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Proc. nº 636/2003
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., após decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, em que foi condenado, pelo crime de dano previsto e punido pelo artigo
212º, nº 1, do Código Penal, na pena de oitenta dias de multa, à razão diária de novecentos escudos, requereu àquele Tribunal a prorrogação por dez dias do prazo de interposição de recurso da decisão, invocando o disposto no nº 6 do artigo
698º do Código de Processo Civil. Em 9 de Outubro de 2001, foi proferido despacho nos termos do qual se deferiu a prorrogação requerida “por aplicação analógica” do artigo 698º, nº 6, do Código de Processo Civil. O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 8 de Maio de 2002, rejeitou o recurso por entender que este era extemporâneo. Assim, disse o Tribunal da Relação de Coimbra:
[...] a concessão do requerido beneficio de prazo para interposição de recurso, e seu deferimento, não tem o menor apoio na letra, ou no espírito da lei, e é perfeitamente ilegal. O prazo da interposição de recurso em processo penal tem a sua regulamentação necessária e suficiente no artigo 411 n° 1 do Código de Processo Penal, não existindo lugar a qualquer diferenciação entre recurso restrito à matéria de direito e recurso relativo à matéria de facto. É, assim, desproporcionada a invocação de uma norma de processo civil para uma aplicação analógica numa situação que está devidamente regulada no Código de Processo Penal. Nessa conformidade, e porquanto o presente recurso foi interposto extemporaneamente, não se toma conhecimento do mesmo rejeitando-se o mesmo nos termos do artigo 420 do Código de Processo Penal.
[...].
2. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, suscitando a inconstitucionalidade dos artigos 411º, nº 1, 420º e 671º a 673º do Código de Processo Penal, por entender que tais normas violam o disposto no artigos 20º,
32º, nº 1, e 205º, nº 1, alínea b), da Constituição. Por despacho de 17 de Junho de 2002 (fls. 79), o Relator no Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional por entender que o acórdão recorrido não se pronunciava sobre qualquer questão de constitucionalidade, dizendo o seguinte:
O acórdão recorrido não se pronuncia sobre qualquer questão de constitucionalidade – 70 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional. A única questão em causa é tão só a de saber se o Tribunal superior está vinculado pela decisão do Tribunal recorrido a admitir o recurso ou se da conjugação dos artigos 414º e 420º do Código de Processo Penal, não resulta a imposição legal de rejeição quando o recurso for interposto fora de prazo. Nesta conformidade, nos termos do artigo 76º do diploma citado, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
(...)
Deduzida reclamação desse despacho ao abrigo do artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, foi a mesma considerada procedente por Acórdão de 21 de Maio de 2003, por se ter entendido que as normas cuja constitucionalidade fora suscitada tinham sido aplicadas pelo menos implicitamente no sentido questionado pelo reclamante e que não era exigível ao reclamante ter suscitado precisamente tal questão.
3. Admitido o recurso, após cumprimento do Acórdão do Tribunal Constitucional, foi determinado pela Relatora que se produzissem alegações. O recorrente concluiu as suas alegações do seguinte modo:
1. Nos presentes autos foi proferido despacho judicial através do qual foi concedido a requerida prorrogação de prazo de dez dias para interposição e motivação de recurso interposto de audiência de julgamento cuja prova tinha sido gravada.
2. Tal despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, ao abrigo do disposto nos artigos 698°, n° 6 do C. p. Civil, ex vi do artigo 4° do C.P.Penal, não foi impugnado por qualquer um dos sujeitos processuais, designadamente o Ministério Público.
3. O arguido somente interpôs e motivou o seu recurso após o terminus do prazo prorrogado por aquele despacho judicial.
4. O Tribunal ad quem (Tribunal da Relação de Coimbra) resolveu deliberar a rejeição do recurso interposto, não tomando dele conhecimento por o mesmo ter sido interposto extemporaneamente, nos termos dos artigos 411° e 420° do C. P. Penal.
5. Isto é, na douta interpretação daquele Tribunal, as normas em apreço, no entendimento que lhe foi dado, permitem, por um lado, afastar as decisões do Tribunal a quo, transitadas em julgado, e por outro, podem, de surpresa, e em contradição com o já pacificamente decidido e aceite, impedir o conhecimento do recurso do arguido.
6. Assim, tais normas do Código de Processo Penal, nessa interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no douto Acórdão recorrido são inconstitucionais, por violarem o disposto nos artigos 32° e 205° n° 2 da Constituição da República Portuguesa, devendo tal inconstitucionalidade ser declarada por esse Venerando Tribunal Constitucional.
7. Pois que tal interpretação viola, assim, os princípios da segurança processual, da certeza jurídica e da boa fé, consagrados naqueles artigos constitucionais.
8. A revogação e substituição do despacho que concedeu a prorrogação de prazo para interpor e motivar o recurso sobre prova gravada, por outro em sua total e completa contradição viola o direito de defesa do arguido consagrado no artigo
32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa.
9. É de se considerar, que a utilização do prazo para interpor e motivar o recurso é um elemento essencial no próprio direito de defesa.
10. Com a revogação daquele despacho judicial pelo Tribunal da Relação de Coimbra ficou o recorrente impedido de interpor o seu recurso, logo é-lhe negado o direito à defesa.
11. Assim, a interpretação dos artigos 411º e 420° do C. P. Penal e dos artigos
698°, n° 6, 671° a 673° do C. P. Civil (ex vi artº 4° do C. P. Penal), no sentido de que a deliberação de rejeição de um recurso por extemporaneidade do mesmo, apesar de tal extemporaneidade estar consubstanciada e admitida num despacho judicial transitado, não impugnado por nenhum dos sujeitos processuais e, por conseguinte, transitado em julgado viola os artigos 32° n° 1 e 205°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa.
Por sua vez, o Ministério Público contra-alegou propugnando a inconstitucionalidade das normas em crise, concluindo as suas contra-alegações nos seguintes termos:
1. É inconstitucional, por violação dos princípios das garantias de defesa e do processo equitativo, a interpretação normativa do artigo 411º do Código de Processo Penal que faculta ao Tribunal “ad quem” a apreciação oficiosa da tempestividade do recurso, quando esta decorre inteiramente da legalidade de uma prorrogação do prazo para recorrer, deferida precedentemente pelas instâncias, por decisão que não foi impugnada ou questionada por outro sujeito do processo.
2. Termos em que deverá proceder o presente recurso.
Tudo visto, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. A questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos consubstancia-se na eventual violação de princípios constitucionais relacionados com as garantias de defesa, a segurança jurídica e a confiança pelo critério normativo segundo o qual um tribunal superior, aferindo oficiosamente da tempestividade da interposição de um recurso em processo penal, ponha em causa decisões precedentes das instâncias quanto à prorrogação de prazos processuais, que não tenham sido objecto de qualquer impugnação. Com efeito, tendo sido prorrogado o prazo do arguido para recorrer da matéria de facto pela primeira instância, com base na aplicação subsidiária do artigo 698º, nº 6, do Código de Processo Civil, sem que tivesse havido qualquer impugnação, veio o Tribunal da Relação de Coimbra, oficiosamente, considerar intempestivo o recurso interposto pelo arguido dentro daquele prazo prorrogado. Está, assim, em causa, como ratio decidendi, ainda que implicitamente, o critério normativo derivado dos artigos 411º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, nos termos do qual o prazo consagrado em tais normas poderia ser estritamente aplicado por um tribunal superior, revogando um despacho judicial não impugnado que tenha concedido a prorrogação de tal prazo. Trata-se, pois, de um critério normativo relacionado com a força vinculativa emanada da regulamentação daqueles prazos processuais em circunstâncias concretas em que os mesmos prazos foram prorrogados pela primeira instância.
5. Não está em causa, no presente processo, nem a constitucionalidade dos concretos prazos processuais nem qualquer direito constitucionalmente tutelado à prorrogação dos mesmos. No recurso sub judicio, a única questão relevante é a da alteração de uma decisão de primeira instância quanto à prorrogação de prazos com fundamento no disposto em normas reguladoras de prazos, que não contemplam qualquer possibilidade de prorrogação. Ora, a interpretação dos artigos 411º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal que faz decorrer dos mesmos uma força vinculativa que ultrapassa a situação jurídico-processual resultante da não impugnação de decisão anterior que concedera a prorrogação do prazo põe manifestamente em causa a confiança jurídica que a estabilidade de uma decisão judicial não impugnada gera no arguido enquanto sujeito processual. Independentemente de se saber se a prorrogação dos prazos determinada pela decisão judicial de primeira instância corresponde a uma interpretação correcta do direito ordinário, ou mesmo se aquela decisão quanto a uma prorrogação de prazo deveria ter sido notificada a todos os sujeitos processuais, é claro que, uma vez produzidos os efeitos dessa decisão, eles não poderiam ser posteriormente destruídos, abalando as expectativas do arguido relativamente ao prazo de que disporia para recorrer alicerçadas numa decisão judicial não impugnada. O princípio do Estado de direito impõe uma vinculação do Estado em todas as suas manifestações, e portanto também dos tribunais, ao Direito criado ou determinado anteriormente, de modo definitivo. Assim, não é legítimo que uma decisão ao abrigo da qual se constitua um direito de intervenção processual, ainda que baseada numa eventual interpretação errónea do direito, mas não arbitrária ou ela mesma flagrantemente violadora de direitos (o que, de resto, aqui não se poderá analisar nem está em causa como problema de constitucionalidade), venha a ser destruída pondo em causa o prosseguimento com boa fé da actividade processual do arguido, nomeadamente o exercício normal do seu direito de defesa.
6. Em face das considerações anteriores, o Tribunal Constitucional entende que, no presente caso, a interpretação das normas em crise levada a cabo pelo Tribunal recorrido viola o artigo 2º em conjugação com o artigo 32º, nº 1, da Constituição.
III Decisão
7. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucionais os artigos 411º, nº 1, e 420º, nº 1, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual tais normas permitiriam a destruição dos efeitos anteriormente produzidos de uma decisão não impugnada da primeira instância quanto à prorrogação do prazo de recurso, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança e das garantias de defesa consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 32º, nº 1, da Constituição, concedendo provimento ao recurso e ordenando a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos