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Proc. 18/04
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A Câmara Municipal de Vila do Conde reclama, ao abrigo do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 25/82, de 15 de Novembro ( LTC ), do despacho proferido a fls. 318 do Proc. nº 6958/02, da 2ª secção, do Tribunal Central Administrativo que, por considerá-lo extemporâneo, não admitiu o recurso interposto do acórdão de 1 de Abril de 2003 (fls. 290 e segs.), o qual negou provimento a recurso interposto de sentença do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto que concedera provimento a impugnação deduzida por A. e B. contra a liquidação da
“taxa de urbanização”, relativa ao licenciamento de loteamento de um prédio, situado no lugar de ----------------------, do concelho de Vila do Conde, no montante de 148.738.140$00.
Em síntese, alega que, tendo sido julgado deserto, por falta de alegações, recurso anteriormente interposto do mesmo acórdão, o prazo de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional começa a correr a partir da notificação do despacho que extingue o recurso, nos termos dos nºs 2 e 4 do artigo 70º da LTC (“... ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual.).
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu o seguinte parecer no sentido da improcedência da reclamação:
“O recurso, originariamente interposto pelo reclamante, para este Tribunal, pelo requerimento de fls. 301, é intempestivo, já que o não foi no prazo de 10 dias contados da notificação da decisão recorrida..
É certo que – foi lapso manifesto no Tribunal “a quo” tal requerimento foi tratado como incorporando um recurso para o STA, o qual veio a ser considerado deserto por falta de alegação do recorrente – aproveitando a reclamante tais vicissitudes processuais para renovar o requerimento originário. Ora, neste concreto circunstancialismo processual, em que – além do mais – o recurso interposto se não funda nas alíneas b) e f) – temos como muito duvidosa a invocabilidade do preceituado no artº 70º, nºs. 2 e 4, da Lei nº 28/82, já que a interposição de recurso de constitucionalidade , com os fundamentos invocados, nada tinha a ver com o ónus de esgotamento dos recursos ordinários possíveis. Acresce que não se verificam manifestamente os pressupostos do recurso interposto, já que:
- o decidido pelo TCA em nada afronta o caso julgado, decorrente da anterior prolação do Acórdão nº 577/2000, que se limitou a dirimir a questão da inconstitucionalidade orgânica das normas que instituíam a taxa controvertida;
- o mesmo acórdão do TCA não recusou aplicar qualquer norma regulamentar com fundamento em inconstitucionalidade, assentando a ‘ratio decidendi’ de tal acórdão na inverificação dos ‘pressupostos de facto’ que legitimariam a cobrança da dita taxa, por se ter entendido que ela não tem cabimento a propósito de um licenciamento de loteamento, em que o encargo de realização das respectivas infraestruturas urbanísticas fica à responsabilidade do loteador. Nestes termos, somos de parecer que a presente reclamação deverá ser julgada improcedente.”
2. Interessam à decisão da reclamação as ocorrências processuais seguintes:
a) A ora reclamante foi notificada do acórdão do Tribunal Central Administrativo de 1 de Abril de 2003 (acórdão recorrido) por carta registada de 3 de Abril de
2003; b) Em 30 de Abril, pagando a multa a que se refere o artigo 145º do Código de Processo Civil, a reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional
(fls. 301-304); c) Apesar dessa indicação, tal recurso (bem como outro do Ministério Público, mas este interposto para o Supremo Tribunal Administrativo) foi admitido para o Supremo Tribunal Administrativo, por despacho de 12 de Junho de 2003 (fls. 305); d) A reclamante foi notificada desse despacho por carta de 16 de Junho de 2003; e) Não houve reacção contra este despacho, seja por parte da ora reclamante, seja por parte de qualquer outro interveniente processual. f) Por despacho de 23 de Setembro de 2003, esse recurso foi julgado deserto, por falta de alegações da recorrente (fls. 311); g) A recorrente foi notificada deste despacho por carta de 25 de Setembro de
2003; h) Em 9 de Outubro de 2003, a reclamante interpôs recurso do acórdão mencionado na al. a), para o Tribunal Constitucional, com requerimento do seguinte teor
(fls. 315-317):
“... não podendo conformar-se com o teor do douto acórdão que antecede, vem, nos termos do disposto no art. 70-2 e 4 da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional: a) Para verificação da violação do caso julgado formado pelo julgamento de não inconstitucionalidade constante do Acórdão do Tribunal Constitucional nº
577/2000, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 80-1 e 69 da LTC; dos arts. 494-1/i e 495 do CPC; e do art. 221 da CRP; b) ao abrigo do disposto no art. 70-1/a da LTC, pretendendo-se a fiscalização concreta da constitucionalidade das normas dos arts. 39 e 41-1/a do Regulamento de Taxas e Licenças do Município de Vila do Conde junto aos autos.”
i) Por despacho de 21 de Outubro de 2003 (fls. 318) foi indeferido o requerimento de interposição do recurso, nos seguintes termos:
“Por extemporâneo, não admito o recurso interposto do acórdão, do que a recorrente foi notificada por registo postal do dia 3/4/03 – artº 75º da Lei nº
13-A/98, de 26/2.”
3. Antes de mais, convém esclarecer que o recurso cuja não admissão está em apreciação não é aquele a que se refere o requerimento de fls. 304 [cfr. supra al. b)] nem algo que, de algum modo, possa considerar-se a sua renovação.
Esse recurso, apesar de interposto para o Tribunal Constitucional, foi expressamente admitido para o Supremo Tribunal Administrativo pelo despacho de fls. 305 [cfr. supra al. c)]. As partes, incluindo a ora reclamante, foram notificadas de tal despacho, não tendo reagido por qualquer forma. Foi esse recurso, assim convertido em recurso ordinário para o Supremo Tribunal Administrativo, que o despacho de fls. 311 julgou (também) deserto por falta de alegações (cfr. nº 4 do artigo 282º do Código de Procedimento e de Processo Tributário) [cfr. supra al. e)], aliás, em coerência com o pressuposto de que se tratava de recurso para o Supremo Tribunal Administrativo.
A ora reclamante, na sequência da extinção desse anterior recurso, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 1 de Abril de
2003 (e não do despacho a julgar deserto o recurso anterior), invocando o disposto nos nºs 2 e 4 do artigo 70º da LTC. Foi esse recurso que o despacho reclamado não admitiu - por julgá-lo extemporâneo, tomando por referência a data de notificação do acórdão recorrido – e que a reclamante sustenta estar em tempo porque interposto dentro do prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que julgou deserto o recurso anterior.
O Tribunal Constitucional apenas é chamado a intervir para decidir sobre o acerto do despacho que não admitiu o recurso interposto pelo requerimento de 9 de Outubro de 2003 (fls. 315). O recurso anterior, bem ou mal, foi admitido como se tivesse sido interposto para o Supremo Tribunal Administrativo e, nesse pressuposto, foi depois julgado deserto por falta de alegações, com o que as partes se conformaram.
Deste modo, processualmente firmado que o seu destino era o STA, porque assim foi tratado pelo tribunal a quo ( quer no momento em que o admitiu, quer no momento em que o extinguiu por falta de alegações) sem reacção de quem tinha legitimidade (pela banda da ora reclamante com aceitação implícita, pois que precisamente invoca essa sua natureza para deduzir o efeito que pretende), fica excluída dos poderes de cognição do Tribunal Constitucional – que, em reclamação, só tem competência para rever o despacho que indefira ou retenha o recurso de constitucionalidade para ele interposto (artigo 76º, nº 4 da LTC) – qualquer apreciação do que a tal (outro) anterior recurso “ordinário” possa respeitar, seja quanto à sua tempestividade, seja quanto às vicissitudes processuais que conduziram ao seu não prosseguimento.
Posto isto, há que saber se e em que casos é tempestivo um recurso interposto para o Tribunal Constitucional dentro do prazo de 10 dias após ter sido julgado deserto, por falta de alegações, anterior recurso ordinário que havia sido interposto da mesma decisão.
4. A reclamante socorre-se do artigo 70º da LTC, que é do seguinte teor, na parte que interessa:
“ ( ….)
2. Os recursos previstos nas alíneas b) e f) do número anterior apenas cabem das decisões que não admitam recurso ordinário, por a lei o não prever ou por já haverem sido esgotados todos os que caso cabiam, salvo os destinados a uniformização de jurisprudência.
3. ( …)
4. Entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários, nos termos do nº 2, quando tenha havido renúncia, haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou os recursos interpostos não possam ter seguimento por razões de ordem processual.
( …). “
A reclamante pretende que o inciso “não possam ter seguimento por razões de ordem processual” abrange o caso de deserção do recurso por falta de alegações (que sustenta ser uma razão de ordem processual) e que essa aplicação tem por efeito diferir, para a data da notificação da decisão que ponha termo ao recurso ordinário com esse fundamento, o dies a quo do prazo de recurso para o Tribunal Constitucional.
Vejamos.
Nos termos do nº 1 do artigo 75º da LTC, o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias. Segundo as regras gerais, tal prazo começa a correr com a notificação da decisão judicial recorrida
(artigo 685º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 69º da LTC). O nº 2 do mesmo artigo 75º ressalva desta regra, apenas, os casos em que tenha havido inadmissão (ou decisão de não seguimento) dos recursos ordinários com fundamento em irrecorribilidade, caso em que o prazo se conta do momento em que se torna definitiva a decisão que não admita o recurso.
Todavia, não se resumem ao artigo 75º da LTC as normas que neste diploma legal interessam para o problema de determinação do termo inicial do prazo de recurso para o Tribunal Constitucional.
A Lei nº 13-A/98, de 28 de Fevereiro, veio resolver uma divergência jurisprudencial quanto ao sentido do “esgotamento dos recursos ordinários”. Para uma posição (cfr. ac. nº 8/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol.,
1988, pp. 1065 e segs.) esse pressuposto do recurso de constitucionalidade não impunha a efectiva utilização de todos os recursos previstos na lei; consideravam-se esgotados todos os recursos ordinários também quanto já não pudesse interpor-se o recurso ordinário por ter havido renúncia, por ter decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição ou quando não pudessem tais recursos ter seguimento por razões de ordem processual. Para a outra corrente
(cfr. Ac. nº 282/95, in Diário da República, II Série, de 24 de Maio de 1996), tal pressuposto impedia, nas hipóteses a que tinha aplicação, que se interpusesse recurso de constitucionalidade de decisões relativamente às quais estivesse previsto na lei recurso ordinário. O legislador optou por aquele primeiro sentido.
Ora, esta solução implica – não de um ponto de vista puramente lógico, mas para que a opção legislativa tenha efeitos práticos e porque só assim cobra sentido face aos antecedentes de que historicamente emergiu – que o termo inicial do prazo de recurso de constitucionalidade seja diferido para o momento em que ocorre o evento que a lei fez equivaler ao esgotamento dos recursos ordinários. Isto mesmo foi reconhecido no Acórdão nº 457/99, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Março de 2000 (e também in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44º vol., p. 629 e segs.) onde pode ler-se – a propósito da tempestividade de um recurso para o Tribunal Constitucional interposto depois de decorrido o prazo para interposição do recurso ordinário, mas em termos que são generalizáveis às restantes hipóteses previstas no nº 4 do artigo 75º, cobrindo, designadamente, o caso de o recurso ordinário não ter seguimento por razões processuais –, o seguinte:
«A seguir-se a referida posição, consagrada no Acórdão nº 8/88 – segundo a qual se acham esgotados todos os recursos ordinários também quando haja decorrido o respectivo prazo sem a sua interposição – deve entender-se, numa aplicação analógica do artigo 75º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que, nesses casos, nas palavras de Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, cit., p.332) “o prazo para interpor o recurso de constitucionalidade só começa a correr após o termo do prazo para interpor o recurso ordinário que no caso coubesse” e que não foi interposto».
Porém, para que ocorra este diferimento do termo inicial do prazo a que se refere o artigo 75º da LTC é necessário que a situação caiba numa das hipóteses previstas no nº 4 do artigo 70º o que desde logo exige que pertença ao domínio de aplicação do nº 2 do mesmo artigo 70º. Com efeito, o nº 4 é uma explicitação ou desenvolvimento do conceito de “esgotamento dos recursos ordinários” (“Entende-se que se acham esgotados todos os recursos ordinários, nos termos do nº 2, quando …”). As implicações que dele se admitiram quanto à de contagem do prazo de interposição do recurso têm o mesmo âmbito em que é operativo o conceito explicitado: as situações em que é exigido o esgotamento da via ordinária, ou seja, os recursos interpostos ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
E não pode pensar-se na aplicação analógica a hipóteses em que o recurso para o Tribunal Constitucional seja interposto ao abrigo de outras alíneas do nº 1 do artigo 70º porque a norma que, em matéria de determinação do termo inicial do prazo de recurso, se admite resultar da conjugação dos seus nºs
2 e 4 assume natureza excepcional, relativamente à regra geral de que o prazo de interposição de recurso se conta a partir da notificação da decisão recorrida. À sua aplicação analógica a outros casos de recurso para o Tribunal Constitucional opõe-se a regra do artigo 11º do Código Civil.
De modo que, ainda antes de averiguar se a deserção do recurso ordinário por falta de alegações cabe no conceito de “não seguimento por razões de ordem processual”, cumpre analisar o requerimento de interposição para ver se o recurso para o Tribunal Constitucional pode considerar-se interposto ao abrigo da alíneas b) ou f) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
Seguramente que não cabe.
A reclamante disse, no requerimento de fls. 317, que interpunha o recurso:
- ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 80º, nº1 e 69º da LTC, dos artigos 494º, nº 1, alínea i) e 495º do Código de Processo Civil e do artigo 211º da Constituição, para violação do caso julgado formado pela decisão constante do Acórdão nº 577/2000, do Tribunal Constitucional;
- ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da LTC, para fiscalização da constitucionalidade das normas dos artigos 39º e 41º, nº 1, alínea a) do Regulamento de Taxas e Licenças do Município de Vila do Conde.
Invocou, portanto, um fundamento atípico e um fundamento previsto noutra das alíneas do nº 1 do artigo 70º, nenhum deles abrangido pelo nº 2 do mesmo preceito legal [No sentido de que a violação ou ofensa de caso julgado formado no processo sobre decisão do Tribunal em matéria de constitucionalidade
(ou ilegalidade ) é fundamento atípico de recurso para o Tribunal Constitucional, cfr. Ac. nº 340/2000, in Diário da República, II Série, de 9 de Novembro de 2000. Para decisão da questão que neste passo nos ocupa, nem sequer seria necessário chegar a tal compromisso (o de que é fundamento autónomo), podendo tomar-se a afirmação a benefício de raciocínio (Para mais desenvolvimentos, cf. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, “Admissibilidade de um recurso autónomo para o Tribunal Constitucional por violação de caso julgado”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Colaço, Vol. II, p.479 e segs. e Isabel Alexandre, “O caso julgado na jurisprudência constitucional portuguesa”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, p. 62 e segs.). Basta que não seja, ou que não seja recondutível – e, no caso, não é porque, a reconduzir-se a algum fundamento típico, só poderia pensar-se no da alínea a): desaplicação – a um dos fundamentos que integram o domínio fechado da norma cuja aplicação se pretende]. Assim, não se fundando o recurso em qualquer das hipóteses mencionadas no nº 2, não lhe aproveita a solução excepcional que, em matéria de contagem do prazo de recurso, é implicada pelo nº 4 do mesmo artigo 70º.
De todo o exposto resulta que bem decidiu o despacho reclamado ao não admitir a interposição, em 9 de Outubro de 2003, de recurso para o Tribunal Constitucional de acórdão notificado à recorrente em 7 de Abril de 2003, uma vez que, a essa data, se mostrava há muito esgotado o prazo a que se refere o artigo
75º da LTC.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso interposto pelo requerimento de fls.315-317.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Fevereiro de 2004
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida