Imprimir acórdão
Processo n.º 45/03
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. vem, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional, abreviadamente Lei do Tribunal Constitucional), reclamar para a conferência da decisão sumária proferida pelo relator, em 23 de Dezembro de 2003, pela qual se decidiu não tomar conhecimento do recurso de constitucionalidade por ele interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º do citado diploma. Essa decisão sumária teve o seguinte teor:
«(…)
1. A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28 de Outubro de 2002, que negou provimento ao recurso por ele interposto de sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Braga que o havia absolvido dos crimes de emissão de cheque sem provisão de que vinha acusado (por ter entendido que haviam sido descriminalizados) e o condenara a pagar à demandante B., a título de indemnização civil, a quantia de
€ 3 853,04, acrescida de juros de mora. Tal recurso era interposto, segundo o respectivo requerimento,
“(…) Por entender que, sempre salvo o devido respeito, que, aliás, é muito, e melhor opinião, quer a sentença proferida em primeira instância, quer a citada douta prolação, ao considerar […] a conduta do Recorrente como consubstanciadora, à data da sua prática, do crime de emissão de cheque sem provisão, bem como ao carregar o Recorrente com o ónus processual de provar o preenchimento do pressuposto subjectivo da insuficiência de fundos, quando da entrega dos títulos de crédito em apreço, elemento típico do tipo legal de crime em apreço, viola[m], entre outros, os princípios constitucionais da legalidade, da proibição da indefesa, do contraditório, das garantias de defesa do arguido, e da presunção de inocência deste, consagrados, nomeadamente, nos art.ºs 2º, 20º e
32º, todos da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidades estas que foram oportunamente invocadas na motivação do recurso de fls. … interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães.”
2. No Tribunal Constitucional, o relator proferiu despacho a convidar o recorrente, nos termos do artigo 75º-A, n.ºs 5 e 6, da Lei do Tribunal Constitucional, a indicar os elementos exigidos pelo n.º 1 (e, se fosse o caso, pelo n.º 2) desse artigo, designadamente, a alínea do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional ao abrigo da qual interpunha o recurso e a norma ou normas cuja constitucionalidade pretendia ver apreciada com o recurso. O recorrente respondeu dizendo:
“informar (…) que o recurso oportunamente interposto a fls. … tem por base o facto de o mesmo [recorrente] entender que a interpretação dada pelo Tribunal de primeira instância, e posteriormente confirmada pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, ao disposto nos art.ºs 71º e 377º, ambos do Cód. de Proc. Penal, art.º 129º do Cód. Penal e art.º 483º do Cód. Civil viola, entre outros, o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido previsto no art.º 32º da nossa Lei Fundamental, o que havia sido já suscitado em sede de alegações de recurso para o mencionado Tribunal superior, tendo ainda o mesmo sido interposto nos termos das alíneas b) e f) do n.º 1 do art.º 70º da [Lei n.º] 28/82, de 15 de Novembro.” Cumpre apreciar e decidir.
3. O presente recurso foi admitido – em decisão que, como se sabe (artigo 76º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional), não vincula o Tribunal Constitucional
–, mas, analisados os autos, verifica-se que é de proferir decisão sumária, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, por este Tribunal não poder tomar conhecimento do recurso.
4. Com efeito, na resposta ao convite para aperfeiçoamento do seu requerimento de recurso, o recorrente indicou como normas que pretendia ver apreciadas os artigos 71º e 377º, ambos do Código de Processo Penal, o artigo 129º do Código Penal e o artigo 483º do Código Civil, numa determinada interpretação, que não especifica mais precisamente, sendo o recurso interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Se bem se entende, com a invocação da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pretenderá o recorrente que existirá violação de “lei com valor reforçado” por tal interpretação. É que esta alínea f) prevê o recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que “apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)”, sendo que estas duas últimas alíneas se prendem com especificidades do ordenamento das regiões autónomas (que não estão em causa), e aquela alínea c) prevê a “violação de lei com valor reforçado”. Ora, não se verifica a invocação de quaisquer normas legais que constituam “lei reforçada” para este efeito – de desconformidade dessa “interpretação” daqueles preceitos, aliás, não precisada. Não é, pois, sequer necessário analisar outros pressupostos deste tipo de recurso – como a questão da falta de suscitação, durante o processo, de uma questão de ilegalidade qualificada – para se dever excluir, de pronto, a possibilidade de apreciação do recurso ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
5. Segundo o recorrente, o recurso é também interposto ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional. Para se poder conhecer deste tipo de recurso, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. E este requisito deve ser entendido, segundo a jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º
352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de 1994), “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º 560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995, e ainda o Acórdão n.º 155/95, in Diário da República, II, de 20 de Junho de 1995). Por outro lado, recorde-se que no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º
18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza, designadamente, das decisões judiciais em si mesmas. Assim, se a norma que se pretende ver apreciada corresponde apenas a uma dimensão interpretativa de um ou mais preceitos, exige-se, pelo menos, que se enuncie ou se deixe clara tal interpretação. Como este Tribunal afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 178/95 (Diário da República, II série, de 21 de Junho de
1995), impõe-se que o recorrente tenha
“(...) indicado (…) o segmento de cada norma, a dimensão normativa de cada preceito – o sentido ou interpretação, em suma – que [tem] por violador da Constituição. De facto, tendo a questão da constitucionalidade de ser suscitada de forma clara e perceptível (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 269/94, in Diário da República,
2ª Série, de 18 de Junho de 1994), impõe-se que, quando se questiona apenas uma certa interpretação de determinada norma legal, se indique esse sentido (essa interpretação) em termos de que, se este Tribunal o vier a julgar desconforme com a Constituição, o possa enunciar na decisão que proferir, por forma que o tribunal recorrido que houver de reformar a sua decisão, os outros destinatários daquela e os operadores jurídicos em geral saibam qual o sentido da norma em causa que não pode ser adoptado, por ser incompatível com a lei fundamental.”
6. Ora, consultando os autos, verifica-se, desde logo, que nem sequer no requerimento de recurso o recorrente identificou, com a precisão necessária, a questão de constitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada, mesmo considerando a resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso. Na verdade, e como se tem salientado na jurisprudência deste Tribunal, como, por exemplo, no Acórdão n.º 116/2002 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt),
«Se o recorrente entende que um preceito não é inconstitucional “em si mesmo”, mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, a exigência de suscitação da questão de constitucionalidade de forma clara e perceptível implica, pois, o ónus de, ao suscitar a inconstitucionalidade, identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais – o que é evidentemente diverso de sustentar apenas que a hipótese de uma norma se encontra preenchida no caso concreto (mesmo que se aduzam argumentos de constitucionalidade nesse sentido).» Mesmo depois do convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso, o recorrente refere-se, porém, apenas a uma “interpretação dada” pelas instâncias aos preceitos referidos, mas não a enuncia ou torna minimamente clara. Logo esta razão impossibilitaria, assim, que se tomasse conhecimento do presente recurso.
7. É certo que a insuficiência que se referiu poderia, ainda, eventualmente, ter sido ultrapassada (mas não foi) através da resposta àquele convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso. Acontece, porém, que se não verifica igualmente o requisito da suscitação, perante o tribunal recorrido, de qualquer questão de constitucionalidade normativa. Na verdade, consultando as alegações do recorrente perante o tribunal a quo, apresentadas em 4 de Julho de 2002 (fls. 235 e segs. dos autos), verifica-se que este também aí não enunciou a interpretação normativa cuja constitucionalidade impugnava, limitando-se, ou a imputar a inconstitucionalidade à decisão judicial, ou a um “entendimento”, não precisado, que teria sido adoptado nesta. Assim, encontram-se, nessas alegações, apenas referências a questões de constitucionalidade nas conclusões (fls. 241 e v.), nos seguintes termos:
“7. Acresce ainda que não foram devidamente ponderados todos os elementos probatórios dos autos, nomeadamente os extractos bancários de fls...., existindo assim um erro notório na apreciação da prova, porquanto do teor dos mesmos se alcança ter a conta bancária em questão sido sempre movimentada a crédito e a débito até meados de 1995.
8. Existe ainda um vício de contradição insanável na fundamentação de facto da sentença recorrida na medida em que, considerando existir o elemento subjectivo da insuficiência de fundos quando da entrega dos cheques, não dá como provadas as datas em que tais entregas se operaram.
9. Encontra-se ainda a sentença recorrida ferida do vício da inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, prevista no art.º 32º da C.R.P., na medida em que carrega este com o
ónus de provar o não preenchimento daquele pressuposto subjectivo. Finalmente,
10. Para a condenação do recorrente não bastava que se tivessem provado factos consubstanciadores de uma obrigação de natureza civil: ‘é necessário que se esteja perante um ilícito civil que produza o dever de indemnizar, nos termos do art. 483º do Cód. Civil’.
11. Como no caso não se provou qualquer tipo de responsabilidade extracontratual do arguido/recorrente, não pode o mesmo ser condenado a pagar a quantia titulada por um cheque sacado por uma sociedade comercial por quotas. Aliás,
12. Tendo sido ‘o arguido/recorrente absolvido da prática do crime de emissão de cheque sem provisão de que vinha acusado, não há possibilidade de condenação em indemnização civil por outras causas, nomeadamente, por incumprimento de uma obrigação’. Pelo que,
13. A sentença na parte recorrida violou e, ou interpretou erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 129º do Cód. Penal, 71º a 84º, 377º, n.º 1, e
410.º, n.º 2, al. b), do C.P.Penal, os arts. 5º, 6º e 197º, n.º 3, do Cód. Soc. Comerciais, os arts. 264º, n.º 1, 268º e 467º e segs. do C.P.Civil, aplicáveis
‘ex vi’ do referido art. 129º do Cód. Penal e ainda os arts. 342º e 483º do Cód. Civil, ao mesmo tempo que violou os próprios princípios constitucionais da proibição da indefesa e do contraditório contidos nos arts. 2º e 20º da Constituição da República.”
(itálicos aditados) E no texto das alegações (fls. 238 v. e seg. dos autos):
“Por último sempre se dirá que, resulta do teor da sentença objecto do presente recurso que ‘...no que concerne ao aspecto subjectivo, relativamente ao conhecimento da inexistência de fundos para o pagamento dos cheques, ponderou-se o iter criminis ... sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento’ (sic). Ora, e sempre salvo o devido respeito, entende o ora Recorrente que o Tribunal a quo inverteu o respectivo ónus probandi, partindo do pressuposto não só errado mas de igual modo inconstitucional, que o Arguido se presume culpado, devendo provar que não o é. Está de tal modo aquele entendimento ferido do vício da inconstitucionalidade por violacão do principio in dubio pro reo consagrado no art.º 32º da nossa Lei Fundamental, o qual aqui expressamente se invoca.” Como se vê, refere-se, nas conclusões, a desconformidade com a Constituição à própria decisão judicial, e não a qualquer norma, e, no texto das alegações, indica-se um entendimento que se não imputa a qualquer preceito legal. Não se suscitou, pois, de forma clara e perceptível (cf. o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) a inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa, não sendo, também, de estranhar que também o acórdão recorrido se não tenha pronunciado sobre a conformidade constitucional de norma(s), ou de uma determinada dimensão ou entendimento normativos, pois o recorrente não suscitou adequadamente estas questões perante o tribunal a quo. Ora, o recorrente havia de ter suscitado, durante o processo, uma questão de inconstitucionalidade normativa, devidamente identificada – o que requeria que se enunciasse tal interpretação de um certo preceito, se a norma que se pretendia ver apreciada correspondia apenas a uma dimensão interpretativa de um ou mais preceitos. Como se escreveu, por exemplo, no citado Acórdão n.º 560/94,
“a exigência de um cabal cumprimento do ónus da suscitação atempada – e processualmente adequada – da questão de constitucionalidade não é, pois, [...] uma ‘mera questão de forma secundária’. É uma exigência formal, sim, mas essencial para que o tribunal recorrido deva pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade para que o Tribunal Constitucional, ao julgá-la em via de recurso, proceda ao reexame (e não a um primeiro julgamento) de tal questão”.
8. Não só, portanto, pela deficiência do requerimento de recurso, mas também, pois, por o recorrente não ter cumprido o ónus – indispensável para poder fazer uso do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional – de suscitar devidamente uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do presente recurso.
9. Pelos fundamentos expostos, decido, ao abrigo do artigo 78º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não tomar conhecimento do presente recurso e condenar o recorrente em custas, com 5 (cinco) unidades de conta de taxa de justiça.»
2.O recorrente veio deduzir a presente reclamação com os seguintes fundamentos:
«(...)
- segundo bem entende o Recorrente, da leitura da douta decisão proferida pelo Exm.º Senhor Juiz Conselheiro Relator, extraem-se duas conclusões quanto à não admissibilidade do recurso que pelo mesmo foi oportunamente interposto;
- quais sejam, a de que, se por um lado o requerimento de recurso apresentado a fls. ... pecará por deficiência em virtude de não enunciar ou tornar minimamente clara a questão da constitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada;
- por outro lado, não terá o Recorrente cumprido o ónus de suscitar devidamente uma questão de constitucionalidade normativa durante o processo;
- ora, e porque o ora Recorrente, sempre salvo o devido respeito que, aliás é muito, não concorda com tal decisão sumariamente exarada, vem o mesmo lançar mão do presente expediente processual na tentativa de demonstrar que outra deveria ter sido a decisão a proferir;
- com efeito, e começando pela segunda das mencionadas questões, sempre se dirá que, da leitura das alegações de recurso dirigidas ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães e do respectivo douto Acórdão, resulta que a questão da inconstitucionalidade foi atempada e devidamente suscitada;
- de resto, o próprio Tribunal da Relação de Guimarães, ao analisar a quarta das questões ali suscitadas pelo Recorrente, refere que “O recorrente alega ainda a existência de inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência do arguido, na medida em que carrega este com o ónus de provar o não preenchimento daquele pressuposto subjectivo' (sic, sendo nosso o sublinhado);
- mais concluindo aquele Tribunal superior, após se ter debruçado sobre tal questão, que “...como tal torna-se evidente que também aqui o recurso quanto a esta matéria terá de improceder, por não se mostrar violado o art.º 32º, n.º 2, da CRP” (sic);
- ora, perante tal factualidade, não pode o Recorrente deixar de se manifestar surpreso face à alegação de que não foi suscitada devidamente ao longo do processo a questão da invocada inconstitucionalidade;
- questionando se o facto de ser entendimento do Recorrente que os Tribunais recorridos, ao carregarem o mesmo com o ónus processual de provar a inexistência de um dos pressupostos subjectivos integradores do tipo legal em questão – emissão de cheque sem provisão (qual seja o do conhecimento, por parte do sacador, da inexistência ou insuficiência de fundos na entidade sacada), quando a nossa lei fundamental consagra o princípio da presunção da inocência;
- o que, a contrario, equivale a referir que entende o Recorrente que in casu deveria ter sido feita prova de que o mesmo tinha efectivo conhecimento, quando da emissão e entrega dos cheques dos autos, da falta ou insuficiência de fundos junto da entidade sacada;
- não podendo o Reclamante deixar ainda de trazer à colação o facto de a responsabilidade civil por factos ilícitos, prevista no art. 483º do Cód. Civil, consagrar que a prova da culpa incumbe ao lesado – o que não sucedeu manifestamente no caso em apreço;
- sendo que, a interpretação da (in)existência de tal pressuposto subjectivo integrador do tipo legal em apreço, tal como é feita pelos Tribunais recorridos que invertem o onus probandi, é seguramente inconstitucional por violação do n.º
2 do art. 32º da nossa Lei Fundamental;
- acresce ainda que, conforme supra se deixou vertido, o outro dos argumentos aduzidos pelo Venerando Senhor Juiz Conselheiro Relator no douto despacho de fls. ... tem que ver com o facto de, alegadamente, o requerimento de recurso não enunciar ou tornar minimamente clara a questão da constitucionalidade normativa que pretendia ver apreciada;
- ora, e sempre salvo o devido e muito respeito, não pode o ora Reclamante sufragar tal entendimento, porquanto, da leitura conjugada do requerimento de alegações dirigido ao Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, do requerimento de recurso dirigido a este Venerando Tribunal Constitucional, e ainda do requerimento de fls. ..., resulta que a (in)constitucionalidade normativa suscitada pelo Reclamante quando da apresentação das alegações, tem que ver com o facto de ter sido onerado o mesmo com a prova da respectiva inocência;
- ou seja, tendo sido presumido que o Reclamante tinha conhecimento da insuficiência ou falta de fundos na entidade sacada quando da emissão dos cheques dos autos, foi violado o princípio da presunção de inocência;
- devendo entender-se, a contrario, que o ónus da prova do preenchimento daquele elemento subjectivo integrador do tipo legal em apreço é da Acusação e não do Arguido, tudo sob pena de violação dos citados normativos legais;
- sendo certo que tal alegação, devidamente fundamentada, não deixará de ser objecto de alegação aprofundada e pormenorizada quando da apresentação das alegações de recurso a apresentar junto deste Venerando Tribunal Constitucional;
- pelo que entende o Reclamante que deve ser reformulada a douta decisão de fls.
..., substituindo-se a mesma por outra que dê cumprimento ao disposto no art.
79º da Lei do Tribunal Constitucional.» Em resposta à reclamação deduzida, o Ministério Público junto deste Tribunal veio pronunciar-se pela sua improcedência, dizendo que “a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que respeita à não suscitação, em termos tempestivos e adequados, de qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para suportar o recurso interposto.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Consultando o teor da presente reclamação, verifica-se que ela não logra abalar os fundamentos em que se baseou a decisão sumária transcrita. Na verdade, esta concluiu pela impossibilidade de tomar conhecimento do presente recurso, decisivamente, com fundamento na imputação da inconstitucionalidade durante o processo, pelo recorrente, à decisão judicial (à sentença) em si mesma, e não a uma norma – que, aliás, veio a identificar apenas perante o Tribunal Constitucional, em resposta a convite para aperfeiçoamento do requerimento de recurso, como sendo os “art.ºs 71º e 377º, ambos do Cód. de Proc. Penal, art.º 129º do Cód. Penal e art.º 483º do Cód. Civil”, num determinado entendimento. Ora, como se sabe, e se afirmou na decisão sumária reclamada, o objecto do recurso de constitucionalidade no direito português não pode, porém, ser a apreciação da conformidade com a Constituição da decisão judicial recorrida, em si mesma, mas apenas de normas, ou dimensões normativas, sendo que, tratando-se do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, é necessário, para que se possa tomar conhecimento do recurso, que o recorrente haja suscitado a questão da inconstitucionalidade normativa perante o tribunal a quo. E, para isso, é indispensável que se identifique a norma em questão.
4.O reclamante invoca que teria suscitado adequadamente a inconstitucionalidade, resultando essa conclusão da leitura das alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Guimarães, tendo, também, sido alegadamente reconhecida por esse Tribunal. Ora, o que se retira da leitura das alegações de recurso perante o tribunal a quo, supra transcritas na única parte em que se referem a questões de constitucionalidade, é que o recorrente suscitou, sim, uma inconstitucionalidade, mas que a reportou, não a qualquer norma ou interpretação normativa, mas à própria decisão judicial – à “sentença recorrida (…) na medida em que carrega este com o ónus de provar o não preenchimento daquele pressuposto subjectivo”. E é também a esta alegação que se refere a decisão recorrida, e não a qualquer inconstitucionalidade de uma norma ou interpretação normativa, aliás não reportada a qualquer preceito e devidamente identificada. Como se pode ver pelas transcrições efectuadas na decisão recorrida a desconformidade com a Constituição foi imputada pelo recorrente, não a qualquer norma, mas à decisão judicial (à “sentença recorrida”), indicando-se, no texto das alegações, um entendimento que teria sido adoptado pela sentença, não imputado a qualquer preceito legal – muito menos se identificando os preceitos que o recorrente, em resposta ao convite para aperfeiçoar o requerimento de recurso de constitucionalidade, que lhe foi endereçado pelo relator no Tribunal Constitucional, veio a indicar como suporte desse entendimento (os artigos 71º e
377º, ambos do Código de Processo Penal, o artigo 129º do Código Penal e o artigo 483º do Código Civil). Conclui-se, pois, que o recorrente não suscitou, de forma clara e perceptível
(cfr. o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), a questão da inconstitucionalidade de qualquer norma ou interpretação normativa durante o processo, como havia de ter feito para o Tribunal Constitucional poder agora tomar conhecimento do presente recurso, para reexame (e não para um primeiro julgamento) de tal questão. A presente reclamação tem, pois, de ser desatendida. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, decide-se desatender a presente reclamação e confirmar a decisão sumária de não conhecimento do recurso, bem como condenar o recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004
Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos