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Proc. n.º 423/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Num recurso de agravo interposto por A. de um despacho que lhe indeferira o requerimento para penhora do vencimento da executada, por tal vencimento pouco exceder o valor do salário mínimo nacional, foi, em 11 de Dezembro de 2002, proferida a seguinte decisão pelo Desembargador Relator no Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 53 e v.º):
“[...] II. Decisão liminar do objecto do recurso, atenta a simplicidade da questão a decidir (arts. 705º e 749º do CPC): Entendemos, consoante decidiu o Tribunal Constitucional (Ac. n.º 318/99 – processo n.º 855/98 –, publicado no DR-II Série, n.º 247, de 22-10-99), «que a norma do art. 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até um terço quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, alínea a), e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa». Em crise não estando, «in casu», que a penhora, mesmo que tão só de um sexto
(art. 824º n.º 2 do CPC) do salário da executada, ainda que o referido a fls. 28 seja o líquido, desaguaria no não ficar na disponibilidade daquele «quantum» de montante correspondente ao salário mínimo nacional, diga-se, sopesada a ideia que o salário mínimo contém em si, esta sendo a que o predito Ac. assinala – a de «que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador» –, censura não merece a decisão impugnada, a qual, isso sim, constitui paradigma de correcta solução do conflito de direitos a que, outrossim, alude o Ac. à colação já trazido, garantindo, como tal Aresto explanado, a «tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana – vector axiológico estrutural da própria Constituição» – cfr., no mesmo sentido, Ac. do TRC, de 30-04-02, in CJ – Ano XXVII – tomo II, pág. 39. Tudo visto, sem necessidade de considerandos outros, julga-se improcedente o agravo, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.”
2. Tendo a então recorrente, bem como o Ministério Público, requerido que sobre a referida decisão recaísse acórdão da conferência, nos termos do artigo 700º, n.º 3, do Código de Processo Civil (fls. 55 e 57 e seguinte), veio o Tribunal da Relação de Lisboa, em 1 de Abril de 2003, a proferir o seguinte acórdão (fls. 69 e seguintes):
“[...]
2. Pelos fundamentos expostos no despacho citado em I. c) e na decisão liminar do objecto do recurso, para os quais ora se remete nos termos permitidos pelo art. 713º n.º 5 do CPC (cfr. art. 749º do CPC), provimento não merece a pretensão recursória. Em qualquer circunstância, sempre se dirá: Os autos não evidenciam, minimamente, dispor o casal executado de réditos outros, que não o salário de B., para acudir ao seu sustento. Do processo não ressuma disporem os executados de outros bens penhoráveis, suficientes para satisfazer a dívida exequenda. Em tal contexto, mesmo líquido sendo o salário citado em I. b), é vítreo que o ordenar-se, que fosse, a penhora, tão-só, de 1/6 daquele (o patamar normal mínimo a que alude o art. 824º n.º 2 do CPC), desaguaria no ficar na disponibilidade da executada um rendimento mensal inferior ao salário mínimo nacional, o que seria, independentemente da natureza da dívida exequenda, inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que, como salientado no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 177/02, de 23-04-02, publicado na I Série-A, n.º 150, do DR, de 2-7-02, «resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do n.º
2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição». IV. Conclusão: Acorda-se, sem necessidade de considerandos outros, em, na esteira da decisão liminar do objecto do recurso, negar provimento ao agravo, confirmando-se, consequentemente, o despacho impugnado.
[...].”
3. Notificado deste acórdão, dele interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, atendendo a que tal acórdão “não aplicou o art.
824º n.º 1 alínea a) e n.º 2 do C.P.C. invocando a sua inconstitucionalidade por violação do art. 59º n.º 1, alínea a) e 2, bem como do art. 63º n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa” (fls. 76).
O recurso foi admitido por despacho de fls. 77.
4. Nas alegações que produziu (fls. 81 e seguintes), concluiu assim o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional:
“1 – Não é materialmente inconstitucional o regime constante do artigo 824º, n.º
1, alínea a) e n.º 2 do Código de Processo Civil (na redacção anterior à emergente do Decreto-Lei n.º 38/03) que se traduz em não considerar estabelecida a impenhorabilidade, total e automática, dos rendimentos do trabalho, auferidos pelo executado que não disponha de outros bens penhoráveis, e que não excedam o montante do salário mínimo nacional.
2 – O interesse na sobrevivência condigna do executado é, neste caso, assegurado, em termos bastantes, pela possibilidade, outorgada ao juiz pelo n.º
3 de tal preceito legal, de realizar um juízo de ponderação casuístico e prudencial, articulando os interesses do exequente e executado, de acordo com a natureza do débito (que pode ser proveniente de uma obrigação alimentar ou radicar na aquisição de bens ou serviços destinados precisamente a salvaguardar a sobrevivência do executado, satisfazendo as suas necessidades básicas de alimentação e habitação) e as necessidades do devedor e seu agregado familiar.
3 – Não viola o princípio da igualdade a circunstância de – quanto a pensões ou regalias sociais de valor não superior ao salário mínimo – vigorar (por imposição da própria jurisprudência do Tribunal Constitucional) um regime de impenhorabilidade total e «automática», já que tais rendimentos assentam ou pressupõem uma situação de particular debilidade, incapacidade ou fragilidade económica do executado, que se não verifica necessariamente quando estiverem em causa rendimentos profissionais, mesmo que de montante reduzido.
4 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A recorrida não alegou (fls. 89).
Cumpre apreciar.
II
5. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional da norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995/96), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado, privando o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional.
O artigo 824º do Código de Processo Civil tem a seguinte redacção, resultante do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro:
“Artigo 824º Bens parcialmente penhoráveis
1. Não podem ser penhorados: a) Dois terços dos vencimentos ou salários auferidos pelo executado; b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2. A parte penhorável dos rendimentos referidos no número anterior é fixada pelo juiz entre um terço e um sexto, segundo o seu prudente arbítrio, tendo em atenção a natureza da dívida exequenda e as condições económicas do executado.
3. Pode o juiz excepcionalmente isentar de penhora os rendimentos a que alude o n.º 1, tendo em conta a natureza da dívida exequenda e as necessidades do executado e seu agregado familiar.”
A circunstância de, na decisão recorrida (supra, 2.), se não fazer alusão ao artigo 824º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, não obsta a que se considere ter sido recusada a aplicação deste preceito legal: com efeito, nos presentes autos discutiu-se a possibilidade de penhora de um salário e não, por exemplo, de uma pensão de aposentação ou outra das compreendidas na alínea b) do mesmo preceito.
6. A conclusão a que se chegou na decisão recorrida – a da inconstitucionalidade da norma – assentou nas considerações que suportaram a decisão de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão n.º 177/02, de 23 de Abril, do Tribunal Constitucional (publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 150, de 2 de Julho de 2002, p. 5158).
Essa decisão de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, respeitou à norma que resulta da conjugação do disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até
1/3 das prestações periódicas, pagas ao executado que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, a título de regalia social ou de pensão, cujo valor global não seja superior ao salário mínimo nacional. O fundamento da decisão de inconstitucionalidade foi a violação do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, e que resulta das disposições conjugadas do artigo 1º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 59º e dos n.ºs 1 e 3 do artigo 63º da Constituição.
Tendo-se entendido na decisão recorrida que, em relação às normas que permitem a penhora de uma parcela do salário do executado, privando-o da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional, valem as considerações feitas no citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/02, cumpre naturalmente referenciar aqui a fundamentação desse acórdão:
“[...] Ao incorporar o texto constante do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, para o artigo 824º, acrescentando-lhe, porém, no n.º 3, a possibilidade de a isenção de penhora abranger, não apenas «as prestações a que alude a alínea b) do n.º 1», mas também os vencimentos e salários referidos na al. a) do n.º 1, o Decreto-Lei n.º 180/96 veio manter a regra da impenhorabilidade parcial de certos rendimentos do executado (vencimentos, salários, certas prestações sociais ou indemnizações). Conservou, assim, no essencial, o regime que José Alberto dos Reis explicava que, embora não fosse o «mais humano e equitativo», como seria «o que subtrai inteiramente à penhora os pequenos vencimentos e salários, isto é, as quantias destinadas a assegurar o mínimo de subsistência» (Processo de Execução, 1º, 2ª ed., reimp., Coimbra, 1982, págs. 384 e 391), se destinava, naturalmente, a permitir a subsistência do executado e do seu agregado familiar. Os vencimentos, salários e outras prestações ali referidas continuam, pois, a ser penhoráveis em 1/3 do seu montante (n.º 1 do artigo 824º), cabendo ao juiz definir, caso a caso, qual o valor efectivamente penhorado, entre 1/3 e 1/6. Para o efeito, há-de ponderar as «condições económicas do executado» e «a natureza da dívida exequenda» (n.º 2 do artigo 824º), não definindo a lei actual, diferentemente do que fazia o n.º 4 do anterior artigo 823º, quais as dívidas que devem ser consideradas para tal ponderação.
É, todavia, possível, agora, que o tribunal, atendendo também à «natureza da dívida exequenda» e às «necessidades do executado e seu agregado familiar», isente totalmente da penhora a parte dos vencimentos, salários e prestações que, de acordo com as regras referidas, é penhorável, como consta do n.º 3. Note-se, aliás, que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95, ao referir esta possibilidade de isenção total de penhora, a relaciona com a jurisprudência constitucional (acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93) que se pronunciou pela inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 45º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, que previa a impenhorabilidade das pensões de segurança social, sem tomar em conta o montante dos rendimentos recebidos, e com a consequente necessidade de proibir a invocação, em processo civil, de disposições especiais que estabelecessem «a impenhorabilidade absoluta de quaisquer rendimentos, independentemente do seu montante» (artigo 12º do mesmo Decreto-Lei). Resulta, assim, do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil que é susceptível de penhora 1/3 dos montantes auferidos pelo executado a título de vencimento, salário, prestação periódica paga a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou pensão semelhante, devendo o juiz, segundo os critérios indicados, fixar a parte que, em cada caso, é penhorada, entre 1/3 e 1/6 do valor da prestação (salvo se aplicar a isenção prevista no n.º 3).
4. Ora cabe começar por precisar o objecto do presente processo, tendo em conta a sua necessária delimitação pelos julgamentos de inconstitucionalidade proferidos nas decisões invocadas como fundamento. Assim, e utilizando a formulação constante do acórdão n.º 318/99, «a questão» nele apreciada foi «a de saber se a norma que permite a penhora até 1/3 de uma pensão de reforma por invalidez cujo montante é inferior ao salário mínimo nacional não é inconstitucional por não garantir o mínimo adequado e necessário para uma existência condigna». A decisão sumária n.º 120/01, referindo que versa sobre o mesmo objecto, julgou no sentido da «inconstitucionalidade do artigo 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permitem a penhora de um terço de prestações periódicas pagas a título de regalia social ou pensões cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional». Por sua vez, a decisão sumária n.º 165/01 apreciou a «mesma norma questionada» no Acórdão n.º 318/99. Isto significa que a norma agora em apreciação é, tão somente, a que resulta da conjugação do disposto no n.º 1, alínea b) e n.º 2 do artigo 824º do Código de Processo Civil, na parte em que permite a penhora até 1/3 das prestações periódicas pagas a título de regalia social ou de pensão, cujo valor não seja superior ao salário mínimo nacional.
5. Como se disse já, esta norma foi julgada inconstitucional por «violação do princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º2, alínea a) e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição» (Acórdão n.º 318/99). Para fundamentar este juízo, escreveu-se neste Acórdão n.º 318/99:
«O Tribunal Constitucional tem tido várias pronúncias sobre a questão da impenhorabilidade de bens, centrando-se todos os acórdãos no artigo 45º da Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, tendo esta norma (que estabelece a impenhorabilidade das prestações devidas pelas instituições de segurança social) sido julgada inconstitucional na medida em que isenta de penhora a parte das prestações devidas pelas instituições de segurança social que excedam o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna.
(...) Será razoável utilizar para o caso dos autos, a argumentação carreada para as decisões relativas ao artigo 45º da Lei de Segurança Social? Vejamos.
(...) A questão que se coloca no presente processo é, portanto, a de saber se a norma que permite a penhora até 1/3 de uma pensão de reforma por invalidez cujo montante é inferior ao salário mínimo nacional não é inconstitucional por não garantir o mínimo adequado e necessário para uma existência condigna (artigo 1º em conjugação com o artigo 63º, n.ºs 3 e 4, da Constituição).
(...) O credor goza de um direito à satisfação do seu crédito, podendo chegar à realização executiva do crédito à custa do património do devedor, sendo tal direito, enquanto direito de conteúdo patrimonial, tutelado pelo artigo 62º, n.º
1 da Constituição (garantia da propriedade privada). O artigo 63º da Constituição reconhece a todos os cidadãos um direito à segurança social que, nos termos do n.º 3, ‘protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho’. Este preceito constitucional, como se escreveu no Acórdão n.º 349/91 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º Vol., pág. 515) ‘poderá, desde logo, ser interpretado como garantindo a todo o cidadão a percepção de uma prestação proveniente do sistema de segurança social que lhe possibilite uma subsistência condigna em todas as situações de doença, velhice ou outras semelhantes. Mas ainda que não possa ver-se garantido no artigo 63º da Lei Fundamental um direito a um mínimo de sobrevivência, é seguro que este direito há-de extrair-se do princípio da dignidade da pessoa humana condensado no artigo 1º da Constituição’
(cf. Acórdão n.º 232/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19º Vol., pág.
341). Pode, assim, configurar-se um conflito de direitos, entre o direito do credor à realização rápida do pagamento do seu crédito e o direito do devedor e pensionista da Segurança Social ou do Estado à percepção de uma pensão que lhe garanta o mínimo de subsistência condigna com a sua dignidade de pessoa. Existindo o referido conflito, o legislador não pode deixar de garantir a tutela do valor supremo da dignidade da pessoa humana – vector axiológico estrutural da própria Constituição – sacrificando o direito do credor na parte que for absolutamente necessária – e que pode ir até à totalidade desse direito – por forma a não deixar que o pagamento ao credor decorra o aniquilamento da mera subsistência do devedor e pensionista. Essencial se torna, pois, a realização de um balanceamento, da utilização de uma adequada proporção na repartição ‘dos custos do conflito’ (cf. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina,
1987, pág. 233). Em consequência, será constitucionalmente aceitável o sacrifício do direito do credor, se o mesmo for necessário e adequado à garantia do direito à existência do devedor com um mínimo de dignidade.
(...)
É certo que o legislador admite a penhora até 1/3 dos salários auferidos pelo executado, mesmo de salários não superiores ao salário mínimo nacional, tal como admite a penhora de idêntica parte das prestações periódicas recebidas a título de pensão de aposentação ou pensão social, sem qualquer limitação expressa decorrente do respectivo montante. Porém, assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o ‘mínimo dos mínimos’ não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim também, uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez, cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário. Em tais hipóteses, o encurtamento através da penhora, mesmo de uma parte dessas pensões – parte essa que em outras circunstâncias seria perfeitamente razoável, como no caso de pensões de valor bem acima do salário mínimo nacional –, constitui um sacrifício excessivo e desproporcionado do direito do devedor e pensionista, na medida em que este vê o seu nível de subsistência básico descer abaixo do mínimo considerado necessário para uma existência com a dignidade humana que a Constituição garante. Nestes termos, considera-se que a norma do artigo 824º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, na medida em que permite a penhora até 1/3 quer de vencimentos ou salários auferidos pelo executado, quando estes são de valor não superior ao salário mínimo nacional em vigor naquele momento, quer de pensões de aposentação ou de pensões sociais por doença, velhice, invalidez e viuvez, cujo valor não alcança aquele mínimo remuneratório, é inconstitucional por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º2, alínea a) e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa».
É este julgamento de inconstitucionalidade que aqui se reitera, não se considerando que os argumentos apresentados pelo Primeiro Ministro devam conduzir a solução diversa, como se passa a demonstrar.
6. Em primeiro lugar, o Primeiro-Ministro aponta a inadequação da escolha do montante do salário mínimo como referência para a impenhorabilidade, apontando outros, a seu ver, mais adequados. Ora a verdade é que a existência de outras referências possíveis não invalida que o Tribunal Constitucional possa considerar, como considera, que o valor do salário mínimo constitui referência adequada aos valores em jogo, nenhum obstáculo resultando da consideração de que representa a garantia de uma
«retribuição mínima pelo trabalho desenvolvido» e que «tem subjacente um princípio de justiça, não sendo considerado como prestação de carácter assistencialista». Como se afirmou no Acórdão n.º 318/99 e resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir «a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador» (Acórdão n.º 318/99). Assim resulta, claramente, do Decreto-Lei n.º 217/74, de 27 de Maio, que o introduziu no direito português. Da leitura atenta do preâmbulo do diploma decorre que foi concebido com um dos «benefícios sociais especialmente dirigido a melhorar a situação das classes que se encontram em pior situação» (ponto 4.), juntamente com várias prestações de carácter social previstas no mesmo diploma destinadas a melhorar os «níveis de vida muito baixos» da «generalidade do povo português, especialmente a classe trabalhadora» (ponto 1.); e essa preocupação manteve-se, como se pode verificar, por exemplo, no diploma que, por último, veio actualizar o respectivo montante (o Decreto-Lei n.º 325/2001, de 17 de Dezembro, rectificado pela declaração de rectificação n.º 20-BC/2001, Diário da República, I-A, 3º supl., de 17 de Dezembro de 2001). Como se pode ler no preâmbulo, o montante da actualização, definido segundo «critérios de racionalidade económica e social», teve como objectivo permitir, «em simultâneo, uma elevação sustentada do poder de compra dos trabalhadores e da competitividade das empresas nacionais». Essa dupla ordem de considerações é imposta, aliás, pela al. a) do n.º 2 do artigo 59º da Constituição, quando, ao determinar que cabe ao Estado «o estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional», aponta como critérios a ter em conta, para além de «outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, a exigência da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento».
7. Em segundo lugar, é incontestável que o n.º 3 do artigo 824º confere ao tribunal o poder de, tomando em conta «as necessidades do executado e seu agregado familiar», isentar totalmente de penhora a pensão em causa. Há, todavia, que não esquecer, desde logo, que estas necessidades não são o
único elemento a ponderar pelo tribunal, que tem que as considerar conjuntamente com «a natureza da dívida exequenda», factor que pode impedir que o tribunal opte pela impenhorabilidade total. Para além disso, não é exacto que o julgamento de inconstitucionalidade venha substituir, utilizando um critério «desnecessariamente rígido e inflexível», uma mais adequada forma de protecção do executado. Com efeito, e não esquecendo que o preceito continua a valer para o caso de penhora de pensões de valor mais elevado, a verdade é que o efeito do julgamento de inconstitucionalidade se traduz, apenas, em excluir a ponderação do tribunal sobre a admissibilidade da penhora nos casos em que o montante da pensão abrangida não é superior ao salário mínimo, por se entender que, em tais casos, a penhora afecta sempre de forma inaceitável a satisfação das «necessidades do executado e seu agregado familiar».
8. Finalmente, também não é exacto que a declaração de inconstitucionalidade se revele injustificadamente lesiva dos interesses, quer do exequente, como aconteceria, por exemplo, se o executado auferisse duas das prestações incluídas na al. b) do n.º 1 do artigo 824º, quer do executado que, dispondo de outros bens penhoráveis (rendimentos ou não), pode ter conveniência em que a penhora antes incida sobre a pensão. Com efeito, estas objecções não são procedentes. Desde logo porque, como resulta do Acórdão n.º 318/99, os julgamentos de inconstitucionalidade cuja generalização se requer neste processo tiveram como pressuposto necessário a circunstância de o executado não dispor, nem de outros rendimentos (incluídas aqui quaisquer outras das prestações referidas na al. b) do n.º 1 do artigo 824º do Código de Processo Civil), nem, em geral, de outros bens penhoráveis, suficientes para satisfazer a dívida exequenda. A declaração de inconstitucionalidade não vai, assim, afectar injustificadamente os interesses do exequente, já que a sua razão de ser leva a que, em casos em que o executado aufira duas ou mais prestações compreendidas naquele preceito, se tenha de considerar, para efeitos de impenhorabilidade, a globalidade das prestações recebidas. Mas também não se revela prejudicial para o executado, nos termos apontados na resposta, porque não se verifica o pressuposto necessário de que esta parte, ou seja, a disponibilidade do executado na determinação dos bens sobre os quais há-de recair a penhora. Com efeito, quando tem o direito de nomear bens à penhora (o que sucede nas execuções ordinárias, como resulta do disposto no artigo 833º do Código de Processo Civil), é obrigado a respeitar a ordenação constante do artigo 834º do mesmo Código, sob pena de tal direito se devolver ao exequente (al. b) do n.º 1 do artigo 836º); quando não tem (como sucede em processo sumário, nos termos do artigo 924º, sempre do Código de Processo Civil e, portanto, nas execuções simplificadas reguladas pelo Decreto-Lei n.º 274/97, de 8 de Outubro), o executado apenas pode requerer a substituição dos bens nomeados pelo exequente se a sentença em que se baseia a execução não tiver transitado em julgado (n.º 2 do artigo 926º).
9. Antes de concluir, cumpre acrescentar que, pelo Acórdão n.º 62/02 (Diário da República, II Série, de 11 de Março de 2001), se decidiu «julgar inconstitucionais, por violação do princípio da Dignidade Humana contido no princípio do Estado de Direito, tal como resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República, os artigos 821º, n.º
1 e 824º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual são penhoráveis as quantias percebidas a título de rendimento mínimo garantido». Também neste acórdão se entendeu que, «conforme resulta dos citados Acórdãos n.ºs 349/91 e 411/93, o que é relevante, no confronto com os artigos 13º e 62º da Constituição, para concluir pela legitimidade constitucional da impenhorabilidade é a circunstância de a prestação de segurança social em causa não exceder o mínimo adequado e necessário a uma sobrevivência condigna».
[...].”
7. Contrariamente ao sustentado pelo Ministério Público nas suas alegações (supra, 3.), entende-se que as considerações tecidas no acórdão acabado de citar são inteiramente transponíveis para o caso em apreço, justificando-se, por isso, que também aqui se emita um juízo de inconstitucionalidade relativamente à norma objecto do presente recurso.
Segundo o Ministério Público, constitui uma especificidade relevante do caso dos autos a circunstância de estar aqui “em causa a penhora, não de qualquer prestação ou regalia social, mas de um normal salário, auferido pelo executado como rendimento do trabalho” (fls. 85) e, por isso, não existir “uma verdadeira presunção de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção do respectivo titular”, presunção esta que, diversamente, caracterizaria as prestações periódicas de montantes mínimos sobre as quais versou o mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 177/02.
Tal entendimento, porém, esquece que o fundamento do juízo de inconstitucionalidade constante deste último acórdão não radicou em qualquer presunção de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção do respectivo titular. Radicou, tão-somente, na consideração de que a penhora deveria salvaguardar o “montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário”, sendo adequado tomar como referência de tal montante o salário mínimo nacional.
A qualquer executado – e não apenas àquele que se encontra numa situação de debilidade, incapacidade laboral ou desprotecção e que, por isso, recebe uma regalia social – deve ser assegurado o mínimo necessário a uma subsistência digna. Ora, esse mínimo necessário a uma subsistência digna não pode manifestamente considerar-se assegurado nos casos em que, não tendo o executado outros bens penhoráveis, se admite a penhora de uma parcela do seu salário e, por essa razão, o executado fica privado da disponibilidade de um montante equivalente ao salário mínimo nacional.
Por isso, não se vê fundamento para, no caso da penhora de salário, se admitir um juízo de ponderação casuística do juiz, nos termos do n.º 3 do artigo 824º do Código de Processo Civil, sendo certo que o Tribunal Constitucional admitiu a exclusão de tal juízo de ponderação no caso da penhora de pensão de aposentação. Em ambos os casos – porque se trata sempre de assegurar o mínimo necessário a uma subsistência digna – valem os motivos justificativos da exclusão da ponderação do juiz, a que se aludiu no mencionado Acórdão n.º 177/02.
8. Acrescenta ainda o Ministério Público (fls. 86) que a solução propugnada pelo tribunal recorrido não acautela a possibilidade de a quantia exequenda ser devida por obrigação de alimentos nem a de a obrigação exequenda ter sido contraída precisamente para assegurar as necessidades básicas de habitação e sustento do executado.
Quanto a estes dois aspectos, a verdade é que o juízo de inconstitucionalidade do tribunal recorrido sobre a norma objecto do presente recurso não teve tal alcance, uma vez que não estava em causa no caso submetido
à sua apreciação nem uma obrigação de alimentos nem uma dívida contraída para assegurar as necessidades básicas de habitação e sustento do executado.
Em conclusão, não se justifica, no caso da penhora de salários, um tratamento diverso daquele que foi dado à penhora das prestações periódicas tratadas no referenciado Acórdão n.º 177/02. O juízo de inconstitucionalidade que, no presente recurso, será formulado, corresponderá portanto àquele que ali foi emitido.
III
9. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da dignidade humana, decorrente do princípio do Estado de direito, constante das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º 2, alínea a), e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa, a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 824ºdo Código de Processo Civil (na redacção emergente da reforma de 1995/96), na parte em que permite a penhora de uma parcela do salário do executado, que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida no que se refere à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004
Maria Helena Brito
Artur Maurício Carlos Pamplona de Oliveira (vencido por entender que a faculdade conferida no nº 3 do artigo 824º do C.P.C. afasta o vício de inconstitucionalidade.) Rui Manuel Moura Ramos (vencido, no essencial, pelas razões constantes dos votos de vencido apostos ao Acórdão nº 177/2002, que entendo transponíveis para o presente caso.) Luís Nunes de Almeida