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Processo n.º 297/03
2ª Secção Relator: Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
A. Relatório
1. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Instrução Criminal do Porto vem, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, al. a), e n.º 3 da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70.º, n.º 1, al. a), e 75.º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro (doravante designada por LTC), interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão proferida, em 1 de Abril de 2003, pela Juíza do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, que «não procedeu ao determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que impunha que “devia ser dada a palavra ao ilustre mandatário ou defensor do arguido para tomar e se pronunciar sobre a medida a aplicar a este, sob pena de irregularidade”, por entender que a interpretação dada ao disposto no n.º 2 do artigo 194.º do Código de Processo Penal por aquele Alto Tribunal era manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 161, al. c), e 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República».
2. A arguida A., identificada com os sinais dos autos, “não se conformando com o despacho que impediu o seu mandatário de estar presente à promoção do Mº Pº sobre medidas coactivas e não lhe permitiu tomar posição sobre as mesmas, bem como o que lhe impôs a medida coactiva de prisão preventiva”, interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto – v. fls. 112 a 120 –, sustentando a revogação da respectiva decisão do Tribunal de Instrução Criminal do Porto.
3. O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 5 de Fevereiro de 2003, decidiu “ revogar os despachos recorridos, que deverão ser substituídos por outro em que seja permitido ao ilustre mandatário da arguida tomar posição sobre a promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, em que este promove que a arguida seja sujeita à medida de prisão preventiva e só então a Mmª Juíza decidir em conformidade com os elementos constantes no processo”, ordenando ainda que “deverá a arguida, ora recorrente, ser restituída à liberdade, passando-se de imediato o respectivo mandado de libertação (…)”.
Tal decisão louvou-se na fundamentação que infra se transcreve:
«Dispõe o artº 194°, n° 2, do CPP que 'A aplicação referida no número anterior é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório judicial'. Constata-se pela acta de fls. 98 a 103 que esteve presente no interrogatório da arguida efectuado em 3 de Dezembro de 2002, no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, o ilustre mandatário da arguida Dr. B.. No entanto verifica-se pela leitura da mesma acta que não foi dada a possibilidade ao referido senhor mandatário de estar presente e tomar posição, aquando das medidas coactivas então requeridas pelo Ministério Público para serem aplicadas à arguida, pelo que surge na acta em questão, um requerimento do ilustre mandatário da arguida do seguinte teor: 'Neste momento foi pedida a palavra pelo ilustre mandatário dos arguidos: para arguir a irregularidade de não lhe ser permitido estar presente à promoção do Ministério Público sobre medidas coactivas e, outrossim de não lhe ser permitido tomar posição sobre as mesmas'. Requerimento esse sobre o qual recaiu despacho da Mmª Juíza do seguinte teor 'No entender do ilustre mandatário dos arguidos, a sua não presença no gabinete, aquando da douta promoção do Senhor Procurador após os interrogatórios dos arguidos relativamente à medida coactiva a aplicar aos mesmos implica uma irregularidade. Salvo o devido respeito por outro entendimento, parece-nos que não lhe assiste qualquer razão, na medida em que, em parte alguma, a Lei impõe ou prevê tal situação. Tanto mais que nesta fase (primeiro interrogatório, nos termos do disposto no artº 141º, do Código de Processo Penal), não há lugar ao princípio do contraditório, isto é, o despacho a proferir em conformidade com os elementos existentes nos autos, apenas pode ser atacado por via de recurso. Assim sendo, e sem necessidade de mais considerandos, considero improcedente a arguida irregularidade. Notifique'. Ora, atendendo a que o nosso processo penal é um processo garantístico em que a defesa do arguido, deve e tem necessariamente de estar ao mesmo nível da respectiva acusação, não se compreende o facto de não ter sido dada a possibilidade ao ilustre mandatário da arguida de tomar posição sobre o requerimento do Ministério Público, em que se requer a imposição à arguida da medida coactiva de prisão preventiva. Veja-se o que estabelece o artº 32°, n° 1, da CRP 'O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa', e o que diz o n° 5 do mesmo normativo
'O processo criminal tem estrutura acusatória, ...... e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório'. Assim e nos termos do artº 194°, n° 2, do CPP, já atrás citado, aquando da promoção do Digno Magistrado do Ministério Público sobre as medidas coactivas a aplicar à arguida (prisão preventiva), deveria ter sido dada a palavra ao senhor mandatário da arguida para tomar posição e se pronunciar sobre as mesmas e só então seria lícito à Mmª Juíza decidir de acordo com os elementos trazidos ao processo e a todos os indícios recolhidos qual a medida coactiva a aplicar à arguida, ao não fazê-lo violou a Mmª Juíza o disposto no artº 194°, n° 2, do CPP, tendo cometido uma irregularidade processual, artº 123°, n° 1, do CPP, que foi arguida pelo interessado atempadamente, ou seja no próprio acto, conforme já atrás se referiu, e que conduz à nulidade do despacho que indeferiu a pretensão da arguida em ser ouvida sobre a promoção do Ministério Público sobre as medidas coactivas a aplicar e a consequente nulidade do despacho que impôs a medida coactiva de prisão preventiva à arguida, neste sentido veja-se o Ac. da Rel. de Coimbra de 17 de Novembro de 1993, in CJ, XVIII, tomo 5, 56. Assim sendo, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas, ou seja a alteração ou não das circunstâncias que haviam determinado a medida coactiva anterior ou a inexistência de fortes indícios de que a arguida praticou o crime de tráfico de estupefacientes».
4. Remetidos os autos ao Tribunal de Instrução Criminal do Porto, a Juíza proferiu o seguinte despacho decisório:
«(…) O referido recurso, foi interposto, não só da questão de fundo (medida coactiva aplicada), mas ainda, da questão prévia, da parte daquele despacho, que indeferiu a irregularidade suscitada pelo seu Ilustre mandatário, relativamente ao facto de lhe não ser permitido estar presente à promoção do Ministério Público sobre as medidas coactivas, a aplicar à arguida, e bem assim, de sobre as mesmas se pronunciar.
No Douto Acórdão foi então entendido que a mencionada situação consubstancia uma irregularidade processual, nos termos do n° 1 do art. 123° do C.P.P., e, conhecendo a mesma, julgou nulo o despacho que indeferiu (julgou improcedente por não provada) a irregularidade arguida e, consequentemente, nulo o despacho
(de fundo) que impôs à arguida a medida de prisão preventiva.
Nessa conformidade, o Douto Acórdão, revogou os despachos recorridos, e ordenou que os mesmos fossem substituídos por outro, em que seja permitido ao Ilustre Mandatário da arguida tomar posição sobre a promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, em que este promove que aquela seja sujeita à medida de prisão preventiva, a fim de se decidir em conformidade com os elementos constantes no processo.
As Doutas considerações aduzidas e que levaram às Doutas conclusões finais do Douto Acórdão, encontram fundamento legal no disposto no n° 2 do art. 194°, do C.P.P., na interpretação que lhe é dada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.
Dispõe o referido preceito legal que:
'A aplicação referida no número anterior (n° 1) é precedida, sempre que possível e conveniente, de audição do arguido e pode ter lugar no acto do primeiro interrogatório'. O n° 1 prescreve que:
'À excepção do termo de identidade e residência, as medidas de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público.' Salvo o devido respeito, e que é muito, por outro entendimento, da interpretação deste dispositivo, não extraímos que, o juiz, para aplicar qualquer medida coactiva ou de garantia patrimonial, à excepção do TIR, tenha que dar a palavra, ainda que a audição (interrogatório) do arguido, que deve ter lugar sempre que possível e conveniente, seja a do seu 1º interrogatório (art. 141 ° do C.P.P.), ao seu Ilustre Mandatário ou Defensor, para se pronunciarem, sobre a medida proposta pelo Mº.Pº. , titular do inquérito.
Entendemos que, na norma em apreço, onde se prescreve 'é precedida de audição do arguido - independentemente do momento em que tiver lugar - deve entender-se que quer significar que, 'qualquer medida de coacção, para além da prevista no art.
196° do C.P.P., só pode ser aplicada ao arguido, com prévio interrogatório deste, e não, como é entendido pela interpretação que lhe é dada pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, que no caso, entende que, de acordo com o referido dispositivo, antes do juiz decidir, 'deve ser dada a palavra ao ilustre mandatário ou defensor do arguido, para tomar posição e se pronunciar sobre a medida a aplicar a este, sob pena de irregularidade.
Salvo o devido respeito, em nosso entender, esta interpretação, não tem acolhimento na Lei, a qual em lugar algum, impõe que o juiz de Instrução, para decidir da medida coactiva a aplicar ao arguido, tenha que ouvir a versão do mandatário ou defensor do arguido, sobre a posição que o Mº Pº tiver tomado sobre a mesma.
Ora, a fazer-se e defende[r]-se tal interpretação, está a criar-se, em nossa opinião, um novo preceito legal, por via jurisprudencial, o que não é permitido pela Lei Fundamental (art. 161°, alínea c), já que, conforme dispõe o seu art.
165°, n° 1, alínea c), a criação de qualquer normativo legal é da exclusiva competência da Assembleia da República e está-lhe reservada.
Nesta conformidade, entendemos que a interpretação dada ao n° 2 do art. 194°, do C.P.P., pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, é manifestamente inconstitucional, por violação do disposto nos referidos arts. da C.R.P. Assim sendo, não procedemos ao determinado por aquele Venerando Tribunal, nas Doutas conclusões do Acórdão em apreço (…)».
5. De tal decisão – que «não procedeu ao determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que impunha que “devia ser dada a palavra ao ilustre mandatário ou defensor do arguido para tomar e se pronunciar sobre a medida a aplicar a este, sob pena de irregularidade”, por entender que a interpretação dada ao disposto no n.º 2 do artigo 194.º do Código de Processo Penal por aquele Alto Tribunal era manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 161, al. c) e 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República» – foi interposto, pelo Ministério Público, recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo dos artigos 280.º, n.º 1, al. a) da Constituição e 70.º, n.º 1, al. a) da LTC.
6. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da procedência do recurso “por não ocorrer a invocada inconstitucionalidade”, posto que “não traduz invasão do âmbito da competência legislativa reservada à Assembleia da República, a actividade dos tribunais de interpretarem e aplicarem determinadas normas jurídicas ao caso que são chamados a decidir, no âmbito das suas competências próprias”.
Corridos os vistos, cumpre agora decidir.
B. Fundamentação
7. A “questão de constitucionalidade” trazida a este Tribunal resulta da decisão do Tribunal de Instrução Criminal do Porto que não procedeu ao determinado pelo Tribunal da Relação do Porto por entender que tal se traduziria na aplicação do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, numa interpretação inconstitucional, violadora dos artigos 161.º, alínea c), e 165.º, n.º 1, al. c), da Lei Fundamental. Nestes termos, a questão decidenda constituirá em apurar se a norma do artigo
194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de permitir à defesa pronunciar-se sobre a promoção do Ministério Público relativamente ao pedido de prisão preventiva do arguido, viola o disposto nos artigos 161.º, alínea c) e 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa.
8. Estabelecida a norma que a decisão recorrida não aplicou, vejamos o teor dos dispositivos constitucionais que se consideraram violados.
O artigo 161.º da Constituição afirma, sob a epígrafe “competência política e legislativa”, que:
“Compete à Assembleia da República:
[…] al. c) Fazer leis sobre todas as matérias, salvo as reservadas pela Constituição ao Governo;”
[…]”.
Por sua vez, o artigo 165.º, n.º 1, al. c), da Constituição dispõe que:
“1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo:
[…]
al. c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal
[…]”.
9. A decisão recorrida assenta num fundamento-base que constitui o cerne da presente questão de constitucionalidade trazida a este Tribunal. No entendimento da decisão do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, “a fazer-se e defende[r]-se tal interpretação [firmada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto], está a criar-se (…) um novo preceito legal, por via jurisprudencial, o que não é permitido pela Lei Fundamental (…), a criação de qualquer normativo legal é da exclusiva competência da Assembleia da República e está-lhe reservada”. Tal argumentação – refira-se desde já –, atendendo ao núcleo caracterizador das funções legislativa e judicial, e, num âmbito mais amplo, ao próprio princípio da separação dos poderes, deve ter-se por improcedente, porquanto a decisão judicial de um problema jurídico concreto – e a interpretação aí dada a uma determinada norma legal – não se traduz na criação de uma prescrição legal – ou, rectior, de uma norma materialmente apelidada de “lei”.
10. Importa começar por mencionar que, nos termos constitucionais, cabe aos tribunais “administrar a justiça em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1, in fine, da C.R.P.). Esta tarefa jurisdicional radica, praevalet quod principale est, na resolução de problemas jurídicos concretos – rectior, na decisão judicativa de problemas jurídicos concretos [cf. A. Castanheira Neves, Metodologia Jurídica - Problemas Fundamentais, Coimbra, 1993, pp. 17 e ss., esp.te 30 e ss., Fernando José Bronze, A Metodonomologia entre a Semelhança e a Diferença (Reflexão problematizante dos pólos da radical matriz analógica do discurso jurídico), Coimbra, 1994, pp. 113 e ss. e Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, pp. 569 e ss.] –, personalizando-se assim na jurisprudência judicial o problema[-função] da concreta realização do direito – ou, mais impressivamente, nas palavras de A. Castanheira Neves (in O Instituto dos “Assentos” e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983, pp. 415-416), o problema “[d]a histórico-socialmente concreta realização do direito”, porquanto, como afirma o Autor, «(…) é no dirimir dos conflitos de interesses, ou no concreto decidir dos litígios, que a função jurisdicional afinal culmina e é, portanto, desse modo que ela verdadeiramente se define. De outra forma: é desse modo que lhe compete
“administrar a justiça” – decidindo litígios mediante uma normatividade jurídica que eles concreta e mesmo constitutivamente exijam, e isso já com base nos fundamentos legais invocados para o reconhecimento de direitos e interesses ou invocando a legalidade por que se imponha em geral a ordem jurídica objectiva, já mediante (…) princípios e critérios normativo-jurídicos trans-legais», acabando, assim, a função jurisdicional por ser constitucionalmente compreendida
«como função de juízo – considerado aqui o “juízo” no seu entendimento clássico, de prudencial e histórico concreto “ius dicere” (…)». No domínio de um sistema jurídico-constitucional do tipo do nosso, compreende-se que a concreta realização do direito, personalizada, como se mencionou, na jurisprudência, ocorra, as mais das vezes, por mediação de normas legais. Ora, a prático-prudencial mobilização de um critério legal pré-objectivado não pode dispensar, como também se compreende, uma actividade metodológica “de determinação do sentido jurídico-normativo d[e uma]a fonte jurídica em ordem a obter dela um critério jurídico (um critério normativo de direito) no âmbito de uma problemática realização do direito e enquanto momento normativo-metodológico dessa mesma realização” (A. Castanheira Neves, Interpretação Jurídica, in Digesta, 2º vol., Coimbra, 1995, p. 338 e Metodologia Jurídica, op. cit., p.
83): cabendo aos tribunais a tarefa de decidir judicativamente os problemas jurídicos concretos, deve, de facto, ter-se por assente que o cumprimento desta função, designadamente no que concerne à “aplicação” de normas legais, não dispensa um esforço interpretativo orientado a apurar de que modo se deve assimilar o sentido jurídico da norma legal para que esta possa constituir um
“critério (…) juridicamente adequado de uma justa decisão do problema jurídico concreto” (idem, página 84). Tal actividade, estritamente direccionada a uma decisão jurisprudencial concreta, não deixa, semel pro semper, de estar vinculada ao caso historicamente concreto que o Tribunal ajuizou e não pode ser confundida com um exercício legiferante, funcional-intencionalmente perpassado por preocupações
(jurídico-)políticas, que culmine – ou se realize – na elaboração de um preceito geral e abstracto que atinja directamente os sujeitos da ordem jurídica geral com um carácter e uma eficácia universais (lançando aqui mão do «critério material, segundo o qual as normas jurídicas se vejam revestidas da qualificação que no-las faça dizer “leis”», perfilhado por A. Castanheira Neves, in O Instituto dos “Assentos”…, op. cit., pp. 314 e ss.). Não pode, assim, confundir-se a interpretação jurisdicional plasmada no juízo decisório do Tribunal da Relação do Porto com uma qualquer “prescrição jurídica[-legislativa] (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstracta, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e (…) se impõe com a força ou a eficácia de uma vinculação normativa universal”. Em bom rigor, se é certo que, como afirma Fernando José Bronze (in Lições…, op. cit., p. 329), “o juiz tem sempre, nolens, volens, uma necessária participação no processo constitutivo da juridicidade vigente, quando se ocupa da sua específica tarefa institucional, mesmo que possa utilizar, como critério da concreta decisão judicativa, uma norma pré-objectivada no sistema, em virtude da insuficiência intencional que esta última ineliminavelmente apresenta”, também não é menos verdade que essa participação culmina (e realiza-se) na solução jurídica de um caso concreto (problematicamente convocada e (de-)limitada pela realidade histórico-concreta que se encontre sub judicio) e é marcada por uma
índole que, na essência, se distingue do exercício legislativo (v., por todos, A. Castanheira Neves, O Instituto dos “Assentos”…, op. cit., pp. 475 e ss.).
11. O problema sub judicio que se coloca a este Tribunal não tem, aliás, que ver com aqueloutro respeitante à admissibilidade constitucional dos assentos, relativamente aos quais se afirmou, doutrinalmente, que eles “abandonam o domínio da jurisdição para entrarem no domínio da legislação” (referindo aqui, pela especial relevância que a posição do Professor de Coimbra assume no confronto com o mérito jurídico do caso decidendo, A. Castanheira Neves – O Instituto dos “Assentos”…, op. cit., pp. 398-399), e, jurisprudencialmente, que os assentos «se apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de “quaisquer outras normas do sistema”, revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral, isto é, obrigando não apenas os tribunais, mas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global» – tendo o Tribunal Constitucional, na esteira de diversas decisões, declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que se atribuía aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da C.R.P. – actual n.º 112.º, n.º 6 – (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 743/96, 810/93, 40/84, 68/86 e 104/86). A “chamada à colação” dos assentos justifica-se precisamente para ilustrar que, no caso concreto, o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto (designadamente no que concerne à interpretação dada ao artigo do Código de Processo Penal) não configura o exercício de um qualquer poder normativo de índole prescritivo-legislativa. Na verdade, se, no domínio dos assentos, podia afirmar-se que se estava perante
«um critério jurídico universalmente vinculante, prescrito por um “órgão judicial” sob a forma de uma norma (“no sentido estrito de [norma geral], ou de
[‘preceito geral e abstracto’, que como [tal… abstraía] (na sua intenção) e se
[destacava] (na sua formulação) [do caso] ou [decisão jurisdicional] que
[tivesse] estado na sua origem, com o propósito de [… estatuir] para o futuro, de se [impor] em ordem a uma aplicação futura”» (nestes termos, remetendo para o pensamento de A. Castanheira Neves – O Instituto dos Assentos…, op. cit., p. 2 ss. e n. 6 –, Fernando José Bronze – Lições de Introdução ao Direito, op. cit., p. 646 –, que refere precisamente que “com os assentos atribuía-se, portanto, a um órgão jurisdicional – em especial ao STJ – o anómalo poder de, para além de naturalmente decidir o caso-problema emergente, prescrever uma norma geral e abstracta, vinculativa para todas as controvérsias que, no futuro, como espécies, justificassem a observância do género instituído (…)” – idem, p. 647), já no caso dos autos é manifesto que o Acórdão da Relação do Porto, se situa no plano do juízo concreto, estritamente vinculado à resolução de um problema jurídico emergente no âmbito da realidade concreta, aí se esgotando enquanto manifestação de poder jurisdicional, não se tratando, pois, de uma decisão que, abstraindo, na causa e nos efeitos, do mérito jurídico-concreto do caso particular, possa ser materialmente entendida como uma prescrição de índole legislativa, violadora, como tal, da competência da Assembleia da República.
12. No entendimento da decisão recorrida, a interpretação concretizada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto – que, “atendendo a que o nosso processo penal é um processo garantístico em que a defesa do arguido, deve e tem necessariamente de estar ao mesmo nível da respectiva acusação, não se compreende o facto de não ter sido dada a possibilidade ao ilustre mandatário da arguida de tomar posição sobre o requerimento do Ministério Público, em que se requer a imposição à arguida da medida coactiva de prisão preventiva”, ordenou
“revogar os despachos recorridos, que deverão ser substituídos por outro em que seja permitido ao ilustre mandatário da arguida tomar posição sobre a promoção do Ministério Público, em que este promove que a arguida seja sujeita à medida de prisão preventiva e só então a Mmª Juíza decidir em conformidade com os elementos constantes do processo” – “não tem acolhimento na Lei, a qual em lado nenhum impõe que o juiz de instrução, para decidir da medida coactiva a aplicar ao arguido, tenha de ouvir a versão do mandatário ou defensor do arguido, sobre a posição que o Mº Pº tiver tomado sobre a mesma” constitui a criação de um
“novo preceito legal, por via jurisprudencial” (assim violando o disposto nos artigos 161.º, alínea c) e 165.º, n.º 1, al. c) da Constituição).
Quanto a tal argumentação, importa mencionar que, no caso sub judicio, ao invés da “criação de uma norma legal”, o Tribunal da Relação do Porto limitou-se a apurar o sentido jurídico-normativo da norma legal em ordem à resolução do caso concreto. Não se está, assim, perante a criação de qualquer “lei”.
Na verdade, não só é hoje insustentável qualquer interdição legislativa que proíba os tribunais de interpretarem as leis, como devem ter-se por obsoletas as concepções que vêem na interpretação das normas legais um référé législatif forçosamente entregue ao legislador, impondo-se aos tribunais, na perspectiva positivista de um poder judicial “en quelque façon nulle”, que “ils s’adresseront au corps législatif toutes les fois qu’ils croiront nécessaire, soit d’intérpréter une loi, soit d’en faire une nouvelle” (A. Castanheira Neves, Interpretação…, op. cit., p. 339). A “interpretação-aplicação” de normas legais, no âmbito da racionalizada realização judicativo-decisória do direito, é, pois, tarefa que cabe aos tribunais no cumprimento da função jurisdicional de
“administrar a justiça”, sendo que tal actividade não contende, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, com a esfera de competência legislativa constitucionalmente reservada à Assembleia da República.
Pelo exposto, a consideração de que “a norma do artigo 194.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de permitir à defesa pronunciar-se sobre a promoção do Ministério Público relativamente ao pedido de prisão preventiva do arguido, viola o disposto nos artigos 161.º, alínea c) e
165.º, n.º 1, al. c), da Constituição da República Portuguesa”, revelando alguma incompreensão relativamente ao concreto exercício da função dos tribunais, deve ter-se por improcedente.
O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, ao exercer a sua competência jurisdicional, não criou qualquer preceito legal, seja este entendido, num sentido técnico-jurídico tradicional, como “acto normativo editado pelo Parlamento de acordo com o procedimento constitucionalmente prescrito” (sentido que, como afirma Gomes Canotilho – Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6ª edição, Coimbra, 2002, pág. 717 –, se encontra subjacente às referências constitucionais constantes dos artigos 161.º e 165.º da Lei Fundamental), seja num sentido material (de um preceito que atinja directamente os sujeitos da ordem jurídica geral com carácter e eficácia universais). Tal decisão, na verdade, está absolutamente vinculada ao caso concreto, não manifestando, assim, o exercício de qualquer poder normativo que, com força obrigatória geral, imponha, em abstracto, no seio da ordem jurídica, uma qualquer solução vinculativa pré-disposta a uma aplicação futura.
Nesta medida, concorde-se, ou não, com a interpretação realizada, não pode duvidar-se de que o Tribunal da Relação do Porto, decidindo judicativamente um problema jurídico concreto, exerceu o seu poder jurisdicional sem exceder as suas competências funcionais-materiais, sem, designadamente, “legislar” sobre matéria da competência da Assembleia da República. Como afirma Arndt (referido por A. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos…, cit., pág. 424), “o órgão jurisdicional não pode o que pode o órgão legislativo, a saber, a pré-decisão sobre as regras jurídicas, tal como o órgão legislativo não pode o que pode o
órgão jurisdicional, investigar a verdade de um caso concreto e considerar a sua realidade de vida para pessoas determinadas”, e, no caso sub judicio, não se está senão perante o exercício do poder jurisdicional manifestado ao nível da solução de um caso concreto e particular, insusceptível de confundir-se com qualquer criação de índole legislativa.
C. Decisão
13. Por tudo o exposto, o Tribunal decide:
a) Conceder total provimento ao recurso, e, em consequência, b) Revogar a decisão recorrida que deve ser alterada em face do presente juízo de constitucionalidade
Sem custas por não serem devidas.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Benjamim Rodrigues Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos