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Proc. n.º 719/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. A fls. 601 e seguintes dos presentes autos, foi proferida decisão sumária negando provimento ao recurso interposto para este Tribunal por A..
O recurso tem como objecto “a interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do CPP”, por o recorrente entender que a mesma “viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o artigo 27º e 32º, na medida em que põe em causa o princípio constitucional da igualdade de armas, a regra da liberdade, o direito ao recurso e as garantias de defesa do arguido num dos crimes mais graves, onde se impõe manifestamente a necessidade de existir um duplo grau de jurisdição”.
Na decisão sumária reclamada, decidiu-se não julgar inconstitucional a norma impugnada pelo recorrente, em conformidade com a jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional, firmada, concretamente, nos Acórdãos n.ºs 189/2001,
336/2001 [por lapso, mencionou-se então o Acórdão n.º 326/2001], 369/2001,
435/2001.
2. Notificado desta decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 616 e seguintes), invocando o seguinte:
“[...] Poderá esta disposição excepcional [o artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal] comportar o sentido restritivo do direito ao recurso que lhe empresta o Supremo Tribunal de Justiça? Ora, no entendimento do ora recorrente, a resposta não poderá deixar de ser negativa, sob pena de se violar os direitos de defesa constitucionais consagrados no artigo 32° da CRP. Na verdade, não parece aceitável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade de armas (logrando, portanto, duvidosa cobertura nas atinentes previsões, entre outras, nomeadamente a do artigo 32°, nº 1 da Constituição). Na interpretação proposta, verificando-se dupla conforme, isto é, convergência de posições entre as instâncias quanto à condenação, só à acusação fica reservado o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, direito que, assim, é incompreensivelmente negado ao condenado, o que, privilegiando sem razão aparente a «parte acusadora», coloca a defesa numa injustificada situação de inferioridade e incomportável desigualdade processual. Aliás, não é de todo razoável, do ponto de vista constitucional do eficaz direito ao recurso, condicionar a sua existência, afinal, ao concreto entendimento das instâncias, que, para o bem e para o mal, teriam ao seu alcance o poder imenso de decidir, em última instância, da recorribilidade ou não da decisão por elas proferida. Daí que, nomeadamente por razões de previsibilidade e segurança jurídica, o critério da recorribilidade ou irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça não possa, e não deva, ser ligado casuisticamente, a posteriori, às penas concretas aplicadas, antes devendo ser aferido, em abstracto e a priori, pelas molduras legais abstractas aplicáveis, e com o devido respeito por outra melhor opinião, nomeadamente a dos Venerandos Conselheiros. Aliás, não é aceitável, do ponto de vista de defesa efectiva dos direitos do arguido, que este não possa levar o caso perante o Supremo Tribunal de Justiça, não – como será legítimo – para ver reduzida a pena, se for esse o caso, como, mais do que isso, para junto do mais Alto Tribunal, defender mesmo a sua absolvição. Não pode aceitar-se que, pela interpretação feita pelo Supremo Tribunal de Justiça daquela norma, privar-se o mais Alto Tribunal de intervir justamente nos casos de maior gravidade para que está vocacionado, como é o caso dos presentes autos. A negação do direito ao recurso impressiona ainda mais quando se está perante um caso de homicídio, e uma pena de prisão. Será pois questionável quais os processos de que cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que no nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio é seguramente um dos crimes mais graves, senão o mais grave, bastando para o efeito apreciar-se a respectiva moldura penal. Obviamente que esta questão foi levantada nos autos, não podendo ser antes a não ser quando foi proferida a douta decisão pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, tanto mais que o respectivo recurso foi admitido pelo Tribunal da Relação do Porto, onde poderia ser suscitada a presente questão, e é sobre esta norma, e nesta circunstância, que se pretende a definição daquele Órgão Constitucional. Assim, no entender do recorrente, a interpretação dada à norma do artigo 400°, nº 1, alínea f), do CPP, viola a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o artigo 27° e 32°, na medida em que põe em causa o princípio constitucional da igualdade de armas, a regra da liberdade, o direito ao recurso e as garantias de defesa do arguido num dos crimes mais graves, onde se impõe manifestamente a necessidade de existir um duplo grau de jurisdição [...].
[...].”
3. Notificado para se pronunciar sobre a reclamação apresentada, o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional disse que
“a presente reclamação é manifestamente improcedente” e que “a argumentação do reclamante nada contém de inovatório, relativamente à firme corrente jurisprudencial, invocada como base do decidido” (fls. 629).
Os recorridos hospital B. e C. não responderam.
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Na reclamação deduzida, o reclamante começa por reiterar que “não parece aceitável, do ponto de vista do princípio constitucional da igualdade de armas”, a interpretação segundo a qual, “verificando-se dupla conforme, isto é, convergência de posições entre as instâncias quanto à condenação, só à acusação fica reservado o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, direito que, assim, é incompreensivelmente negado ao condenado, o que, privilegiando sem razão aparente a «parte acusadora», coloca a defesa numa injustificada situação de inferioridade e incomportável desigualdade processual” (cfr. fls. 618).
Ora, como se assinalou na decisão sumária reclamada, face ao teor do requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, unicamente pode constituir objecto do presente recurso a apreciação por este Tribunal, à luz da Constituição, da norma contida no artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na medida em que de tal norma resulta a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos”.
Como então se sublinhou, não pode estar em causa no presente recurso a apreciação de hipotéticos pressupostos ou condições de admissibilidade de um eventual recurso a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça pelo Ministério Público.
Na verdade, tendo sido submetido ao Tribunal Constitucional um recurso com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, apenas pode constituir seu objecto a apreciação da inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) efectivamente aplicada na decisão recorrida.
No caso dos autos, a decisão recorrida é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Outubro de 2003, que rejeitou o recurso interposto pelo arguido, com fundamento na norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal – a norma que estabelece a irrecorribilidade “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos”.
Por isso, as referências feitas no acórdão recorrido a um eventual
“recurso do M.º P.º, não interposto no exclusivo interesse da defesa e que formulasse o pedido de agravamento da pena aplicada” têm de entender-se, no contexto da decisão proferida, como mero obiter dictum, sem relevância para a fundamentação da decisão.
Por outras palavras, tais referências não constituíram ratio decidendi do acórdão recorrido e, por isso, são insusceptíveis de constituir objecto idóneo de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Atenta a função instrumental reconhecida, em geral, ao recurso de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional só pode conhecer das questões de constitucionalidade normativa quando a decisão a proferir seja susceptível de influir utilmente no julgamento da questão de mérito discutida no processo
(cfr., a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal, n.º 257/92, Diário da República, II, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, p. 6448 ss, p. 6452, e n.º
440/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28º vol., p. 319 ss, p. 326).
Não pode, pois, o Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre outras considerações constantes do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – agora retomadas na reclamação –, que dizem respeito a uma possível diferença entre os pressupostos ou condições de admissibilidade de um eventual recurso a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça pelo Ministério Público e os pressupostos ou condições de admissibilidade de um recurso interposto para o mesmo Supremo Tribunal pelo arguido.
É que, fosse qual fosse o julgamento que o Tribunal Constitucional viesse a proferir sobre tal questão, sempre se manteria o sentido da decisão adoptada no caso pelo Supremo Tribunal de Justiça, uma vez essa decisão incidiu sobre um recurso interposto pelo arguido.
5. Na reclamação, o reclamante suscita depois uma questão relacionada com “o critério da recorribilidade ou irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça”, que, em sua opinião, não pode, e não deve, “ser ligado casuisticamente, a posteriori, às penas concretas aplicadas, antes devendo ser aferido, em abstracto e a priori, pelas molduras legais abstractas aplicáveis”
(cfr. fls. 619).
Com esta fórmula pouco precisa, parece o reclamante estar a questionar, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, a norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal – na dimensão interpretativa segundo a qual, tendo sido confirmada pelo Tribunal da Relação, uma condenação em pena de prisão de 4 anos e 6 meses, por crime cuja moldura abstracta seja superior a oito anos de prisão, não é admissível recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, quando o recurso for interposto apenas no interesse da defesa, dada a proibição da reformatio in pejus.
Ainda que se admitisse que, quanto a esta questão de constitucionalidade, estariam verificados os pressupostos do recurso interposto, nem assim a pretensão do reclamante poderia ser julgada procedente.
A questão equacionada – que essencialmente se reconduz ao problema de saber se o direito ao recurso consagrado no artigo 32º, n.º 1, da Constituição impõe, no caso, um triplo grau de jurisdição – foi já decidida pelo Tribunal Constitucional, em sentido negativo, a propósito de casos em tudo semelhantes ao dos presentes autos.
Disse o Tribunal no Acórdão n.º 451/2003 (disponível na página do Tribunal Constitucional na Internet, em www.tribunalconstitucional.pt):
“[...]
É certo que a interpretação normativa agora em causa não coincide com a que foi apreciada no Acórdão n.º 189/01 – neste a questão tinha directamente a ver com a pena aplicável em caso de concurso de infracções. A verdade, porém, é que, no confronto com o artigo 32º, n.º 1, da Constituição, a questão da conformidade constitucional da interpretação normativa adoptada no acórdão recorrida se coloca nos mesmos termos. Com efeito, a resolução da questão de constitucionalidade passa por saber quais os limites de conformação que o artigo 32º, n.º 1, da CRP impõe ao legislador ordinário, em matéria de recurso penal. E a resposta é dada no Acórdão n.º 189/01 no sentido de não haver vinculação a um triplo grau de jurisdição e de ser constitucionalmente admissível uma restrição ao recurso se ela não for desrazoável, arbitrária ou desproporcionada.
Ora, não podendo o Tribunal Constitucional censurar as interpretações normativas que, no estrito plano do direito infraconstitucional, são feitas nas decisões recorridas, a inadmissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão proferida em 2º grau de jurisdição que confirma a condenação decretada em 1ª instância, – quando esse recurso é apenas interposto pelo arguido e, por força da proibição da reformatio in pejus, o STJ nunca poderá impor pena superior a 7 anos de prisão –, afigura-se racionalmente justificada, pela mesma preocupação de não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (como sejam aquelas em que a pena aplicável, no caso concreto, não ultrapassa o referido limite), sendo certo que, por um lado, o direito de o arguido a ver reexaminado o seu caso se mostra já satisfeito com a pronúncia da Relação e, por outro, se obteve consenso nas duas instâncias quanto à condenação. Tanto basta para entender que a questionada interpretação normativa não incorre em violação do artigo 32º, n.º 1, da Constituição.
[...] Deve, antes de mais, registar-se o que constitui jurisprudência reiterada deste Tribunal: no julgamento de constitucionalidade de normas, em fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional não sindica, no estrito plano do direito infraconstitucional, as interpretações normativas feitas na decisão impugnada. O Tribunal Constitucional assume-as como um dado insindicável e é sobre elas que incide o seu juízo de conformidade ou desconformidade à Constituição.
Nesta medida, nada relevaria a circunstância de o Tribunal Constitucional porventura entender que, naquele plano, não seria correcta a interpretação normativa em causa. No caso, o que sucedeu foi que o tribunal “a quo” integrou no conceito de “pena aplicável” constante da norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f), do CPP, também, as situações em que, confirmada pela relação a decisão condenatória proferida em
1ª instância e sendo o recurso apenas interposto pelo arguido, nunca o STJ pudesse aplicar pena superior a oito anos de prisão. Ora, em primeiro lugar, a decisão reclamada adoptou o entendimento, pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional – não discutido, aliás, pelo recorrente – de que a Constituição não garantia, em processo penal, um 3º grau de jurisdição.
Seguidamente, considerou que a limitação do direito de recurso, resultante da interpretação normativa em causa, não era desrazoável, arbitrária ou desproporcionada, uma vez que era ainda a preocupação, fundada e aceitável, de, garantido já o direito de recurso, não assoberbar o STJ com a resolução de questões de menor gravidade (assim se compreendendo a inaplicabilidade, no caso, de pena de prisão superior a 7 anos de prisão, quando um tribunal superior já confirmou a decisão condenatória) que se vislumbrava naquela limitação.”.
Esta fundamentação, na qual assentou também a decisão do Acórdão n.º
495/2003 (que pode consultar-se em www.tribunalconstitucional.pt), é inteiramente transponível para o caso dos autos, sendo certo que, como foi sublinhado pelo representante do Ministério Público junto deste Tribunal, o ora reclamante não aduziu novos argumentos susceptíveis de alterar o sentido da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a matéria.
III
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação e, consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Rui Manuel Moura Ramos