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Proc. n.º 109/99
2ª Secção Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A – O relatório
1 - A., recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no art. 70º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (doravante LTC), do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
15 de Dezembro de 1998, «por entender que a interpretação dada ao artigo 193º, n.º 2, do C. P. I. e a proibição do uso pela Recorrente da marca “Pepe Card’s” viola, entre outros, os princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, da liberdade económica e livre iniciativa, contidos nos arts. 2º,
12º, 60º, n.º 1, 80º, alínea c), e 81º alínea e), da Constituição da República».
2 - O acórdão recorrido negou provimento ao recurso e confirmou o acórdão da Relação de Lisboa, de 30 de Abril de 1998, que, por seu lado, já havia negado provimento ao recurso e confirmado a sentença do Tribunal Cível da Comarca de Lisboa, de 9 de Julho de 1997. A decisão de primeira instância negou provimento ao recurso interposto pela ora recorrente do despacho do Director de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que havia recusado protecção à marca “Pepe Card’s” para produtos de vestuário, e exclusivamente para exportação, por considerar que a tanto impedia a existência da marca n.º
226.442, 247.803 e 293.710, respectivamente, “Pepe”, “Pepe2XL” e “Pepe Jeans” para produtos idênticos, com registo anterior e da titularidade da firma B., pelo que o despacho (administrativo) recorrido não havia violado, como a recorrente defendia, o disposto nos arts. 166º, al. a), 189º, al. m), e 193º, n.º 1, al. c), todos do C.P.I.
O despacho do Director de Marcas do Instituto Nacional da Propriedade Industrial indeferiu o pedido de registo de marca feito pela recorrente por ter considerado procedente a oposição, deduzida em reclamação, da titular das marcas anteriormente registadas n.os 226.422, 247.803 e 293.710 - agora representada pela recorrida - e com base no disposto no art. 187º, n.º 4, conjugado com o art. 189º, n.º 1, al. m), e no art. 25º, n.º 1, al. d), do C.P.I.
3 - Na parte útil à decisão agora a proferir, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça discreteou pelo modo seguinte:
«Quer na 1ª instância quer na Relação o recurso foi julgado improcedente. Inconformada, A. recorreu, agora, para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações de modo idêntico às que apresentou na Relação, acrescentando, porém, que: a- O vocábulo 'Pepe' não contém em si o requisito da singularidade e não pode ser objecto de um qualquer tipo de monopólio na sua utilização como parte de uma nova marca. b- Sendo violador dos princípios da liberdade económica e encerrando uma interpretação contrária aos princípios constitucionais expressos nos arts. 2º,
12º, 60, n° 1, 61º, n.º 1, 80º, al. c) e, particularmente, no art. 81º, al. e), da Constituição da República. Mas continua a não ter razão, porque o Acórdão recorrido contém as questões então levantadas e as soluções correctas e deu-lhes a devida fundamentação, sendo o vocábulo 'Pepe' um sinal nominativo decisivamente preponderante nas marcas registadas. Quanto ao problema da eventual inconstitucionalidade agora suscitado há que dizer: O direito de uso exclusivo concedido a uma marca nada tem a ver com monopólio, que respeita à estrutura do mercado, mas com um sinal distintivo na concorrência de produtos e serviços. Um tal direito de uso exclusivo tem, sim, a ver com a protecção do direito de invenção: protege a autoria de um serviço ou produto, através de um sinal ou conjunto de sinais nominativos, figurativos ou emblemáticos que nele aplicados ou no seu invólucro o fazem distinguir de outros idênticos ou semelhantes, compondo a marca, com função, também, de sugestão e de garantia. Não se vê, ainda, em que uma tal protecção possa afectar o direito dos consumidores, que de resto só têm a ganhar com o sinal distintivo de objectos trazida pela marca e que, sem confusão, lhes permite distingui-los dos restantes, nem em que medida seja restringida ou limitada a liberdade económica de quem quer que seja. De facto, apenas se impõe que terceiros não contrafaçam ou imitem o produto do engenho e da invenção alheia, permitindo a liberdade de iniciativa e de organização empresarial.
II - Da Decisão
Pelo exposto acorda-se em se negar a revista, remetendo-se, também, para os fundamentos da decisão impugnada, nos termos dos arts. 713º, n° 5, e 726º do CPC, na redacção do Dec. Lei n° 329-A/95, de 12 de Dezembro, ex vi do art. 25º, n.º 1, deste Diploma. Custas pela recorrente.».
4 - A recorrente fundou o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nas razões que condensou nas seguintes conclusões das suas alegações:
«1. O vocábulo, ou diminuto, 'Pepe' vulgarizou-se na linguagem habitual e corrente do povo, bem como no uso e hábitos leais e constantes do comércio, tornando-se um chamado 'sinal franco'.
2. Daí que no 'nosso mercado', o qual abrange o mercado Espanhol e os demais países da C.E., o diminutivo 'Pepe', só por si e desacompanhado de outros dizeres, sinais, nomes, desenhos, números ou sons, não é possível de ser jurídica e relevantemente apropriado ou monopolizado por um comerciante em detrimento dos demais.
3 - De igual modo também o vocábulo 'Jeans' há muito se estabeleceu no dia a dia dos indivíduos e do comércio como dizendo respeito, indistintamente, a qualquer tipo de 'calças de ganga', assim se transformando em manifesto 'sinal franco', não monopolizável por um comerciante.
4. O que significa que nem o vocábulo ou diminutivo 'Pepe' isoladamente, nem o vocábulo 'Jeans' isoladamente e, por maioria de razão, nem a junção de ambos
'Pepe Jeans' são passíveis de serem monopolizados por um comerciante em detrimento dos restantes. Ou seja, aqueles vocábulos porque são já verdadeiros e até exemplificativos 'sinais francos' não podem ser considerados de uso exclusivo de um comerciante como marca autónoma e distinta, impeditiva de outros poderem incluir qualquer daqueles vocábulos em marcas compostas pelos mesmos. Por outro lado,
5. A comparação e a análise da confundibilidade deve fazer-se excluindo os elementos ou palavras de uso comum, não monopolizáveis por um comerciante em detrimento de outro, como refere o Prof. Ferrer Correia quando escreveu: Tratando-se de marcas nominativas, deverá abstrair-se das palavras ou elementos de palavras de natureza descritiva ou de uso comum, limitando-se a apreciação à parte restante.
6. Por isso, a apreciação das marcas em confronto terá, no caso em apreço, de se fazer excluindo o vocábulo 'Pepe', por este assumir já uma manifesta e patente natureza de 'sinal franco', tal como o vocábulo 'Jeans', devendo relevar, mais do que nenhum outro, a manifesta e patente dissemelhança ou distinção gráfica e fonética do vocábulo 'Card's'.
7. A apelante que sabe e se conforma com a impossibilidade de monopólio referente a tal vocábulo 'Pepe', tem interesse e o direito de fazer registar a seu favor a marca composta pelos vocábulos 'Pepe Card's', sendo este último o elemento juridicamente relevante e significante.
8. Por isso deve ser igualmente respeitada a sábia orientação jurisprudencial que determina 'que a existência de elementos comuns, em princípio, não é relevante para afastar a exclusividade'. Acrescendo que,
9. O dito vocábulo 'Pepe' não contém em si o requisito da singularidade e não pode ser objecto de um qualquer tipo de 'monopólio' na sua utilização como parte de uma nova marca.
10. Sendo violador dos princípios da liberdade económica e encerrando uma interpretação contrária aos supra citados princípios constitucionais expressos nos arts. 2º, 12º, 60º, nº 1, 61º, nº 1, 80º, al. c), e, particularmente no art.
81º, al. e), da Constituição, a pretensão da recorrida de impedir que outrem use como parte de uma nova marca o dito vocábulo 'Pepe'. Pelo que,
11. Salvo o devido respeito, mais douta opinião, o douto Acórdão recorrido violou e, ou, interpretou erradamente o conjugadamente disposto nos arts. 2º,
12º, 60º, nº 1, 61º, nº 1, 80º, al. c), e 81º, al. e), da Constituição e nos arts. 10º, 28º, 32º, 38º, 39º, 44º, 165º, 166º, 167º, 168º, 171º e 181º do C.P.I.».
5 - O acórdão da Relação de Lisboa, para cuja fundamentação o acórdão do STJ remete na parte naquele conhecida, é do seguinte teor:
«Embora o Mmo. Juiz os não refira expressamente na sentença recorrida, os factos por ele considerados na parte útil do recurso são os seguintes:
- a apelante requereu em 28 de Dezembro de 1994 ao INPI registo da marca 'Pepe Card's' para assinalar 'vestuário';
- a sociedade B. reclamou no processo administrativo que correu perante o INPI, invocando os seus registos prioritários em Portugal sobre várias marcas caracterizadas pela expressão 'Pepe', também destinadas a artigos de vestuário, com o fundamento na possibilidade de confusão no mercado e de concorrência desleal que a marca registanda implicaria;
- por despacho de 15 de Julho de 1996, o INPI recusou o registo à marca 'Pepe Card's';
- a apelada é a titular dos registos das marcas 'Pepe', 'Pepe 2XL' e 'Pepe Jeans', que motivaram a recusa da marca 'Pepe Card's';
Quid iuris?
O que está em causa no presente recurso é a violação ou não do princípio da novidade ou da especialidade da marca. Tal princípio, a que também é usual chamar-se de 'princípio do exclusivismo', impõe que a marca, enquanto sinal distintivo de mercadorias ou produtos, não se confunda com outra anteriormente adoptada para o mesmo produto ou semelhante. Assim sendo, o critério a adoptar nesta matéria há-de ser, pois, o da susceptibilidade de erro ou confusão.
Como observa Ferrer Correia, 'o grau de semelhança que a marca não deve ter com outra registada anteriormente é definido por este elemento: possibilidade de confusão de uma com outra no mercado' (Lições de Direito Comercial, págs.
328/329).
Revertendo para o caso dos autos e não perdendo de vista a função primordial da marca - diferenciação de mercadorias ou produtos -, importa saber se o vocábulo
'Pepe' contido nas marcas nominativas em confronto é ou não um vocábulo com eficácia ou capacidade distintiva, um sinal franco, como aqueles a que se refere a alínea c) do n° 1 do artº 166° do CPI. Este normativo determina que não satisfazem o carácter distintivo da marca, consagrado no artº 165°, também do CPI, os sinais ou indicações que se tenham tornado usuais na linguagem corrente ou nos hábitos leais e constantes do comércio. Nestes casos, como refere Ferrer Correia, 'tratando-se de marcas nominativas, deverá abstrair-se das palavras ou elementos das palavras de natureza descritiva ou de uso comum, limitando a apreciação à parte restante. A marca não será nova quando, em confronto gráfico ou fonético com outra mais antiga, seja de molde a provocar confusão' (ob. cit., págs. 330/331). Tais expressões integram-se no conceito de sinais francos, ou seja, aqueles sinais ou indicações cujo uso geral e corrente se vulgarizou, entrando no património comum, não podendo, por via disso, ser monopolizados: é o caso, v.g., dos vocábulos 'o melhor', 'ideal', 'extra', 'super' (Ferrer Correia, ob. cit., pág. 326, e Pinto Coelho, Direito Comercial, I, pág. 363).
'Pepe' será um vulgar e notório diminutivo castelhano do nome José, mas não tem, como reconhece a recorrente, qualquer significado, nem existe na língua portuguesa. Não é, assim, vocábulo corrente na nossa linguagem, não nos parecendo redutor ou até temerário afirmar que, apesar da nossa conhecida tendência para o uso dos estrangeirismos, tal palavra nada diz à maioria dos portugueses, como não dirá a todos os outros (excepção óbvia para os espanhóis) aglutinados no mercado alargado da CE e, em alguns casos, por evidente maioria de razão, de tão ciosos da sua identidade e conhecida que é a sua relutância a influências estranhas, de que é paradigma a comunidade inglesa. Não sendo, pois, corrente na nossa linguagem e nada significando para a generalidade dos consumidores, principais visados pela alínea c) do n° 1 do artº
193° do CPI, parece que se impõe concluir não se dever considerar o questionado termo como um sinal franco; antes, e porque não tem relação necessária ou normal com os produtos que tem por função contradistinguir (artigos de vestuário), devendo ser considerado como identificador de marca de fantasia ou arbitrária, que normalmente até têm um forte carácter apelativo. Sendo este, em nosso entender, o sentido da solução da primeira questão, a irrelevância da segunda apresenta-se como apodíctica, já que o relevo na diferenciação entre as marcas 'Pepe', 'Pepe Jeans' e 'Pepe 2XL', por um lado e
'Pepe Card's', por outro, vai para o vocábulo 'Pepe', porque, sendo foneticamente mais forte, proporciona uma imagem acústica similar em todas as marcas, até por se tratar de vocábulo em língua estrangeira, sendo manifesta a sua supremacia em relação às expressões 'Card's', '2XL' ou 'Jeans', que são, assim, facilmente esquecidas na memória do consumidor, face à proeminência fonética e visual do elemento 'Pepe', a associar todas as marcas. Quer dizer, se é certo que a existência de elementos comuns, em princípio, não é relevante para afastar a exclusividade (cfr. Ac. do STJ de 16-6-95, CJ, Acs. do STJ, Ano III, Tomo II, pág. 130), não é menos certo que, no caso da marca 'Pepe Card's', esse elemento comum é susceptível de, só por si, induzir em erro ou confusão o consumidor, quando colocado em confronto com as marcas 'Pepe', 'Pepe
2XL' e 'Pepe Jeans'. Improcedem, destarte, as conclusões da alegação, estando, por isso, o recurso votado ao insucesso.
Nestes termos, negando provimento ao recurso, confirma-se a sentença.».
6 - Alegando neste Tribunal Constitucional, assim sintetizou as razões do seu recurso:
«1- O direito ao uso de uma marca, de acordo com o estipulado no C.P.I., deverá sempre ser compaginado com uma interpretação de acordo com os princípios constitucionais ao caso atinentes, convindo desde logo ter em conta que o direito de marca não é um direito absoluto e deve, na sua aplicação prática, ter em conta outros direitos a ele adjacentes e sobretudo outros direitos que lhe sejam até superiores, em força e em 'qualificação' jurídica.
2- O interesse e o direito protegido, de acordo com uma interpretação constitucional adequada do preceito do art. 193º, nº 2, do C.P.I., deve visar, nos seus justos limites, a protecção do detentor legítimo dessa mesma marca contra a contrafacção dos seus próprios produtos. E não como uma forma de uma determinada empresa ou grupo de empresas utilizando o estratagema de incluir um determinado vocábulo, nome ou 'sinal franco', conseguir 'monopolizar' em marcas sucessivas aquele mesmo vocábulo, impedindo outrem de fazer incluir aquele como parte componente de uma sua marca, para produtos cuja menor valia não foi invocada nem apreciada nas instâncias.
3- Convém não esquecer na aplicação dos princípios que o vocábulo 'Pepe' é, efectivamente, um vulgar e notório diminutivo castelhano do nome José. E, por força do íntimo relacionamento entre os dois Países Ibéricos, particularmente nas zonas fronteiriças bem como por força do mercado livre e alargado da Comunidade Europeia, tal vocábulo integra-se no conceito de 'sinal franco' ou seja aquele sinal ou indicação, cujo uso geral e corrente se vulgarizou, entrando no património comum, não podendo, por via disso, ser monopolizado por uma empresa.
4- Tal pretensão da recorrida em monopolizar esse vulgar vocábulo 'Pepe', e tentar evitar que outrem o possa utilizar como parte de uma outra marca, terá de ser rejeitada em função daqueles supra assinalados princípios da liberdade económica, da livre iniciativa e da livre circulação de mercadorias e sobretudo como forma de impedir que a recorrida, abusando da sua posição dominante no mercado, monopolize tal vocábulo, quer no mercado português quer no mercado dos restantes países da Comunidade Europeia e designadamente em Espanha.
5- O direito de uso exclusivo de uma marca, no caso dos autos, não pode significar o direito da recorrida a monopolizar o vocábulo 'Pepe'. Antes devendo relativizar-se tal direito da recorrida ao uso do vocábulo 'Pepe', por forma a que outrem, no caso a recorrente, não se veja impedida de fazer compor a sua própria marca, com o uso parcial de tal vocábulo. Assim melhor se protegendo a livre iniciativa das empresas e mais eficazmente se impedindo a prática, potencialmente monopolista da recorrida ao pretender impedir que outrem use como parte componente de uma marca o vulgar vocábulo 'Pepe'.
6- Pelo que, salvo o devido respeito e mais douta opinião, a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça às normas que definem a noção de marca e o seu
âmbito, e designadamente à norma contida no nº 2 do art. 193º do C.P.I., viola e, ou, interpreta de forma errada o conjugadamente disposto nos supra assinalados preceitos legais, contidos nos arts. 2º, 12º, 61º, nº 1, e 81º, al. e), da Constituição da República.».
7 - Por seu lado, a recorrida C., contra-alegou, concluindo pelo seguinte modo:
«O presente recurso de constitucionalidade visa, nos próprios termos utilizados pela recorrente no requerimento de interposição e bem assim nas alegações, censurar uma dada interpretação do disposto no art. 193°, nº 2, do CPI, que, segundo a recorrente, teria sido efectuada pelo acórdão do STJ ao confirmar a correcção da recusa do registo da marca PEPE CARD'S por risco de confusão com as marcas PEPE.
1) A recorrente não suscitou durante o processo de forma precisa, perceptível e directa, a inconstitucionalidade do que se estabelece no art.
193°, nº 2, do CPI pelo que o recurso não é admissível nos termos do art. 70°, nº 1, al. b), da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro.
2) A referida norma constante do art. 193°, nº 2, do CPI não foi invocada pelo INPI nem por qualquer das decisões judiciais subsequentes, incluindo a do acórdão recorrido, que, sobre constitucionalidade, apenas decidiu que a protecção do exclusivo da marca da recorrida e concomitante recusa do registo da marca da recorrente em nada ofendia a Constituição.
3) Quanto às normas efectivamente aplicadas, constantes do art.
189°, nº 1, al. m), e do art. 193°, nº 1, do CPI, também não estão reunidas as condições mínimas de admissibilidade, pelo que não deve conhecer-se do recurso.
4) Na verdade, a recorrente não indicou tais normas no requerimento, como lhe exigia o disposto no art. 75°-A, nº 1, da Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro.
5) Além disso, no fundo, o que a recorrente pretende é um controlo constitucional para uma decisão judicial e não para uma norma jurídica.
6) Ao sustentar que é inconstitucional o entendimento de que a marca PEPE CARD'S constitui imitação da marca PEPE, porque a palavra PEPE é elemento de uso corrente e inapropriável, a recorrente pretende unicamente sindicar em 4° grau de jurisdição as decisões que unânime, consecutiva e reiteradamente lhe denegaram o registo.
7) Ora, o STJ não interpretou o art. 193°, nº 1, ou o art. 189°, nº
1, al. m), do CPI, partindo do pressuposto de que 'Pepe' é uma expressão de uso geral e corrente, nem o podia ter feito, dado que esta última proposição é uma questão de facto definitivamente julgada pelas instâncias, aliás no sentido desfavorável à recorrente.
8) Não se alcança pois como poderia a recorrente censurar, por inconstitucional, uma interpretação que não foi feita na medida em que o Supremo se limitou a ter em conta o facto de que Pepe não é 'sinal franco' para aplicação definitiva do regime jurídico que julgou adequado (art. 729°, nºs 1 e
2, do CPC).
9) Sem conceder, não há qualquer incompatibilidade entre a afirmação do exclusivo das marcas da recorrida ou a recusa do registo pretendido pela recorrente e os princípios do Estado de Direito Democrático, da liberdade económica e da livre iniciativa.
10) Tais princípios são densificados no plano da legislação ordinária, nomeadamente, no que concerne à utilização das marcas na actividade económica, no CPI, pelo que é nesse plano e não na Constituição, como parece pretender a recorrente, que se devem encontrar os critérios normativos de resolução de conflitos entre marcas.
11) Tais princípios coexistem na Constituição económica com o princípio da concorrência que deve ser equilibrada e salutar, imperativo que, entre outras, postula a protecção dos direitos patrimoniais privados, integrados no conceito constitucional amplo de propriedade (art. 62°, nº 1, da CRP) como é o caso do direito exclusivo à utilização da marca.
12) A marca não se traduz numa estrutura monopolista do mercado mas consiste num sinal distintivo de produtos ou serviços, que serve para as empresas identificarem os seus produtos ou serviços e são utilizadas pelos consumidores como importantes auxiliares informativos das suas escolhas.
13) Para cumprirem essa função distintiva as marcas têm de ser atribuídas com exclusividade a um determinado titular sob pena de se caucionar todo o tipo de erros e confusões.
14) As liberdades económicas e de iniciativa devem ainda harmonizar-se com o respeito dos direitos fundamentais dos consumidores que a recusa do registo da marca PEPE CARD'S por virtude do risco de confusão com as marcas PEPE, confirmada pelo douto acórdão recorrido do STJ, se destina também a salvaguardar, numa correcta e constitucional aplicação das disposições impeditivas do registo.».
8 - Ouvida por despacho do actual relator a quem o processo foi redistribuído, por virtude do anterior ter deixado de fazer parte do Tribunal, sobre as questões prévias de não conhecimento do recurso de constitucionalidade, a recorrente obtemperou nos seguintes termos:
«Notificada para responder à questão prévia suscitada pela recorrida,
Vem dizer o seguinte:
1° A Recorrente foi surpreendida com as interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias no que tange ao atacado art. 193°, n° 2, do CPI.
2° Designadamente, no que concerne à norma interpretativa extraída pelas instâncias do artigo do CPI supra aludido.
3° Norma interpretativa essa que foi sucessivamente sendo atacada, por violadora dos princípios e normas constitucionais invocadas nas alegações de recurso.
4° E isto, repete-se, apesar de tal norma interpretativa, tirada pelas instâncias daquele dispositivo legal, ter um carácter inesperado e surpreendente, na medida em que vem absolutizar o direito de marca, não o compaginando com os demais direitos a ele adjacentes, conforme se invocou.
5° Por tudo isto, e sendo de um ou de outro modo, entende a Recorrente não serem procedentes as questões prévias de inadmissibilidade do recurso, invocadas pela recorrida.
6° Acrescendo que o próprio recurso já antes foi admitido conforme dos autos melhor se alcança.».
Cumpre decidir, começando, evidentemente, pelas questões prévias suscitadas pela recorrida relativas ao não conhecimento do recurso.
B - A fundamentação
9 - Como deflui do relatado, a recorrida suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso com base em fundamentos distintos que se podem sintetizar do seguinte modo: segundo o primeiro, porque a recorrente, nem nas alegações de revista, nem em momento algum anterior, suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 193º, n.º 2, cuja constitucionalidade pretende agora sindicar, nem essa norma foi invocada pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial como fundamento da recusa do registo da marca, nem foi aplicada por qualquer das decisões judiciais subsequentes; de acordo com o segundo, porque, “mesmo que se admitisse que a pretensão da recorrente era afinal que o Tribunal sindicasse a interpretação dada ao disposto no art. 193º, n.º 1, do CPI, a recorrente não indicou tal norma no requerimento de interposição como lhe competia (art. 75º-A, n.º 1, da LTC), nem é possível determinar qual a norma jurídica cuja constitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie” e porque pretende sindicar a decisão judicial enquanto tal e não normas jurídicas e só estas e não aquelas podem ser objecto de controlo constitucional.
Na sua resposta à questão prévia, a recorrente não nega que pretenda sindicar a conformidade com a Lei Fundamental do art. 193º, n.º 2, do CPI. Ao invés, ao afirmar, nos artigos 1º e 2º do seu articulado, que “a Recorrente foi surpreendida com as interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias no que tange ao atacado art. 193º, n.º 2”, “designadamente, no que concerne à norma interpretativa extraída pelas instâncias do artigo do CPI supra aludido”, a recorrente deixa claro que é exactamente essa norma, numa sua significação interpretativa, que constitui o objecto do seu recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. Sendo assim, impõe-se reconhecer que assiste razão à recorrida quanto à inadmissibilidade do recurso. Senão vejamos.
O recurso para este Tribunal Constitucional vem interposto ao abrigo do art.
70º, n.º 1, alínea b), da LTC. Ora, constituem pressupostos específicos deste recurso que a norma cuja inconstitucionalidade se pretende que seja apreciada pelo Tribunal tenha constituído a ratio decidendi da decisão, ou seja, o fundamento normativo do concreto conteúdo da decisão, e que essa inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo. Quanto ao primeiro requisito trata-se de um pressuposto demandado pela própria natureza da função jurisdicional e pelo sistema adoptado pela nossa Constituição do controlo difuso da constitucionalidade, já que não cabe aos tribunais, incluindo o Tribunal Constitucional, pronunciarem-se sobre questões a título académico, sobre questões de cuja resolução não depende a solução da causa
(cfr., entre muitos, os Acórdãos deste Tribunal n.º 232/02, n.º 155/00, n.º
157/00 e nº 674/99, publicados no Diário da República II Série, respectivamente, de 18 de Julho de 2002, 9 de Outubro de 2000 e 25 de Fevereiro de 2000). Cabe, por outro lado, notar aqui que o nosso sistema de controlo de constitucionalidade é de controlo de normas e não de actos de outra natureza, como actos administrativos ou decisões judiciais, que façam aplicação directa de normas ou princípios constitucionais. Relativamente ao segundo, trata-se de uma exigência que é postulada pelo sistema de controlo difuso da constitucionalidade, de acordo com o qual o órgão jurisdicional de fiscalização concentrada de constitucionalidade só deve conhecer das questões de constitucionalidade por via de recurso de decisões dos outros tribunais que as hajam apreciado. De harmonia com a jurisprudência constante e uniforme deste Tribunal Constitucional, este segundo requisito do recurso deve ser entendido não num sentido puramente formal, mas num sentido funcional, isto é, a questão há-de ser suscitada num momento tal que o tribunal a quo ainda pudesse dela conhecer, ou seja, antes de esgotado o seu poder jurisdicional. Mas tal entendimento comporta excepções, entre elas se contando aqueles casos ditos de “anómalos” em que o recorrente é confrontado com uma situação de interpretação/aplicação normativas de todo imprevistas e inesperadas feitas pela decisão relativamente às quais não seria razoável e adequado exigir do interessado um prévio juízo de prognose que lhe permitisse antecipar a suscitação da questão de inconstitucionalidade.
Ora, examinado o acórdão recorrido, nele se integrando a fundamentação expendida no acórdão da Relação, por o mesmo a haver acolhido por inteiro, consta-se que o artigo 193º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial
(versão do Decreto-Lei n.º 16/95, então vigente; hoje vigora a versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 36/2003, de 5 de Março) não foi aplicado como ratio decidendi da decisão. Em ponto algum do seu discurso argumentativo, ou do acórdão da Relação de que o mesmo se apoderou, se invoca o comando ou normatividade constante de tal preceito para concluir, como concluiu, em sede de direito ordinário, pelo não provimento do recurso e confirmação do julgado em 2ª instância. Segundo decorre do aresto da 2ª instância assumido pelo Supremo, cuja exacta interpretação não dispensa o seu cruzamento com a fundamentação em que se estriba a decisão da 1ª instância, a confirmação do julgado relativo à recusa do registo da marca “Pepe Card´s” abonou-se no entendimento de que o vocábulo
“Pepe”, que corresponde a uma das marcas registadas ou que entra na composição gráfica e fonética das outras duas, igualmente registadas - todas em nome da ora recorrida - “não se deve considerar como um sinal franco”, “como aqueles a que se refere a alínea c) do n.º 1 do art. 166º do C.P.I.”, mas “antes, e porque não tem relação necessária ou normal com os produtos que tem por função contradistinguir (artigos de vestuário), [...] como identificador de marca de fantasia ou arbitrária, que normalmente até têm um forte sinal apelativo”, e na consideração de que, sendo assim, se impunha a recusa do registo face ao prescrito no art. 189º, n.º 1,. al. m), conjugado com o disposto no art. 193º, n.º 1, ambos do C.P.I. Acentue-se, de resto, que a controvérsia entre as partes se centrou sempre, e apenas, em todas as instâncias, na questão de saber se o vocábulo “Pepe” se devia considerar como um sinal franco na acepção do art.º
166º, n.º 1, alínea c), do C.P.I. e se se verificava a situação descrita nas alíneas a) a c) do n.º 1 do art. 193º do C.P.I. e, maxime, a hipótese configurada na alínea c), já que fora sob sua invocação que, nos termos do art.
189º, n.º 1, al. m), do mesmo Código, fora recusado o registo, tendo-lhe aquelas dado, sempre e unanimemente, uma resposta afirmativa - de existência de semelhança com sinal não franco constante de marca anteriormente registada em nome de outro titular.
Ao contrário do que a recorrente aduz na sua resposta à questão prévia nunca as instâncias invocaram o comando constante do art. 193º, n.º 2, do C.P.I. para confirmar a recusa do registo da marca da recorrente e o decidido quanto a ela em sede jurisdicional, nem o tribunal a quo depreendeu o conteúdo da decisão recorrida da normatividade que o seu texto transporta, texto este que tem a seguinte redacção: “Constitui imitação ou usurpação parcial de marca o uso de certa denominação de fantasia que faça parte de marca alheia anteriormente registada, ou somente o aspecto exterior do pacote ou invólucro com as respectivas cor e disposição de dizeres, medalhas e recompensas, de modo que pessoas que os não interpretem os não possam distinguir de outros adoptados por possuidor de marcas legitimamente usadas, mormente as de reputação ou prestígio internacional.”. Sendo assim, não tem o mínimo sentido dizer-se “surpreendida com as interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias no que tange ao atacado art. 193º, n.º 2, do C.P.I.”. Há, pois, que concluir que não se verifica o requisito do recurso de aplicação como ratio decidendi da norma constante do art. 193º, n.º 2, cuja constitucionalidade se pretende sindicar. Deste modo não importa saber se se deveria considerar a recorrente dispensada do ónus da sua suscitação numa situação como a presente em que o artigo em causa diz, no primeiro número - e que foi o aplicado - quando é que uma marca se considera imitada ou usurpada no todo ou em parte em relação a outra, e no segundo número, não aplicado, se define como constituindo imitação ou usurpação parcial de marca uma determinada realidade factual, aí enunciada. Por outro lado, importa ainda notar que, embora falando de uma “norma interpretativa extraída pelas instâncias do artigo do C.P.I. aludido” (artigo 2º da dita resposta), o certo é que a recorrente em ponto algum das alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, cuja síntese se deixou atrás transcrita, ou sequer no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional, momento este a considerar no caso de interpretação/aplicação insólita ou imprevisível a que parece apelar na resposta
à questão prévia, definiu essa dimensão interpretativa em termos de se poder considerar problematizada uma questão de constitucionalidade em termos perceptíveis. Nas alegações para o STJ a questão que aí se vê colocada é abertamente a da inconstitucionalidade à face dos preceitos dos arts. 2º, 12º,
60º, n.º 1, 61º, n.º 1, e 80º, al. c), da Constituição da solução ditada pelas instâncias de considerarem o vocábulo “Pepe” como sinal que não é de uso geral e inapropriável. Tal sentido resulta de todo o seu discurso alegatório e, maxime, do afirmado nas conclusões 9º e 10º. E foi exactamente nesta perspectiva que o STJ o entendeu e lhe deu resposta. Por último, diga-se ainda que a recorrente continua, no próprio requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, a pretender a apreciação da constitucionalidade da própria decisão judicial quando diz que recorre «por entender que a interpretação dada ao artigo 193º, n.º 2, do C.P.I. e a proibição do uso pela Recorrente da marca
“Pepe Card’s” viola, entre outros, os princípios constitucionais [...]».
Deste modo, quer porque não se vê que a decisão recorrida tenha aplicado a norma do art. 193º, n.º 2, do C.P.I., cuja constitucionalidade se pretende sindicar perante este Tribunal, quer porque a recorrente não definiu em termos perceptíveis que dimensão normativa do n.º e daquele artigo pretende confrontar com as normas e princípios constitucionais que indicou, ou seja, não problematizou em termos adequados a questão de constitucionalidade normativa, e, finalmente, quer porque pretende, ainda, sindicar a decisão judicial em si própria, na aplicação directamente feita por esta das normas e princípios constitucionais, não se pode tomar conhecimento do recurso.
É, pois, de deferir a alegação da recorrida relativa à questão prévia analisada.
C – A decisão
10 - Destarte, atento tudo o exposto, decide este Tribunal Constitucional não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente com taxa de justiça que se fixa em 10 UC.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004
Benjamim Rodrigues Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos