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Processo n.º 754/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª secção do Tribunal Constitucional,
I. Relatório
1.A. e marido, B., propuseram acção de reivindicação com processo sumário contra C. e marido, D., relativa a prédio urbano devidamente identificado nos autos. Por sentença de 28 de Agosto de 2002, o Tribunal Judicial da Comarca de Olhão da Restauração decidiu absolver os réus do pedido e condenar os demandantes no pagamento integral das custas. Pode ler-se nesta decisão:
“(…) O pedido dos Autores divide se em duas pretensões distintas:
- Exigência de entrega do imóvel por via de nulidade do acto que lhe subjaz.
- Exigência de indemnização por danos emergentes da não desocupação do imóvel. A procedência da segunda pretensão depende da procedência da primeira. Mas a primeira pretensão, tal como se apresenta, improcede. Vejamos, porém.
- Na verdade, os Autores invocam a nulidade formal do acto, por não haver sido vertido em escritura pública, tudo ao abrigo do artigo 7º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção vigente ao tempo do contrato
[Janeiro de 1999], e dos artigos 220º e 285º e seguintes do Código Civil.
- À data, porém, da instauração da acção, havia entrado já em vigor a nova redacção do referido artigo 7º, conferida pelo Decreto-Lei n.º 64-A/00, de 22 de Abril, segundo a qual ‘o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito’. Tão-somente. Aliás, o mesmo diploma revoga, do mesmo passo, as alíneas l) e m) do n.º. 2 do artigo 80º do Código do Notariado, que exigia precisamente a forma de escritura pública para os contratos de arrendamento para comércio, indústria ou profissão liberal, integrando-se claramente nesta categoria (para comércio e indústria) o contrato prometido celebrar.
- Logo, o contrato promessa dos autos tem valor de contrato de arrendamento. E isto, não por abusiva aplicação retroactiva da lei, mas precisamente pela razão contrária: a nova redacção visa não somente conferir mais agilidade à celebração de contratos daquele tipo, mas ainda, e também, tornar legais, válidos e regulares os contratos daquele mesmo tipo que ainda não estivessem reduzidos a escritura pública.
- É certo que, no plano puramente dogmático, poderá sempre colocar-se a questão dos contratos promessa que tenham sido queridos como tais, isto é, relativamente aos quais não tenha havido qualquer acto integrável no cumprimento do contrato prometido, ou seja, do contrato a celebrar, e então poderia dizer-se que não existia qualquer vínculo contratual, ou que este era de considerar extinto, por não ter sido celebrado o contrato, ainda que por escrito meramente particular, sem que houvesse de parte a parte qualquer acto de execução deste último.
- Sucede, porém, que no caso vertente o que viria a ser o contrato prometido foi de imediato posto em execução: houve (e há) ocupação e utilização do imóvel, houve pagamentos e, precisamente, os Autores reivindicam – e bem – a realização de pagamentos em falta. Isto para além de que o conteúdo a atribuir ao contrato prometido coincide claramente com o do contrato-promessa. Prevalece, pois, o princípio da conservação dos negócios jurídicos que, informando o mencionado Decreto-Lei n.º 64-A/00, de 22 de Abril, se mostra de há muito consagrado na lei portuguesa, maxime nos artigos 292º e 293º do Código Civil.
- Daí que tenhamos em presença, não uma situação jurídica assente num contrato nulo por falta de forma, mas antes um contrato de arrendamento para comércio e indústria lavrado em forma escrita, e por isso válido nos termos expostos.
- Chegados a este ponto, no entanto, quid juris? Será agora de aplicar o disposto no artigo 265°-A do Código de Processo Civil? Para tanto, haveria a acção de passar a acção de despejo, com todas as suas especificidades, com alteração do pedido e da causa de pedir fora dos limites que lhe são impostos pelos artigos 272° e 273° do Código de Processo Civil. Na realidade, teriam os Autores de propor uma acção inteiramente nova, com novos e apropriados trâmites nesta fase de decisão Estaríamos perante um recomeço, cujas vantagens não vislumbramos, quer no plano substancial, quer no plano processual.
- Por isso, e sem mais, improcederá a pretensão de declaração da nulidade do negócio com entrega do imóvel. Vejamos agora o pedido de indemnização.
(…)
- Cotejando o valor mensal das rendas não pagas (…) com o valor mensal das rendas que os Autores perceberiam (…) verifica-se que o valor que os Autores têm efectivamente a haver é superior (…) àquele que hipoteticamente poderiam receber. Isto é, tal como os próprios Autores colocam a questão, o mero cumprimento pelos Réus das obrigações decorrentes do contrato proporcionar-lhes-á um benefício superior àquele que, segundo sustentam e se provou, poderia ter-lhes advindo. Logo, não se verifica o prejuízo invocado pelos Autores, ou melhor, a provada susceptibilidade de obtenção dum valor menor não constitui prejuízo, porque o dano efectivamente causado pelos Réus consiste na falta de pagamento das rendas, que suplanta o prejuízo invocado e provado, e que os Autores não pediram Por tais razões, e pelas que já ficaram expostas, também o pedido de indemnização improcede na íntegra.”
2.Inconformados com esta decisão, os demandantes vieram então interpor o presente recurso de constitucionalidade, “nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º
70º e n.º 2 do art.º 75º-A da L[T]C”, para apreciação da “inconstitucionalidade da norma do art.º 7º do Dec.-Lei n.º 64-A/00, de 22 de Abril, com a interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida”, pois “tal interpretação viola o artigo 12º do Código Civil”, acrescentando ainda que “os recorrentes, não tiveram oportunidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade ‘durante o processo’ atendendo a que este se resumiu à petição inicial e sentença, apenas o tendo feito agora pela primeira vez, dado que a interpretação dada à norma na decisão recorrida – sentença – foi totalmente imprevisível, não podendo os recorrentes contar razoavelmente com a sua aplicação.” Concluso o processo ao relator no Tribunal Constitucional, foi proferido por este despacho-convite para os recorrentes “indicarem a norma ou interpretação normativa, devidamente enunciada, que pretendem ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, bem como a norma ou princípio constitucional que consideram violado.” Em cumprimento do ordenado, os recorrentes vieram dizer o seguinte:
“A norma em questão é a do art. 7º do Regime de Arrendamento Urbano, na redacção conferida pelo Decreto Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, que determina que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. A sentença extrai a conclusão de que a menor exigência em matéria de forma aproveita a todos os contratos nele previstos, mesmos os celebrados à luz do anterior regime, assim convalidando negócios que, de outro modo, seriam nulos.
(...) Fez-se uma errada interpretação do art.º 7º do Regime de Arrendamento Urbano, na redacção conferida pelo Dec.-Lei n.º 64-A/00, de 22 de Abril, violando-se assim o princípio da não retroactividade das leis constante no artigo 12º do Código Civil, que não tem natureza constitucional.
(...) A retroactividade é uma solução legislativa que necessita de se compatilibilizar com os valores constitucionais e nunca uma solução absolutamente disponível pelo legislador ordinário. As limitações constitucionais à retroactividade hão-de ser compreendidas a partir da prevalência, em certas situações, dos valores de segurança, da igualdade e da protecção dos direitos fundamentais relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivas (cf. Acórdãos n.ºs 5/84 e
86/84, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., págs. 239 e segs., e 4º vol., págs. 81 e segs., respectivamente). Todavia, onde não existirem especiais razões para afastar o conceito de retroactividade adoptado pelo Código Civil, ele será constitucionalmente adequado, por exprimir uma linguagem jurídica comum, tendencialmente válida em todos os sectores do ordenamento jurídico (no sentido de o art. 12º do Cód. Civil, embora não estando inserido na Constituição, funcionar como uma autêntica bitola profunda da ordem jurídica). Deste modo, são os princípios constitucionais da igualdade e da segurança que se consideram violados.”
3.Determinada a produção de alegações, os recorrentes vieram concluir as suas da seguinte forma:
“I – De acordo com o disposto no artigo 6º do D.L. preambular ao RAU, as regras constantes dos artigos 7º e 8º do RAU só se aplicam a contratos celebrados a partir de 15 de Novembro de 1990, data da sua entrada em vigor (cfr. artigo 2° do mesmo DL preambular). II – O art. 7º do RAU só se aplica para futuro. III – Na sua redacção originária, o art. 7º do RAU no seu n.º 2, al. b), exigia a celebração por escritura pública dos arrendamentos para comércio, indústria ou profissão liberal. IV – Esse artigo foi objecto de modificações, introduzidas pelo DL n.º
64-A/2000, de 22 de Abril, entrado em vigor em 1 de Maio de 2000, o qual veio dispensar os contratos de arrendamento aí previstos de celebração por escritura pública. V – O novo regime de forma só se aplica, todavia, a contratos celebrados a partir de 1 de Maio de 2000, de acordo com a regra geral vigente nesta matéria
(art. 12º, n.º 2, 1ª parte, do CC). VI – Carecendo, ao tempo em que foi feito – 1 de Janeiro de 1999 – o contrato de arrendamento comercial dos autos de escritura pública, a celebração do contrato sem essa formalidade importa a sua nulidade. VII – Na falta de norma legal em sentido diverso, parece-nos que não se poderá assacar ao DL n° 64 A/2000 o efeito de convalidar contratos, até então inválidos. VIII – E é esta solução que normalmente resulta do sistema do art. 12º CC. IX – O Mm.º Juiz ‘a quo’ ao decidir de forma diversa, ou seja, ao extrair a conclusão de que a menor exigência em matéria de forma aproveita a todos os contratos nele previstos, mesmos os celebrados à luz do anterior regime, assim convalidando negócios que, de outro modo, seriam nulos, fez uma errada interpretação do art. 7º do RAU, na redacção conferida pelo DL n.º 64-A/2000, de
22 de Abril, violando assim o principio da não retroactividade das leis constante no art. 12º do Código Civil. X – A sentença recorrida viola os princípios constitucionais da igualdade, da segurança e da protecção dos direitos fundamentais relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivas, pois que segundo o art. 18º, n.º 3, 2ª parte da CRP, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter carácter retroactivo, não podendo, portanto aplicar-se a situações ou actos passados mas antes e apenas aos verificados ou praticados após a sua entrada em vigor. XI – Cremos assim que o novo regime de forma constante do DL n.º 64-A/2000, de
22 de Abril, entrado em vigor em 1 de Maio de 2000, só se aplica a contratos celebrados a partir de 1 de Maio de 2000, razão pela qual se entende que fez a decisão recorrida a aplicação de normas (art.ºs 7º do RAU na versão originária e actual e art. 12º, n.º 2, 1ª parte, do CC) com uma interpretação que viola os princípios constitucionais da igualdade, segurança e da protecção dos direitos fundamentais relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivas Nestes termos, deve a norma constante no art. 7º do RAU ser julgada inconstitucional, quando interpretada e aplicada em termos de se admitir que a menor exigência em matéria de forma decorrente da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, aproveita a todos os contratos nele previstos, mesmos os celebrados à luz do anterior regime, assim convalidando negócios que, de outro modo, seriam nulos, com as legais consequências, fazendo-se assim JUSTIÇA.” Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentos
4.O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto – como resulta da resposta ao despacho de aperfeiçoamento do requerimento do recurso e do final das alegações dos recorrentes – a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º
64-A/2000, de 22 de Abril, na interpretação segundo a qual a menor exigência dela decorrente aproveita a contratos celebrados à luz do anterior regime. Na verdade, o artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano (na versão originária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) veio regular a exigência de forma legal para o contrato de arrendamento, dispondo:
“1 – O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 – Devem ser reduzidos a escritura pública: a) Os arrendamentos sujeitos a registo; b) Os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
3 – No caso do n.º. 1, a inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda e determina a aplicação do regime de renda condicionada, sem que daí possa resultar aumento de renda.
4 – No caso da alínea a) do n.º. 2, a falta de escritura pública ou de registo não impede que o contrato se considere validamente celebrado e plenamente eficaz pelo prazo máximo por que o poderia ser sem a exigência de escritura pública e de registo, desde que tenha sido observada a forma escrita.”
O Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, veio, porém, diminuir a exigência de forma para o contrato de arrendamento do tipo do que está em causa nos presentes autos – arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal –, mantendo o n.º 1 e revogando o n.º 2 desse artigo 7º. Deixou, pois, de ser necessária escritura pública para o contrato de arrendamento para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, passando a bastar o escrito particular. Foi justamente esta nova redacção do Regime do Arrendamento Urbano que serviu de ratio decidendi ao tribunal a quo, o qual entendeu que esta nova redacção “visa não somente conferir mais agilidade à celebração de contratos daquele tipo, mas ainda, e também, tornar legais, válidos e regulares os contratos daquele mesmo tipo que ainda não estivessem reduzidos a escritura pública”, como passo indispensável para concluir que não se estava em presença de “uma situação jurídica assente num contrato nulo por falta de forma, mas antes [de] um contrato de arrendamento para comércio e indústria lavrado em forma escrita, e por isso válido nos termos expostos”. A norma a apreciar foi, pois, sem dúvida, aplicada na decisão recorrida, tendo sido com fundamento nela que improcedeu a acção de reivindicação intentada pelos ora recorrentes.
5.Sendo o presente recurso intentado ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para se poder conhecer de tal recurso torna-se, porém, necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e de que a norma impugnada tenha sido aplicada como ratio decidendi pelo tribunal recorrido, que a inconstitucionalidade desta tenha sido suscitada durante o processo. Os recorrentes reconhecem que não efectuaram esta suscitação perante o tribunal recorrido – entendido este requisito no sentido (não formal, mas funcional) com que a jurisprudência deste Tribunal o determinou. Ou seja, num sentido tal que, como se lê no Acórdão n.º 352/94 (Diário da República [DR], II série, de 6 de Setembro de 1994), a suscitação da inconstitucionalidade “haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”, isto é, “antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que
(a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita” (cfr., ainda, entre tantos outros, os Acórdãos n.ºs 94/88 e 90/85, publicados no DR, II Série, respectivamente de 22 de Agosto de 1988 e de 11 de Julho de 1985). Todavia, como este Tribunal também tem salientado (assim, por exemplo, do citado Acórdão n.º 352/94), esta orientação sofre restrições “em situações excepcionais, anómalas, nas quais o interessado não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão final”. É o que acontece também quando, pela natureza insólita ou surpreendente da interpretação (ou da aplicação) da norma em causa efectuada pela decisão recorrida, não era exigível ao recorrente que contasse com ela. É o que os recorrentes invocam no presente caso, dizendo que “não tiveram oportunidade de suscitar a questão da inconstitucionalidade ‘durante o processo’ atendendo a que este se resumiu à petição inicial e sentença, apenas o tendo feito agora pela primeira vez, dado que a interpretação dada à norma na decisão recorrida – sentença – foi totalmente imprevisível, não podendo os recorrentes contar razoavelmente com a sua aplicação.” Efectivamente, o que se discute nos presentes autos é a questão de saber se a redacção do artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano, introduzida em 2000, provocou uma revalidação formal dos contratos anteriores, apesar de no Decreto-Lei n.º 64-A/2000 não existirem disposições transitórias especiais, quanto a esses contratos. Ora, não pode deixar de considerar-se ser orientação doutrinal e jurisprudencial firmada a de que se não admite tal revalidação formal dos negócios jurídicos, solução que parece resultar da fórmula geral do art. 12º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil e corresponde também a uma aplicação da chamada regra catoniana
(quod ab initio vitiosum este, non potest tractu temporis convalescere). Afastando a revalidação formal dos negócios, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Novembro de 1973 (in Boletim do Ministério da Justiça [BMJ], n.° 231, pág. 155, onde se cita outra jurisprudência), de 24 de Março de 1992 e (com referência especificamente ao caso da aplicação do Decreto-Lei n.º 64-A/2000 no tempo) de 21 de Novembro de 2000 (proc. n.º
3122/00), 22 de Maio de 2003 (proc. n.º 6381/02), bem como o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Abril de 2003 (proc. n.º 36532), estes últimos disponíveis em www.dgsi.pt). Na doutrina, cfr. a Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 69º, págs. 291-3, Manuel de Andrade, Teoria geral da relação jurídica, vol. II, Coimbra, 1960, págs. 424-5, Rui de Alarcão, Invalidade dos negócios jurídicos. Anteprojecto para o novo Código Civil, BMJ, n.º 89, Lisboa,
1959, separata, nota 44, João Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, págs. 71 e segs., e Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 3ª ed., Coimbra, 1985, pág. 615) A solução segundo a qual se, na data em que foi celebrado um contrato, era necessária a escritura pública, e o contrato foi celebrado apenas por escrito, se aplica à validade formal do negócio a lei antiga, mantendo-se a nulidade é, por outro lado, como se referiu, a que resulta das regras gerais de aplicação da lei no tempo, consagradas no Código Civil, designadamente do artigo 12º, n.º 2,
1ª parte, segundo o qual “Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos”. Em princípio, portanto, o vício formal de que enfermava o acto constitutivo segundo a lei antiga não é sanado pela entrada em vigor de lei nova, ainda que esta dispense a forma prescrita pela lei antiga (assim, justamente J. Baptista Machado, ob. cit., pág. 71). Ora, o Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, não contém quaisquer disposições transitórias especiais (sendo certo, aliás, que o próprio Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, quando aprovou o Regime do Arrendamento Urbano, ressalvou, no seu artigo 6º, o regime das “invalidades mistas de pretérito” – os “precisos efeitos que os artigos 1º do Decreto-Lei n.º
13/86, de 23 de Janeiro, e 1029º, n.º 3, do Código Civil, reconheciam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do presente diploma”). A conclusão da decisão recorrida, não suscitada anteriormente no processo, de que a menor exigência formal introduzida pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000 não visou apenas os novos contratos, mas também “tornar legais, válidos e regulares os contratos daquele mesmo tipo que ainda não estivessem reduzidos a escritura pública”, com um efeito de revalidação formal, deixando o contrato em causa de ser nulo, deve, pois, na verdade, ser considerada imprevisível para os recorrentes, sendo de notar, aliás, que a solução oposta é a defendida, mesmo para a norma em questão, na doutrina (v. Jorge Aragão Seia, Arrendamento Urbano,
7ª ed., Coimbra, 2003, pág. 179) e na jurisprudência – assim, por exemplo, segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de
2000, a “alteração legislativa operada pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, que passou a exigir apenas documento escrito para a cessão de estabelecimento comercial, não tem carácter interpretativo, é lei nova sem eficácia retroactiva”, e, consequentemente, “as condições de validade dos contratos anteriores a ela – tais como a forma, a capacidade, os vícios de consentimento, etc. – bem como os seus efeitos, são regulados pela lei em vigor
à data da sua celebração.” Estamos, pois, perante uma interpretação do artigo 7º, n.º 1, do Regime do Arrendamento Urbano, na sua nova redacção, que é de considerar subjectiva e objectivamente inesperada, e que, portanto, os recorrentes não podiam prever. O presente caso é – tal como, por exemplo, o dos Acórdãos n.ºs 74/00 e 56/01
(acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt) –, pois, de considerar um daqueles casos, anómalos e excepcionais, em que é de prescindir da exigência de suscitar a inconstitucionalidade dessa norma antes de proferida a decisão recorrida. Por conseguinte, pode tomar-se conhecimento do recurso.
6.Antes de prosseguir, importa deixar claro, porém, que não está em causa, no presente recurso, apurar se a interpretação normativa em causa corresponde, porventura, ao melhor direito – à solução desejável ou preferível, com independência das exigências constitucionais. Já se disse, aliás, que a orientação jurisprudencial e doutrinal maioritária não propende para tal interpretação, mas antes para a solução contrária. Contudo, isso não significa, por si só, que esta solução seja constitucionalmente censurável – não-direito, e não apenas mau direito –, sendo que nem decorre sempre das exigências constitucionais nem compete, em regra, a este Tribunal controlar qual é a melhor interpretação do direito infra-constitucional (a não ser quando tal solução ou interpretação sejam necessária decorrência de normas ou princípios constitucionais).
7.Segundo os recorrentes, a norma em causa, ao impor a conclusão de que a diminuição de exigência em matéria de forma aproveita mesmo aos contratos celebrados sob a lei antiga, convalidando-os, violaria “o princípio da não retroactividade das leis constante no art. 12º do Código Civil”, e violaria os
“princípios constitucionais da igualdade, da segurança e da protecção dos direitos fundamentais relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivos, pois que, segundo o art. 18º, n.º 3, 2ª parte, da CRP, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias não podem ter carácter retroactivo, não podendo, portanto, aplicar-se a situações ou actos passados mas antes e apenas aos verificados ou praticados após a sua entrada em vigor.” Sobre os termos em que a Constituição da República veda a retroactividade das leis, em nome do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica
ínsito no princípio do Estado de direito, tem-se pronunciado por repetidas vezes a jurisprudência do Tribunal Constitucional, quer em geral, quer especificamente relativamente a normas que integram o regime do contrato de arrendamento. Assim, no acórdão n.º 99/99 (em que estava em causa a constitucionalidade de uma norma do Estatuto da Aposentação) tendo o recorrente invocado “a violação dos princípios da confiança e da não retroactividade da lei, que, como decorrentes do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, gozam de protecção constitucional, ainda que não exista uma proibição genérica de retroactividade das leis”, afirmou-se:
«Como se escreveu no Acórdão n.º 287/90 (publicado no Diário da República, I Série, de 20 de Fevereiro de 1991):
‘Nesta matéria, a jurisprudência constante deste Tribunal tem-se pronunciado no sentido de que apenas uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos, viola o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de direito democrático (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/83, de
12 de Outubro de 1983, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., pp. 11 e segs.; no mesmo sentido se havia já pronunciado a Comissão Constitucional, no Acórdão n.º 463, de 13 de Janeiro de 1983, publicado no Apêndice ao Diário da República de 23 de Agosto de 1983, p. 133, e no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 314, p. 141, e se continuou a pronunciar o Tribunal Constitucional designadamente através dos Acórdãos n.ºs 17/84 e 86/84, publicados nos 2º e 4º vols. dos Acórdãos do Tribunal Constitucional, a pp. 375 e segs. e 81 e segs., respectivamente).’ E no mesmo Acórdão n.º 287/90, transcrito depois no Acórdão n.º 285/92, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Agosto de 1992, salientou-se que, depois de se apurar se foram afectadas expectativas legitimamente fundadas, resta averiguar se essa afectação é inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa. A ‘ideia geral de inadmissibilidade’ deverá ser aferida pelo recurso a dois critérios:
‘a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18º da Constituição desde a 1ª revisão). Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.’ » Já no domínio do regime do arrendamento, pode ler-se no Acórdão n.º 177/99 (in DR, II série, de 8 de Julho de 1999), relativo ao artigo 5º, n.º 2, do citado diploma que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano:
«Como se afirmou já no Parecer n.º 14/82, da Comissão Constitucional (Pareceres, volume 19º, pág. 183), a propósito do princípio do Estado de direito democrático: ‘Um tal princípio garante seguramente um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas suas expectativas juridicamente criadas e, consequentemente, a confiança dos cidadãos e da comunidade na tutela jurídica
[...]. Daí não deriva que toda a norma retroactiva deva reputar-se inconstitucional, mas só aquela que viola de forma intolerável a segurança jurídica e a confiança que as pessoas e a comunidade têm obrigação (e também o direito) de depositar na ordem jurídica que as rege’. Por sua vez, o acórdão n.º 437, também da Comissão Constitucional (Apêndice ao Diário da República, de 18 de Janeiro de 1983), refere que ‘o princípio da confiança não pode haver-se por intoleravelmente ofendido – não havendo assim uma retroactividade constitucional ilegítima – quando, entre outras hipóteses
(...) a confiança (do cidadão) no reconhecimento da situação jurídica ou das suas consequências se revele materialmente ‘injustificada’, sempre que a situação jurídica ‘não era clara ou inequívoca’, de tal modo que o cidadão poderia e deveria contar com a eventualidade do seu posterior esclarecimento num ou noutro sentido ou, de uma maneira geral, quando razões imperiosas de ‘ interesse público – e nomeadamente, nas palavras de Gomes Canotilho, a adopção de medidas positivas de conformação social – se sobrepõem visivelmente à tutela dos valores da segurança e da certeza jurídicas’. Como o Tribunal Constitucional por diversas vezes tem acentuado, só uma retroactividade que importe um sacrifício incomportável e desproporcionado para o cidadão, na medida em que afecte por forma excessivamente gravosa as suas legítimas expectativas, viola o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito democrático (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 1011/96, no Diário da República, II Série, de 13 de Dezembro de 1996). Ou seja, só quando a retroactividade não for arbitrária ou opressiva e a nova situação jurídica não for de todo imprevisível ou improvável, se poderá dizer não saírem aqueles princípios violados. Tal como se pode ler no recente Acórdão n.º 559/98, inédito:
‘No entanto, pouco importa que a norma sub iudicio, com a interpretação apontada, seja retroactiva ou apenas retrospectiva. Tratando-se de um domínio em que a retroactividade da lei não está constitucionalmente vedada (ela é apenas proibida no domínio penal, e, ainda assim se a retroactividade não for in melius; no domínio fiscal e no das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias), quer a lei seja retroactiva, quer seja retrospectiva, ela só é inconstitucional, se violar princípios constitucionais autónomos. E isso é o que sucede, quando a lei afecta, de forma ‘inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa’, direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos. Num tal caso, com efeito, a lei viola aquele mínimo de certeza e de segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito. A este impõe-se, na verdade, que organize a ’protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação de vida’ (cf. o Acórdão n.º
330/90, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 17º, páginas
277 e seguintes). Por conseguinte, apenas uma retroactividade intolerável, que afecte, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou as expectativas legitimamente fundadas dos cidadãos, viola o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República (cf., entre outros, os Acórdãos n.ºs 11/83 e 287/90, publicados nos Acórdãos citados, volumes 1º, páginas 11 e seguintes, e 17º, páginas 159 e seguintes; e o acórdão n.º 486/96, publicado no Diário da República, II série, de 17 de Outubro de
1997)’.» As mesmas orientações haviam já sido frisadas, entre outros, no Acórdão n.º
222/98 (in DR, II série, de 25 de Julho de 1998), relativamente a uma norma que veio “impor, retroactivamente, a redução a escrito dos contratos de arrendamento rurais, mesmo dos contratos celebrados antes do seu início de vigência”, dizendo-se sobre a questão de saber se ela violaria o “princípio do Estado de direito, na sua vertente de princípio da confiança, consagrado no artigo 2º da Constituição”:
«O princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova se não mostre de conteúdo mais favorável ao arguido) – cf. n.ºs 1 e 4 do artigo 29º –, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias – cf. n.º 3 do artigo 18º – e para o pagamento de impostos – cf. artigo 103º, n.º 3
(versão da Lei Constitucional n.º 1/97) –, podendo, assim, dizer-se que na Lei Fundamental se não consagra como princípio o da proibição da não retroactividade da lei, ainda que a Constituição não seja insensível a tal questão. No caso em apreço, a acção de remição do contrato de arrendamento de um prédio rústico, proposta pelos ora recorrentes, viu a respectiva instância ser julgada extinta logo na 1ª instância – e esta decisão ser confirmada na Relação e no Supremo Tribunal de Justiça – por os autores e recorrentes não terem apresentado com a petição um exemplar escrito do respectivo contrato de arrendamento rural nem terem alegado que o não podiam fazer por tal falta ser imputável aos réus. Neste tipo de acções – que, manifestamente não se situam no âmbito penal – e em que apenas está em causa a extinção, por remição, de uma relação contratual decorrente do arrendamento rural, matéria que tem a ver com a organização económica, em especial com a política agrícola, não pode afirmar-se que estejamos perante uma daquelas matérias para as quais a Constituição consagra o princípio da irretroactividade da lei. Desta forma, admitindo que a Constituição não consagrou, como princípio, a irretroactividade da lei em geral, e, sendo as normas de conflitos de leis no tempo como as do artigo 12º do Código Civil meras injunções ao aplicador ou operador e não ao legislador, em regra a retroactividade da lei não contende com a Constituição. De resto, no caso dos autos, poderá haver quem entenda que a utilização da norma questionada não corresponde sequer a uma situação de verdadeira e própria retroactividade, mas antes seja apenas um caso de aplicação imediata da lei nova ou de mera retrospectividade legal. Seja como for, o que importa é apurar se tal aplicação da lei nova a contratos celebrados em anterior quadro legal viola ou não o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito.
8. – Sobre este princípio escreveu-se no Acórdão n.º 156/95, in Diário da República, II Série, de 21 de Junho de 1995) o seguinte:
“Tem este Tribunal, aliás, na esteira de uma jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, defendido que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula ‘uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas’, razão pela qual ‘a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica’
(cfr. o Acórdão n.º 303/90, publicado no Diário da República, 1ª série, de 26 de Dezembro de 1990). Sequentemente (e ainda para se usar terminologia desse acórdão), o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que ‘os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor’. Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal estatuição dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a ‘liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade’ do legislador, características que são ‘típicas’, ‘ainda que limitadas’, da função legislativa (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p.309). Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o subprincípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar. Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo enfraquecidas ‘que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique sacrifício incomportável’ (cf. Acórdão n.º 365/91, no Diário da República, 2ª série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito democrático.”» Por sua vez, o Acórdão n.º 486/97 (in DR, II série, de 17 de Outubro de 1997, e sobre o n.º 2 do artigo 65º do Regime do Arrendamento Urbano e o artigo 3º, n.º
3, do respectivo diploma preambular, relativos à caducidade da acção de despejo
– e v. também, sobre os mesmos, o Acórdão n.º 499/99, in DR, II série, de 18 de Fevereiro de 2000), com interesse para a norma em causa no presente recurso, salientou, seguindo jurisprudência anterior, a distinção entre verdadeira retroactividade e retrospectividade (ou “retroactividade inautêntica” – “unechte Rückwirkung”, na expressão alemã), dizendo que não era o primeiro caso o da norma em questão, pois que
«ela ‘não se aplica às acções pendentes em juízo à data’ da entrada em vigor da Lei n.º 24/89, de 1 de Agosto. Se alguma acção desse tipo ainda estava pendente no momento da entrada em vigor do mencionado artigo 65º, n.º 2, o respectivo prazo de caducidade continuou a contar-se do conhecimento inicial, pelo senhorio, do facto violador do contrato de arrendamento. A norma questionada aplica-se apenas para o futuro, pois que rege tão-somente para as acções de despejo propostas em momento em que, sendo a causa de pedir constituída por ‘facto continuado ou duradouro’, o respectivo prazo de caducidade se contava já ‘a partir da data em que o facto tiver cessado’ (cf. artigo 1094º, n.º 2, do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º
24/89, de 1 de Agosto). Aplica-se, no entanto, a situações de facto que concernem a relações jurídicas não terminadas, ou seja, a situações de violação contratual (continuadas ou duradoiras) vindas de trás, que, constituindo já antes fundamento de resolução do contrato de arrendamento, só são invocadas pelo locador já no domínio desta norma. A norma aplica-se, assim, às relações jurídicas de locação ‘já constituídas’ que subsistiam ‘à data da sua entrada em vigor’, em conformidade com o que se prescreve na parte final do n.º 2 do artigo 12º do Código Civil. Trata-se, por conseguinte, de uma norma retrospectiva – ou, se se preferir, de um caso de retroactividade inautêntica. Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data (cf. o Acórdão n.º 232/91, publicado nos Acórdãos citados, volume
19º, páginas 341 e seguintes). Uma lei retrospectiva não levanta o problema da retroactividade da lei. Coloca, porém, como se anotou – e semelhantemente ao que acontece com as leis retroactivas que não sejam leis penais, nem leis restritivas de direitos, liberdades e garantias – a questão da eventual violação do princípio da confiança, que vai ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição. Mas essa violação só se verifica, se a lei atingir 'de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm que respeitar' (cf. Acórdão n.º 365/91, publicado nos Acórdãos citados, volume 19º, páginas 143 e seguintes), ou seja, ‘a ideia de segurança, de certeza e de previsibilidade da ordem jurídica’ (cf. citado Acórdão n.º 232/91). E tal sucede, quando os destinatários da norma sejam titulares de direitos ou de expectativas legitimamente fundadas que a lei afecte de forma ‘inadmissível, onerosa ou demasiadamente onerosa’. Nos dizeres do citado Acórdão n.º 232/91, ‘uma norma retrospectiva só deve ser havida por constitucionalmente ilegítima quando a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual tomou as suas decisões for violada de forma intolerável, opressiva ou demasiado acentuada. Num tal caso, com efeito, a confiança na situação jurídica preexistente haverá de prevalecer sobre a medida legislativa que veio agravar a situação do cidadão. E isso porque, tendo tal confiança, nesse caso, maior ‘peso’ ou ‘relevo’ constitucional do que o interesse público subjacente à alteração legislativa em causa, é justo que o conflito se resolva daquela maneira’.
(…)» Da citada jurisprudência (e muitos outros arestos se poderiam citar – v., por exemplo, o Acórdão n.º 304/2001, in DR, II série, de 9 de Novembro de 2001) pode, pois, em suma, retirar-se que, para as normas retrospectivas, ou que prevêem uma “retroactividade inautêntica”, o problema constitucional que se suscita é o de saber se, prevendo consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm posteriormente a esta data, estão a violar, de forma excessivamente onerosa, intolerável, opressiva ou injustificada, a confiança do cidadão na manutenção da situação jurídica com base na qual actuou. E como índice para tal conclusão, pode considerar-se relevante o facto de a mutação da ordem jurídica afectar em sentido desfavorável uma expectativa consolidada ao abrigo da lei antiga, e de, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não poderem contar com ela, bem como a circunstância de ela não ser ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalentes (podendo recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18º da Constituição).
8.No presente caso, estamos fora, quer do domínio criminal, quer da área fiscal, quer do domínio dos direitos, liberdades e garantias – quanto a este, porque apenas está em causa a previsão de uma determinada exigência de forma legal para a celebração do contrato de arrendamento, que não contende, designadamente, com qualquer dimensão do direito fundamental dos recorrentes (que só poderia ser o direito de propriedade, consagrado no artigo 62º da Constituição da República) que deva ser considerada de natureza análoga a tais direitos, liberdades e garantias (cfr. o artigo 17º da Constituição). Não procede, portanto, o argumento que os recorrentes procuram retirar da invocação directa do artigo 18º, n.º 3, da Constituição. Todavia, a norma do artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, interpretada no sentido de a menor exigência dela decorrente aproveitar a contratos celebrados à luz do anterior regime, é, sem dúvida, uma norma retrospectiva – ou retroactiva apenas de forma “inautêntica”, “temperada” ou “de grau mínimo” (cf. J. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo…, cit., pág. 52), pois estabelece consequências para situações jurídicas (a relação contratual arrendatícia) constituídas antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data – e não para situações anteriores. E tal solução contraria, como se disse, quer a orientação dominante no sentido da inexistência de revalidação formal, quer a regra do artigo 12º, n.º 2, 1ª parte, do Código Civil. Tal não configura, porém, só por si, qualquer inconstitucionalidade, devendo
“normas de conflitos de leis no tempo” como as do artigo 12º do Código Civil ser consideradas, como se afirma no citado Acórdão n.º 222/98, como “meras injunções ao aplicador ou operador e não ao legislador”. Importa, pois, perguntar se os senhorios/recorrentes, que haviam celebrado em
1999, apenas por escrito particular, um contrato de arrendamento, podiam formar uma legítima expectativa, sob a vigência da redacção originária do artigo 7º, n.º 2, do Regime do Arrendamento Urbano, no sentido de existir uma nulidade do contrato por vício de forma – e de, como consequência, vir a ser restituído o local arrendado –, e se esta é afectada em sentido desfavorável, e de forma excessivamente onerosa, intolerável, opressiva ou injustificada pelo entendimento da alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000 no sentido de este ter importado uma revalidação formal do negócio. Entende-se que é de responder negativamente a estas questões. Com efeito, não pode afirmar-se que o entendimento da norma em apreço – independentemente da questão de saber se é ou não o melhor, repete-se – no sentido de esta ter operado uma revalidação formal seja inteiramente injustificado ou arbitrário, sendo, antes, ditado pela salvaguarda do interesse dos arrendatários perante o do senhorio e do princípio da conservação dos negócios jurídicos (magis ut valeant quam ut pereant, expressamente invocado, aliás, na decisão recorrida). A propósito da relevância do interesse dos arrendatários, também para os arrendamentos para o comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, importa recordar, aliás, que na ordem jurídica portuguesa a possibilidade de invocação da nulidade, por falta de escritura pública, conhecia limitações anteriormente ao Regime do Arrendamento Urbano. Assim, o Decreto-Lei n.º 67/75, de 19 de Fevereiro, invocando a defesa das “partes contratuais menos favorecidas”, introduziu um n.º 3 no art. 1029º do Código Civil, segundo o qual, apesar de a falta de escritura pública ferir o negócio de nulidade, “a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respectiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio.” Previu-se, pois, a partir desta altura, e até à entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano, uma invalidade mista, a qual só poderia ser invocada pelo inquilino, que podia, ainda, fazer a prova do contrato por qualquer meio (regime, este, que, nos termos do artigo 2º, n.º 1, do citado diploma de 1975, era aplicável também “aos arrendamentos já existentes”). Estas restrições desapareceram com o Regime do Arrendamento Urbano. Mas tal como no artigo 6º do diploma que aprovou este se previu a salvaguarda dos precisos efeitos que o artigo 1029º, n.º 3, do Código Civil reconhecia, também não é de todo em todo injustificado basear a interpretação da nova redacção do artigo 7º do Regime do Arrendamento Urbano, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 64-A/2000, no sentido da revalidação formal dos contratos anteriores, na finalidade de, para protecção do arrendatário, e face à conveniência em conferir mais agilidade à celebração deste tipo de contratos de arrendamento – que determinou a abolição da exigência de escritura pública –, “tornar legais, válidos e regulares os contratos daquele mesmo tipo que ainda não estivessem reduzidos a escritura pública” (como se pode ler na decisão recorrida). Questão diversa seria a de saber se tal interpretação corresponde efectivamente ao melhor entendimento desta norma, que não cumpre ao Tribunal Constitucional. Seja como for quanto a este ponto, é certo que, por virtude de tal interpretação
– e como se escreveu no acórdão n.º 222/98 – “não se verifica nem ocorre qualquer afectação de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa da segurança e certeza que o direito deve respeitar.”
9.Acresce, aliás, que, no presente caso, o contrato foi posto em execução de imediato, em Janeiro de 1999, havendo ocupação, utilização do imóvel e pagamento de rendas até Janeiro de 2001 – tendo precisamente os ora recorrentes, na acção que interpuseram no início de 2002, e na qual exigiram a restituição do locado, exigido judicialmente também os pagamentos em falta. Não pode, pois, dizer-se que os senhorios/recorrentes tenham podido formar legitimamente uma expectativa no sentido da invalidade do negócio, muito menos com fundamento na verificação, no caso, das razões que levavam à exigência da forma legal. Como resulta dos referidos factos, a expectativa formada pelos recorrentes, foi, pelo contrário, precisamente a da execução do contrato e do recebimento de rendas, só quando estas falharam tendo posto em causa a sua validade – ou seja, a inversa da nulidade deste e da restituição de tudo o que tivesse sido prestado em execução do contrato. E não deixará ainda de anotar-se, quanto à circunstância de os recorrentes poderem ter sido afectados, em sentido desfavorável, pela nova redacção, que na decisão recorrida se não deu como provado que, se não tivesse sido celebrado o contrato, os recorrentes teriam obtido um rendimento superior do prédio – justamente por isso tendo improcedido a acção de indemnização. E que poderá, pois, duvidar-se até – o que, porém, não seria decisivo – de que as razões da exigência de escritura pública que se pudessem referir aos senhorios tenham justificado, pela inobservância desta forma legal, a formação de uma expectativa na nulidade que tenha sido frustrada em sentido desfavorável.
III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita, bem como condenar os recorrentes em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2004
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos