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Processo n.º 678/03
2.ª Secção Relator: Cons. Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
O hospital A., com sede no Porto, intentou, nos Juízos Cíveis da Comarca do Porto, acção de cobrança de dívida resultante da prestação de serviços de saúde (Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho) contra a Associação B., pedindo a sua condenação no pagamento da quantia despendida pelos serviços do autor por força do internamento, hospitalização e tratamento de um jogador da ré, vítima de um acidente desportivo ocorrido em Torres Novas.
Por despacho de 15 de Julho de 2003, foram esses Juízos declarados territorialmente incompetentes para apreciar a acção e competente o Tribunal de Torres Novas. Para tanto, foi recusada, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa (CRP), conforme já decidido no Acórdão n.º 58/03 do Tribunal Constitucional, a aplicação da norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, que estabelece que “As acções previstas no presente diploma devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora”; e, por outro lado, considerou-se que, tendo em conta a causa de pedir tal como configurada pelo autor, em que se invoca um acidente, estava em causa uma relação extracontratual entre as partes (responsabilidade extracontratual), dado que não foi alegada nenhuma relação contratual prévia, sendo assim aplicável o artigo 74.°, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual “Se a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco, o tribunal competente é o correspondente ao lugar onde o facto ocorreu”.
Desta decisão vem interposto recurso pelo Ministério Público, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, visando a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo
7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho.
Neste Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público apresentou alegações, concluindo:
“1.º - É às instâncias que cabe interpretar e fixar o objecto de uma acção, definindo e qualificando, nomeadamente, a respectiva causa petendi.
2.º - Tendo a decisão recorrida configurado certa acção como visando a efectivação da responsabilidade civil extracontratual - e considerando, consequentemente, tal causa subsumível à regra de competência afirmada pelo artigo 74.°, n.° 2, do Código de Processo Civil -, é inconstitucional organicamente a norma do artigo 7.° do Decreto-Lei n.° 218/99, de 15 de Junho, enquanto derroga inovatoriamente tal regra de competência para as acções fundadas na responsabilidade civil extracontratual, ao considerar como factor de conexão relevante, não o lugar onde ocorreu o facto causador do dano, mas a sede do estabelecimento hospitalar credor.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
Como se assinala nas alegações do Ministério Público, não compete a este Tribunal Constitucional apreciar a correcção do entendimento da decisão recorrida enquanto considerou que a cobrança de dívida emergente de assistência hospitalar prestada na sequência de um acidente desportivo respeita
à efectivação de responsabilidade civil extracontratual, desencadeadora da aplicação da norma do artigo 74.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), que determina que territorialmente competente para a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco é o tribunal correspondente ao lugar onde o facto ocorreu.
Aceites essas qualificações, a questão que se coloca é a de saber se a norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, enquanto conduz a uma inovatória derrogação dessa regra de competência territorial, é organicamente inconstitucional.
Trata-se de questão já várias vezes apreciada por este Tribunal Constitucional, e sempre decidida no sentido da inconstitucionalidade: cf. Acórdãos n.ºs 58/03 (Diário da República, II Série, n.º 92, de 19 de Abril de 2003, pág. 6024) e 233/03 e Decisões Sumárias n.ºs 221/03, 232/03, 233/03 e
247/03. Como se referiu no Acórdão n.º 58/03:
“6. (...) O Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, foi emitido ao abrigo do disposto no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, preceito que estabelece competir ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República. Ao fazer tal decreto-lei, o Governo não legislou, portanto, ao abrigo de qualquer autorização legislativa conferida pela Assembleia da República, mas no uso de competência que considerou concorrente. Tal já havia sucedido, aliás, aquando da emissão do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, entretanto revogado pelo diploma ora em apreço (cf. artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho), que também regulava a cobrança de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde.
Ora, no presente recurso, coloca-se precisamente o problema de saber se o Governo, ao legislar sobre a competência territorial para as acções previstas no Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho – decretando a citada norma do artigo 7.º deste diploma –, carecia de autorização da Assembleia da República, atento o disposto na primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição.
É que este preceito constitucional consagra uma reserva relativa de competência legislativa à Assembleia da República nas matérias que dizem respeito à competência dos tribunais, entre as quais se insere naturalmente a repartição da competência na ordem interna.
7. A resposta à questão da eventual violação do preceito da primeira parte da alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso implica a análise do carácter inovatório desta mesma norma face à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos.
Tal carácter inovatório corresponde ao critério de aferição da conformidade constitucional seguido no Acórdão deste Tribunal n.º 376/96, de 6 de Março (publicado no Diário da República, II Série, n.º 160, de 12 de Julho de
1996, p. 9416), no qual se observou o seguinte, a propósito da norma do artigo
10.º do (revogado) Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro, relativa ao foro competente para a execução:
«(...) se bem se atentar, tal norma, comparativamente com aqueloutra constante do artigo 94.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e tendo por referência o disposto no artigo 774.º do Código Civil, não veio estabelecer, de per si, uma regra diferente no tocante à competência territorial do tribunal caso o credor esteja munido de um qualquer título dotado de força executiva que não o decorrente de sentença judicial. (...)»
8. No caso da norma que constitui o objecto do presente recurso, considerou o tribunal recorrido que ela inova relativamente à norma que, na sua falta, se aplicaria à acção intentada pelo ora recorrido: a norma do artigo
74.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (reguladora da competência territorial para a acção destinada a efectivar a responsabilidade civil baseada em facto ilícito ou fundada no risco). E inova, porque a norma que constitui o objecto do presente recurso estabelece como territorialmente competente o tribunal da sede da entidade credora e a norma do artigo 74.º, n.º 2, do Código de Processo Civil estabelece como territorialmente competente o tribunal do lugar onde o facto ocorreu.
Sustenta o representante do Ministério Público neste Tribunal
(supra, 6.) que para dirimir a questão de constitucionalidade ora em apreço seria essencial tomar posição sobre a natureza da acção proposta e identificar a respectiva causa de pedir, atendendo a que, caso ela se enquadrasse na previsão do artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (preceito que regula a competência territorial para as acções destinadas a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento), nenhuma inovação substancial, relativamente a tal preceito, representaria a norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, impondo-se, consequentemente, a conclusão da não inconstitucionalidade desta norma.
Todavia, afigura-se que, independentemente da posição que se adopte acerca da precisa natureza da acção dos autos e dos concretos elementos constitutivos da respectiva causa de pedir, a circunstância de se tratar de uma acção destinada a exigir o pagamento de uma indemnização por serviços prestados a uma vítima de acidente de viação, sem que entre o autor e o réu tivesse sido previamente celebrado qualquer contrato e sem que o réu se tivesse, de algum modo, obrigado em virtude de negócio jurídico (supra, 1.), sempre redundaria na impossibilidade de aplicação do disposto no artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dado que este preceito tem em vista a responsabilidade contratual ou, eventualmente, a responsabilidade emergente de negócio jurídico em sentido amplo.
Portanto, se a norma que constitui o objecto do presente recurso não estivesse em vigor, ao intérprete apenas restaria a opção entre o critério estabelecido no já mencionado artigo 74.º, n.º 2, do Código de Processo Civil
(lugar onde o facto ocorreu) – que foi aquele que na decisão recorrida se considerou potencialmente aplicável – e, caso se considerasse que a responsabilidade do réu dos presentes autos não deriva de facto ilícito nem se funda no risco, o critério geral consagrado no artigo 85.º, n.º 1, do mesmo Código (domicílio do réu).
Ora, optando-se por um ou por outro destes critérios, a solução seria sempre diversa daquela a que se chega pela aplicação do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, pois que este preceito estabelece como critério de aferição da competência em razão do território o da sede da entidade credora.
Conclui-se, assim, que este preceito inova relativamente à norma do Código de Processo Civil que seria potencialmente aplicável na determinação do foro territorialmente competente para a acção de que emergiram os presentes autos, pelo que infringe o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição.”
É orientação que ora se reitera.
3. Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo
165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, que estabelece que as acções previstas nesse diploma devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora, quando aplicável a causas para as quais, por respeitarem, no entendimento da decisão recorrida, à efectivação de responsabilidade civil extracontratual, era territorialmente competente, nos termos do artigo 74.°, n.º 2, do Código de Processo Civil, o tribunal correspondente ao lugar onde o facto ocorreu; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Benjamim Silva Rodrigues
Maria Fernanda Palma
Rui Manuel Moura Ramos