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Processo n.º 805/02
2ª Secção Relator – Cons. Paulo Mota Pinto
(Cons. Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. e B. recorrem para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Organização, Funcionamento e Processo no Tribunal Constitucional), na sua redacção actual (doravante designada apenas como Lei do Tribunal Constitucional), do despacho do Tribunal Judicial de Guimarães que os pronunciou como autores de um crime, na forma continuada, que era previsto e punido pelo artigo 27º-B do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º
20-A/90, de 15 de Janeiro (hoje previsto e punido pelo artigo 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho). Admitido o recurso com efeito devolutivo por despacho (fls. 302 dos autos), os recorrentes foram convidados, por despacho do Relator no Tribunal Constitucional, a indicar os elementos exigidos pelo artigo 75º-A, n.ºs 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional, nomeadamente, a efectuarem a “identificação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie [e] que tenha sido aplicada na decisão recorrida”. Os recorrentes responderam esclarecendo:
“I – Normas aplicadas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie: Artigos 43º e 44º, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro. II – Normas ou princípios constitucionais que se consideram violados: Artigos 32º, n.ºs 4 e 5, 114º e 219º, todos da Constituição da República Portuguesa. III – Peça processual em que o recorrente invocou a inconstitucionalidade Requerimento de abertura de instrução em processo penal.”
2.Foi então ordenada a produção de alegações, nas quais os recorrentes, para além de suscitarem a questão prévia do efeito do recurso, sustentaram a inconstitucionalidade dos artigos 43º e 44º do RJIFNA, concluindo:
«1ª – Nos termos do n.º 2 do artigo 78º da LTC, “o recurso interposto de decisão da qual coubesse recurso ordinário, não interposto ou declarado extinto, tem os efeitos e o regime de subida deste recurso”.
2ª – Os arguidos recorrentes renunciaram ao recurso ordinário que cabia da decisão instrutória, pelo que o presente recurso terá o efeito que caberia
àquele recurso ordinário caso tivesse sido interposto.
3ª – Nos termos do artigo 408º, n.º 1, al. b), do CPP, cabe recurso com efeito suspensivo da decisão que pronunciar o arguido, sem prejuízo do disposto no artigo 310º do CPP.
4ª – O regime de irrecorribilidade da decisão instrutória aludida no artigo 310º do CPP não se estende à decisão de questões prévias ou incidentais a que se refere o artigo 308º, n.º 3, do mesmo Código, pelo que o recurso dessa decisão tem efeito suspensivo conforme expressamente determina o artigo 408º, n.º 1, al. b), do CPP.
5ª – Embora a prática de actos de inquérito derive de uma competência delegada
“presumida” - artigo 43º, n.º 2, do RJIFNA - certo é que a competência para iniciar o processo é própria do Ofendido - artigo 43º, n.º 1 - o que viola clamorosamente o artigo 48º do Código de Processo Penal nos termos do qual o dever de promover a acção penal é exclusivo do Ministério Público.
6ª – O artigo 48º do CPP tem valor constitucional na medida em que constitui emanação do postulado fundamental de que o M.º P.º é um órgão do Estado e da Justiça - artigo 219.º da Constituição da República Portuguesa -, actuando num quadro constitucional e funcional a que são inerentes os princípios da legalidade, objectividade e imparcialidade, estranhos à Administração Fiscal.
7ª – Assim, aqueles artigos 43º e 44º do RJIFNA são materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 32º, n.os 4 e 5, e 219º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.» O Ministério Público contra-alegou defendendo o não provimento do recurso, com as seguintes conclusões:
“1 – As normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA em nada colidem com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo criminal, nos termos do artigo 268º do Código de Processo Penal, nem com a direcção efectiva do inquérito, que detém, deixando intocáveis quer as suas funções como titular do exercício da acção penal, quer o seu estatuto de autonomia, em conformidade com o artigo 219º da Constituição.
2 – Também não contendem com as garantias de defesa asseguradas pelo processo penal, nem com o princípio da separação dos poderes.”
3.Corridos os vistos, foram os autos novamente conclusos ao Relator, por ordem verbal, tendo este proferido despacho (fls. 63 a 65 dos autos) a “corrigir o efeito atribuído ao recurso, passando o mesmo a ter efeito suspensivo”, com fundamento nos artigos 78º, n.º 4, e 78º-B da Lei do Tribunal Constitucional, e a suscitar uma questão prévia que poderia obstar ao conhecimento do recurso, convidando os recorrentes a pronunciar-se sobre ela, tendo em conta os fundamentos da decisão recorrida e a circunstância de que “as normas cuja conformidade constitucional questionam – as normas dos artigos 43º e 44º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras (RJIFNA) – não estabelecem
‘nenhuma competência exclusiva da administração fiscal e da segurança social para a investigação dos crimes fiscais, nada colidindo com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo criminal’ proclamada no artigo 48º do CPP, ‘nem com a direcção efectiva do inquérito, pois deixam intocáveis quer as suas funções como titular da acção penal, quer o seu estatuto de autonomia’ ”
(remetendo para “os casos paralelos constantes dos Acórdãos deste Tribunal Constitucional n.ºs 256/2003 […] 490/2002 e 609/2002”). Os recorrentes não responderam (vindo apenas requerer uma certidão do despacho que corrigira o efeito do recurso). Pronto novamente o processo para julgamento, verificou-se mudança de relator, cumprindo agora elaborar a respectiva decisão. II. Fundamentos A) Questão prévia
4.Importa começar por analisar a questão prévia relativa ao não conhecimento do recurso, por as normas impugnadas não terem constituído ratio decidendi para o tribunal recorrido. Na resposta ao convite para aperfeiçoamento do seu requerimento de recurso, os recorrentes indicaram como “Normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie” os “artigos 43º e 44º, ambos do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro. O objecto do presente recurso de constitucionalidade é, pois, a apreciação da conformidade com a Constituição das normas destes artigos 43º e 44º, tendo sido, aliás, em relação a tal objecto, definido pelos recorrentes na sequência do convite previsto no artigo 75º-A, n.ºs 5 e 6, da Lei do Tribunal Constitucional, que foram produzidas as alegações, na sequência de despacho do Relator nesse sentido. O artigo 43º do RJIFNA dispõe:
“1 – Face ao conhecimento de factos que indiciem a presumível prática de um crime fiscal, o agente da administração fiscal competente inicia um processo de averiguações tendente a determinar os elementos constitutivos do crime e as circunstâncias da sua averiguação.
2 – Ao agente da administração cabem, durante o processo de averiguações, os poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos de polícia criminal, presumindo-se-lhe delegada a prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos.
3 – O processo de averiguações tem de estar concluído no prazo máximo de seis meses contados da data em que foi adquirida a notícia do crime ou praticado qualquer acto de averiguações.
4 – No caso de ser intentado processo fiscal gracioso ou contencioso em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos praticados, não será encerrado o processo de averiguações enquanto não for praticado acto definitivo ou proferida decisão final sobre a referida situação tributária, suspendendo-se, entretanto, o prazo a que se refere o número anterior.” Por seu lado, o artigo 44º do RJIFNA reza assim:
“1 – É competente para a realização do processo de averiguações o director distrital de finanças que exercer funções na área em que o crime tiver sido cometido ou o funcionário em quem aquele tenha, para tal fim, delegado genericamente competência.
2 – É correspondentemente aplicável o disposto nos art.os 264.º, n.º 2, e 266.º do Código de Processo Penal.
3 – Independentemente do disposto nos números anteriores, qualquer agente da administração fiscal procede, em caso de urgência ou de perigo na demora, a actos de averiguações, nomeadamente de aquisição e conservação de meios de prova”. Ora, o despacho recorrido pronunciou-se sobre a alegada nulidade do inquérito devido à alegada inconstitucionalidade destas normas (e também sobre o artigo
51º-A do RJIFNA, que os recorrentes não incluíram no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional), concluindo em sentido negativo em relação a estes pontos, com a seguinte fundamentação:
«(…) No que diz respeito à alegada nulidade do inquérito e inconstitucionalidade dos arts. 43º, 44º e 51º-A do RJIFNA, não concordamos com a posição dos arguidos. Com efeito, o facto de haver um processo de averiguações conduzido pelo Núcleo de Averiguações de Ilícitos Criminais, integrado nos serviços do CRSS, de acordo com o disposto pelos art.os 43º, 44º e 51º-A do RJIFNA, não pode levar a que estas normas sejam interpretadas no sentido da “administrativização” da fase do inquérito, decorrente da autonomização do chamado processo de averiguações e sua subtracção aos poderes de controlo e fiscalização do M.º P.º (neste sentido, Augusto da Silva Dias, autor que aqui seguimos de muito perto, “Crimes e Contravenções Fiscais”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. II, p. 473). Aquilo que resulta das normas em apreço é uma maior autonomia da investigação por parte da Administração Fiscal e Segurança Social, que dão início e procedem às competentes averiguações sem necessidade de para tal solicitar a par e passo a autorização do M. P., o que é justificado pelo carácter técnico das matérias em causa, nunca se chegando, no entanto, ao ponto de impedir o M. P. de exercer as suas competências de direcção do inquérito, sempre que o julgar oportuno. A delegação presumida resultante do artigo 43º, n.º 2, do RJIFNA não deixa de ser isso mesmo: autorização para o exercício de um poder, susceptível de ser avocado a todo o momento; “o processo de averiguações implica a realização de actos de inquérito, os quais, apesar da delegação concreta do M. P. à Administração Fiscal, por razões de eficácia e operacionalidade, integram uma fase processual penal que, na sua concepção, está submetida aos poderes de direcção daquele órgão de administração da justiça e que, por isso, não é meramente administrativa. Desta forma não se está a diminuir os direitos e garantias dos contribuintes, mas antes a reforçá-los”
(obra e autor citados, pp. 475 e ss., sendo as considerações reproduzidas aplicáveis ao caso dos autos com as devidas adaptações, por estar em causa a Seg. Social). Aliás, esta leitura é confirmada, desde logo, pelo preâmbulo do DL. n.º 20-A/90, onde se pode ler que a atribuição aos actos levados a cabo pela Administração Fiscal da autoridade que detêm os que são praticados sob a potestas do M. P.
“não significa que se subtraia ao Ministério Público a direcção do inquérito ou que se limitem quaisquer competências e atribuições que lhe estão cometidas no
âmbito penal. O que se pretende é apenas que os actos praticados no âmbito do processo de averiguações não sejam meros actos vazios de eficácia e inócuos de resultado” (mais uma vez, deve aplicar-se este entendimento com as devidas adaptações, por estar em causa a Seg. Social). Face ao exposto, conclui-se pela inexistência da alegada nulidade do inquérito, não se entendendo que os arts. 43º, 44º e 51º-A do RJIFNA estejam feridos de qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do disposto pelos arts. 32º, n.ºs 4 e 5, 114º e 221º da Constituição”. Importa notar que, no presente caso, os recorrentes imputam a inconstitucionalidade às normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA em si mesmas, sem enunciarem ou especificarem um seu segmento ou dimensão interpretativa. E, como se disse, relativamente aos requisitos para se poder tomar conhecimento do recurso, no Acórdão n.º 269/94 (DR, II série, de 18 de Junho de 1994):
“(...) Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e perceptível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido.” Assim, se o recorrente entende que um preceito não é inconstitucional “em si mesmo”, mas apenas num segmento ou numa sua determinada dimensão ou interpretação normativa, tem o ónus de identificar devidamente tal questão, através da indicação do segmento ou da enunciação da dimensão ou sentido normativo reputados inconstitucionais. Como se disse no Acórdão n.º 367/94 (DR, II Série, de 7 de Setembro de 1994):
“Ao suscitar-se a questão de inconstitucionalidade, pode questionar-se todo um preceito legal, apenas parte dele ou tão-só uma interpretação que do mesmo se faça.
(...) esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado por, desse modo, violar a Constituição.” Ora, como se disse, no presente caso, os recorrentes, no requerimento de recurso
(devidamente aperfeiçoado na sequência de convite do Relator nesse sentido) imputaram a inconstitucionalidade às normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA em si mesmas, sem enunciarem, individualizarem ou, sequer, referirem apenas um seu determinado entendimento ou interpretação – embora tendo invocado logo no requerimento de abertura de instrução, como fundamento do seu pedido, a violação da norma que atribui ao Ministério Público o “dever e o poder de promover a acção penal” (cfr., diversamente, a situação do acórdão n.º 256/2003, em que tais normas apenas eram impugnadas “na medida em que estabelecem uma competência exclusiva da Administração Fiscal e da Segurança Social para a investigação preparatória dos crimes fiscais, afastando o Ministério Público em clara violação do disposto no artigo 48º do Código de Processo Penal”; e cfr. ainda os Acórdãos n.ºs 490/2002 e 609/2002, também referidos no despacho em que foi suscitada a questão prévia de não conhecimento do recurso, que não versaram sobre as normas ora em questão). Na sequência desse requerimento, foram produzidas alegações sobre a constitucionalidade desses artigos 43º e 44º, sem qualquer delimitação do objecto do recurso. E a decisão recorrida havia apreciado, como se viu, a conformidade constitucional das normas dos artigos 43º e 44º do RJIFNA, e aplicou estas normas, para concluir pela inexistência de nulidade no inquérito devido à sua alegada inconstitucionalidade. Conclui-se, pois, que está preenchido o pressuposto do recurso consistente na aplicação da norma impugnada como ratio decidendi pelo tribunal a quo. B) Questão de constitucionalidade
5.Os recorrentes sustentam a inconstitucionalidade dos artigos 43º e 44º do RJIFNA, por eles violarem as normas dos artigos 32º, n.os 4 e 5, 114º (terão querido dizer 111º) e 219º da Lei Fundamental. Ora, mesmo para quem entenda que, segundo a Constituição da República, o exercício da acção penal é um poder detido em exclusivo pelo Ministério Público
– questão que pode deixar-se em aberto (cfr., ainda assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 830, que encaram essa exclusividade como sendo “problemática”; por outro lado, foi já outra também a solução no domínio das transgressões fiscais antes da entrada em vigor do RJIFNA, admitindo-se que as funções do Ministério Público continuavam a ser desempenhadas pelo Representante da Fazenda Pública; já Anabela Miranda Rodrigues, “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, págs. 68, perfilha posição contrária, defendendo a exclusividade do poder do Ministério Público) –
é certo que as normas em causa não são de julgar inconstitucionais. Com efeito, os recorrentes concluem pela inconstitucionalidade dos artigos 43º e
44º do RJIFNA pelas circunstâncias: de a instauração do processo de averiguações caber directamente à administração fiscal ou da segurança social, apelidando-a de uma competência própria (a ponto de, segundo o n.º 3 do artº 42º do RJIFNA, qualquer autoridade judiciária ter de transmitir ao agente da administração fiscal competente os elementos de que disponha e que indiciem a presumível prática de crime fiscal, conhecidos no decurso de um processo por crime não fiscal); de ser competente para a realização desse processo a entidade indicada no artigo 44º, ou seja, o director distrital de finanças; de essa administração não orientar a sua actividade por princípios de objectividade e de imparcialidade; e de, finalmente, não terem sequer que dar conhecimento ao Ministério Público da instauração do processo de averiguações. Ora, e desde logo, o dever da administração fiscal competente para proceder às averiguações de comunicar a instauração do respectivo processo ao Ministério Público decorre directamente do disposto no artigo 248º do CPP, que assim dispõe:
“ 1 – Os órgãos de polícia criminal que tiverem notícia de um crime por conhecimento próprio ou mediante denúncia, transmitem-na ao Ministério Público no mais curto prazo.
2 - Em caso de urgência, a transmissão a que se refere o número anterior pode ser feita por qualquer meio de comunicação para o efeito disponível. A comunicação oral deve, porém, ser seguida de comunicação escrita”. Este preceito é aplicável à administração fiscal por força do estipulado no artigo 41º do RJIFNA, onde se dispõe que “ao processamento dos crimes fiscais são aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal e da legislação complementar, salvo quando as disposições processuais das leis fiscais dispuserem de forma diferente” (pois, na verdade, nenhuma destas disposições prescreve em sentido diferente). Por outro lado, o agente da administração que procede às averiguações relativas ao crime fiscal detém o estatuto de órgão de polícia criminal, nos termos do transcrito artigo 43º, n.º 2, do RJIFNA. Nesta medida, está colocado na posição do órgão de polícia criminal a que se refere o artigo 248º do Código de Processo Penal. Nesta lógica não se pode entender a iniciativa da administração fiscal de instaurar o processo de averiguações sem a existência de uma prévia autorização do Ministério Público, como uma verdadeira competência “própria” (na acepção dada pelos recorrentes), ou desligada da titularidade do Ministério Público quanto ao exercício da acção penal e quanto à possibilidade de direcção do inquérito. O artigo 263º, n.º 1, do CPP confia a direcção do inquérito ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal. E o que é certo é que nenhum dos preceitos do RJIFNA retira esse poder de direcção ao Ministério Público. Ao invés, o referido n.º 2 do artigo 43º do RJIFNA põe antes o agente competente da administração (a que o artigo 44º se refere) na veste de órgão de polícia criminal, ao prescrever que lhe cabem os “poderes e as funções que o Código de Processo Penal atribui” a tais órgãos. E, tendo em conta a especial preparação técnica desses agentes da administração no domínio material em causa, o preceito vai ainda mais longe e presume-lhes delegada a “prática de actos que o Ministério Público pode atribuir àqueles órgãos”. Assim sendo, pode ver-se a instauração do processo de averiguações fiscais por parte da respectiva entidade administrativa competente enquanto um acto praticado a coberto da legitimidade do Ministério Público. Ao que acresce que é ao Ministério Público que cabe apreciar a consistência indiciária dos elementos de prova recolhidos e enveredar pela acusação ou pelo arquivamento, consoante considere terem ou não “sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” (artigo 47º do RJIFNA), podendo, como é evidente, optar, antes de se pronunciar num desses dois sentidos, por efectuar ou mandar efectuar pelos órgãos de polícia criminal quaisquer diligências que se lhe afigurem úteis à descoberta da verdade, ao abrigo do seu poder de direcção do inquérito e de titular da acção penal. Não pode, pois, dizer-se que as normas impugnadas prevejam (ou que tenham sido aplicadas com o sentido de preverem) qualquer competência exclusiva da administração fiscal e da segurança social para a investigação dos crimes fiscais, não colidindo, pois, com a legitimidade do Ministério Público para promover o processo criminal, nem com a direcção efectiva do inquérito, e antes deixando intocadas as suas funções como titular da acção penal. Não valem, também, os argumentos que os recorrentes desferem, de falta de objectividade e de imparcialidade na direcção do processo de averiguações. Esses valores são acolhidos como densificações estabelecidas no plano da lei ordinária
(cfr. artigo 2º, n.º 2, do Estatuto do Ministério Público - Lei n.º 143/99, de
31 de Agosto) do princípio constitucional da “autonomia nos termos da lei” a que se refere o artigo 219º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, mas, agindo os órgãos da administração fiscal como órgãos de polícia criminal, eles
“actuam, no processo, sob a orientação das autoridades judiciárias e na sua dependência funcional” (artigo 56º do Código de Processo Penal). Comungam, pois, dos mesmos deveres do Ministério Público, não se vendo que ocorra qualquer violação do artigo 219º da Constituição.
6.O mesmo se deve dizer relativamente ao artigo 111º da Constituição, onde se prevê o dever de os órgãos de soberania (entre os quais se não conta o Ministério Público enquanto tal – cfr. o artigo 110º, n.º 1, da Constituição) observarem a separação estabelecida na Constituição. Aliás, os recorrentes não concretizam que parâmetros normativos deste preceito saem violados, sendo a sua alegação por demais genérica para ter idoneidade para dar a conhecer as razões pelas quais o preceito constitucional se poderia ter por violado pelas normas em causa. O único ponto que se vislumbra como podendo abarcar a questão é a imputação feita pelos recorrentes de a administração agir a um tempo como “ofendida” e a outro tempo como “órgão de polícia criminal”. Mas mesmo entendida assim a alegação dos recorrentes, sempre lhes faltará a razão. É que não poderá olhar-se para a administração fiscal como sendo a titular do interesse ofendido: ofendido
é o Estado enquanto titular directo dos bens jurídicos violados pelo crime. A administração fiscal é apenas um serviço da administração directa do Estado a quem estão cometidas certas atribuições - a principal das quais consiste na arrecadação das receitas tributárias - e a prossecução de certos interesses, cuja ofensa é elevada, em alguns casos, a razão de ser dos tipos penais fiscais. E anote-se, aliás, que a lógica dos recorrentes conduziria ad absurdum também a que o Ministério Público não pudesse exercer a acção penal, pois que nos termos da Constituição também ele representa o Estado (artigo 219º). Não procede, pois, a alegação da violação do artigo 111º da Constituição.
7.E o mesmo se conclui quanto à inconstitucionalidade que é imputada aos mesmos artigos 43º e 44º do RJIFNA, por violação dos n.ºs 4 e 5 do artigo 32º da Constituição. Este n.º 4 dispõe que “toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais”. Sobre este preceito, deve, porém, recordar-se que a sua compatibilidade com a condução do inquérito penal por órgãos de polícia criminal, sob a direcção do Ministério Público, com uma fase de instrução de natureza facultativa, nos termos previstos no Código de Processo Penal, foi já objecto de decisão deste Tribunal, logo em fiscalização preventiva deste diploma, pelo Acórdão n.º 7/87
(in DR, I série-A, de 9 de Fevereiro de 1987), que decidiu não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas desse diploma que atribuem a direcção do inquérito ao Ministério Público (veja-se o ponto 2.3 desse aresto). No presente caso há apenas que, em relação às normas em questão, remeter, quanto ao confronto com o artigo 32º, n.º 4, da Constituição, para tal fundamentação, recordando que o processo de averiguações em causa é, tal como o inquérito no processo penal, um momento que tanto pode desembocar na acusação como no arquivamento dos autos (cfr. artigo 47º do RJIFNA): enquanto o processo de averiguações tende a investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (cfr. artigos 262º do CPP e 43º e 47º do RJIFNA); a instrução visa “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (artigo
286º, n.º 1, do CPP). E recordando ainda que, como se viu, não se prevê nas normas em questão qualquer competência exclusiva da administração fiscal, que afaste, designadamente, a legitimidade do Ministério Público para promover a acção penal.
8.O n.º 5 do artigo 32º da Constituição consagra a regra de que o processo criminal assenta numa estrutura acusatória. Ora, não se vê em que é que a possibilidade de instauração do processo de averiguações sem prévia comunicação ao Ministério Público, mas apenas depois, bem como a realização dos actos que integram a fase das averiguações por parte da administração fiscal, agindo como órgão de polícia criminal em quem se presume delegada a prática dos actos que o Ministério Público pode atribuir
àqueles órgãos (artigo 43º, n.º 2, do RJIFNA) – entre eles se contando a possibilidade de constituir as pessoas investigadas como arguidas e de lhes fixar a medida de coacção do termo de identidade e residência (art.ºs 58º, 59º e
196º do CPP) -, contenda com tal estrutura acusatória, e, designadamente, com o direito do arguido de contraditar os actos instrutórios, ainda que praticados no processo de averiguações, visando destruir o valor indiciário da acusação (seja em sede de instrução, seja em sede de julgamento). O direito do arguido em nada sai afectado pelo simples facto de o processo de averiguações ter sido levado a cabo (no uso de uma competência não exclusiva) pela administração fiscal ou da Segurança Social, investidas na qualidade de
órgãos de polícia criminal, mantendo, porém, o Ministério Público todas as competências que, segundo o Código de Processo Penal, não pode delegar nestes
órgãos, e podendo, a qualquer momento, avocar o processo (cuja instauração lhe é comunicada) para, mesmo em relação àquelas competências que podia delegar (e que se presumem delegadas) conduzir directamente o processo.
9.Não se verificando, portanto, a violação, pelos artigos 43º e 44º do RJIFNA, de qualquer dos parâmetros constitucionais invocados pelos recorrentes, nem se descortinando quaisquer outros que devam ter-se por violados, há que negar provimento ao presente recurso. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucionais os artigos 43º e 44º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras; b) Por conseguinte, negar provimento ao recurso e condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça, por cada um.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2004 Paulo Mota Pinto
Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues (vencido quanto à decisão da questão prévia pelas razões constantes da declaração de voto anexa) Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da declaração de voto junta) Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 - Votei vencido quanto à questão prévia do não conhecimento do recurso.
Após uma posição inicial de conhecimento do recurso e de não provimento do mesmo com base nas razões de que o acórdão se faz inteiramente eco, e por isso a elas aderi, entendi que o mesmo carecia de objecto traduzido em normas consubstanciadas em sentidos normativos que houvessem sido determinados e aplicados, pela decisão recorrida, na dimensão normativa cuja constitucionalidade se pretendeu sindicar constitucionalmente. O que se mostra espelhado nos autos é que os recorrentes controvertem não a inconformidade com a Lei Fundamental do sentido normativo dos arts. 43º e 44º do RJIFNA talqualmente o mesmo foi determinado e aplicado pela decisão recorrida, mas de um outro sentido normativo que os mesmos defendem existir e que estaria incorporado nos mesmos artigos 43º e 44º do RJIFNA.
2 - Por aquela razão defendi que não se poderia tomar conhecimento do recurso. Aliás, em processo vindo do mesmo Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães respeitante a caso rigorosamente idêntico ao actual foi essa a posição tomada por este Tribunal - Acórdão n.º 59/03, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudência, para cuja fundamentação aqui se remete. Essa foi, de resto, também a solução tomada nos casos apreciados, quase semelhantes em tudo ao aqui decidido, nos Acórdãos n.º 165/03, disponível no mesmo site da Internet e n.º 256/03, publicado no Diário da República II Série, de 2 de Julho de 2003). Benjamim Rodrigues
Declaração de voto Votei vencida no presente Acórdão por entender que as normas em causa (os artigos 43º e 44º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, revogado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho), na dimensão em que prevêem que a instauração do processo de averiguações cabe directamente à Administração Fiscal ou à Segurança Social, violam o artigo 219º da Constituição que define a competência do Ministério Público como titular da acção penal. Resulta do artigo 219º da Constituição que o Ministério Público tem a específica competência para exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade. Tal competência compreende o poder de iniciativa relativo a todos os actos de inquérito conducentes a fundamentar o exercício da acção penal. Este poder de iniciativa relativamente ao inquérito é um elemento caracterizador da competência constitucional do Ministério Público, na medida em que exprime o poder de gerar as condições necessárias para um “exercício autónomo” da acção penal. Se o Ministério Público não puder, independentemente de quaisquer situações de delegação de competência propriamente dita (cf. artigo 271º, nº 4, do Código de Processo Penal), determinar, com exclusividade, que se instaure um inquérito, o seu poder-dever de posteriormente exercer a acção penal fica condicionado. Para além disso, é óbvio que não se compadeceria com o regime jurídico do processo de averiguações (artigos 43º, 44º, 45º, 46º e 47º) qualquer poder de avocar a iniciativa do inquérito ou de o Ministério Público subtrair os actos de inquérito a quem legalmente tem competência para os realizar, já que o dever de comunicar ao Ministério Público era contemporâneo do encerramento do processo de averiguações (artigo 45º). A analogia entre a delegação de competências por acto administrativo e esta figura legal é manifestamente infundada já que o artigo
43º determina directamente um poder dever da própria Administração Fiscal. A abertura do inquérito e os seus trâmites subsequentes correspondem a um poder de intervenção na liberdade e privacidade dos cidadãos que, na configuração constitucional que nos rege, é atribuída a um órgão defensor da legalidade democrática e, nessa qualidade, imparcial (artigo 209º da Constituição). Trata-se do modo específico como a Constituição portuguesa assimila a separação de poderes em matéria de processo penal e, por isso, concretiza uma lógica de Estado de direito democrático. A situação legal que foi sujeita ao controlo de constitucionalidade tem um significado qualitativamente diverso de uma delegação de competência por parte do Ministério Público nos órgãos de polícia criminal, pois referindo-se a atribuição de competência à Administração para a abertura do inquérito atribui-se a uma entidade sem um estatuto de imparcialidade específico, no eventual conflito do interesse público com o interesse particular, um poder de intervenção na esfera dos cidadãos que a Constituição não consente. A generalização do regime em crise levaria, na prática, a um esvaziamento das funções constitucionais do Ministério Público, remetendo-o para um papel fraco de poder de controlo a posteriori através, nomeadamente, do arquivamento ou do exercício de acção penal, nos termos do qual o poder específico de determinar uma compressão dos direitos à privacidade dos cidadãos através do inquérito passaria directamente, através da lei, para a Administração. O princípio que subjaz às normas em crise anunciava uma mudança de modelo no Processo Penal que operaria uma alteração da estrutura de separação de poderes entre o Estado Administração, o Assistente, o Ministério Público e o Arguido, sem o correspondente amparo constitucional, deixando as liberdades dos cidadãos sempre inevitavelmente comprimidas pelo inquérito, menos garantidas ou sem a garantia de um controlo estritamente fundado na defesa imparcial da legalidade democrática.
Maria Fernanda Palma