proibição do excesso.
10.7. Por tudo o exposto, há que concluir pela inconstitucionalidade da norma que se extrai dos artigos 40°, n.º 1, e 41°, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público, quando interpretada, como o fez a decisão recorrida, no sentido de que a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, o qual terá de ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no artigo
18º, n.º 2, mas decorrente também do princípio do Estado de direito, consagrado no artigo 2º, conjugado com o disposto nos artigos 36º, n.º 1, e 61º, n.ºs 1 e
3, todos da Constituição da República Portuguesa.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 2º, 18º, n.º 2, 36º, n.º 1, e 63º, n.ºs 1 e 3, todos da Constituição da República Portuguesa, a norma que se extrai dos artigos 40°, n.º 1, e 41°, n.º 2, do Estatuto das Pensões de Sobrevivência no Funcionalismo Público, quando interpretada no sentido de que a atribuição da pensão de sobrevivência por morte de beneficiário da Caixa Geral de Aposentações, a quem com ele convivia em união de facto, depende também da prova do direito do companheiro sobrevivo a receber alimentos da herança do companheiro falecido, direito esse a ser invocado e reclamado na herança do falecido, com o prévio reconhecimento da impossibilidade da sua obtenção nos termos das alíneas a) a d) do art. 2009° do Código Civil;
b) Em consequência, conceder provimento ao presente recurso, devendo ser reformada a decisão recorrida, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade ora emitido.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004
Gil Galvão Vítor Gomes Bravo Serra (vencido, pelo essencial das razões que levaram à decisão constante do Acórdão nº 195/2003, que subscrevi, embora reportada ela a outra norma que não a ora questionada, razões essas que entendo serem transponíveis para o caso em apreço) Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencida porque, independentemente de saber se a norma impugnada pela recorrente corresponde àquela que a decisão recorrida realmente aplicou, não considero que ocorra aqui qualquer violação do princípio da proporcionalidade. Note-se que, para o acórdão recorrido, e contrariamente ao afirmado no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, não é condição do reconhecimento do direito à pensão a impossibilidade de obter alimentos da herança; o Supremo Tribunal de Justiça apenas considerou resultar dos preceitos aplicáveis e agora em causa que a recorrente tinha, como condição daquele reconhecimento, que demonstrar ter direito a alimentos da herança, o que implicava a prévia demonstração de os não poder obter dos familiares indicados nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 2009º do Código Civil. Não se entendeu, assim, que a recorrente apenas tinha direito à pensão se não conseguisse obter alimentos da herança; apenas que para obter alimentos da herança ou para conseguir o reconhecimento do direito à pensão tinha que, em ambos os casos, provar não os conseguir dos familiares referidos. Ora não creio que tal exigência seja constitucionalmente censurável, por ser excessivo, como entendeu o acórdão; nem vejo que exigências constitucionais é que serão desrespeitadas. Bastaria, no fundo, ter obtido o reconhecimento judicial dessa impossibilidade.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza