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Processo nº 426/02
3ª Secção Rel. Cons. Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. impugnou no Tribunal Tributário de Lisboa ( 2º Juízo – 2ª Secção) a liquidação de I.R.C. relativa ao ano de 1992.
Da sentença que julgou improcedente a liquidação (fls. 139-149) recorreu a mesma sociedade para o Supremo Tribunal Administrativo, concluindo nos termos seguintes:
“1. O tribunal a quo considera que o “juro decorrido” é um rendimento de capital para efeitos do disposto no artº 6º, nº 1, alínea c), do CIRS e encontra-se sujeito a retenção na fonte em sede de IRS e IRC, nos termos dos artºs. 74º, do CIRS e 75º do CIRC;
2. Acrescenta ainda o Tribunal recorrido que a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 263/92, de 24.11, vem clarificar o regime de tributação daquele “juro decorrido” tendo, portanto, natureza interpretativa e, logo, eficácia retroactiva;
3. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não tem razão;
4. O “juro decorrido” não tem a natureza de rendimento de capital mas de mais-valia decorrente da alienação de um título de dívida;
5. Mesmo admitindo que aquele rendimento constitui um juro, ainda assim, à data da verificação do facto tributário o mesmo não estava sujeito a IRS nem a retenção na fonte para efeitos do mesmo imposto do IRC;
6. A consideração do “juro decorrido” como um rendimento de capital e a consequente imposição da obrigação de retenção na fonte só surgem com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 263/92;
7. O Decreto-Lei nº 263/92 é inovador não se admitindo a sua aplicação retroactiva;
8. A natureza inovadora decorre fundamentalmente da inexistência, à data do facto tributário, de uma norma de incidência estrita, de determinação do momento e do “quantum” da sujeição a imposto e da consequente obrigação de retenção na fonte, relativa ao “juro decorrido”;
9. Inexistindo norma anterior não pode existir interpretação autêntica;
10. Acresce que a aplicação retroactiva, nomeadamente na redacção dada pelo artº
1º do Decreto-Lei nº 263/92 aos artºs. 6º, nº 1, alínea c), e nº 3, 8º, nº 3, alínea c), e 39º, nº 3, do CIRS, pelo artº 2º aos artºs. 71º, nº 2, alínea e), e
75º, nº 6, do CIRC e pelo artº 3º ao artº 12º-A do Decreto-Lei nº 42/91, de
22.01, atenta contra as expectativas dos seus destinatários bem como contra os princípios da protecção da segurança e da certeza constitucionalmente consagrados;
11. Aliás, a aplicação retroactiva de uma norma fiscal inovadora encontra-se constitucionalmente vedada;
12. A proibição constitucional da retroactividade resulta, não só dos princípios da certeza e da protecção da segurança dos destinatários das normas, corolários do Estado de Direito, mas também do artº 103º, nº 3, da CRP na redacção dada pela 4ª Revisão Constitucional;
13. Mesmo que o Decreto-Lei nº 263/92 tivesse natureza interpretativa, ainda assim a sua eficácia retroactiva seria inadmissível, sob pena de inconstitucionalidade como já o julgou doutamente o Acórdão nº 172/2000 de
22.03.2000, do Tribunal Constitucional;
14. Em face do exposto deve ser revogada a decisão por ser ilegal e inconstitucional a liquidação adicional impugnada.
15. Deve a sentença recorrida ser revogada por violação, nomeadamente, dos artºs. 6º, nº 1, alínea c), 10º, 8º, nº 1 e 2 e 74º do CIRS, do artº 75º do CIRC, bem como da redacção dada pelo artº 1º do Decreto-Lei nº 263/92 aos artºs.
6º, nº 1, alínea c), e nº 3, 8º, nº 3, alínea c), e 39º, nº 3, do CIRS, pelo artº 2º aos artºs. 71º, nº 2, alínea e), e 75º, nº 6 do CIRC e pelo artº 3º ao artº 12º-A do Decreto-Lei nº 42/91, de 22.01, e ainda, dos artºs. 16º, 106º e
108º, da CRP, na redacção anterior à 4ª Revisão Constitucional e pelo artº 103º, nº 3, da CRP, na redacção dada pela 4ª Revisão Constitucional e, em consequência, deve ser julgada procedente a impugnação judicial.”
Por acórdão de 10 de Abril de 2002, o Supremo Tribunal Administrativo (Secção do Contencioso Tributário), negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.
Interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 203 a
205), que foi recebido.
Já no Tribunal Constitucional, após alegações da recorrente e da Fazenda Pública, o relator proferiu o seguinte despacho, ouvindo as partes sobre questões obstativas ao conhecimento do objecto do recurso ( fls. 203):
“1. - O A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de Abril de 2002, visando, como explicitou no requerimento de interposição do recurso, a apreciação das normas dos “artigos
1º, 2º e 3º, do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24 de Novembro, quando interpretadas, como o foram pelo douto tribunal a quo,, no sentido de que as mesmas têm natureza interpretativa e logo eficácia retroactiva”. Entende o recorrente que foram violados os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º, nº3, e 103º, n.º 3, na redacção dada pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 25 de Setembro.
2. - Porém, em sede de alegações conclui o recorrente que:
“(...)
9ª A aplicação retroactiva, nomeadamente da redacção dada pelo art. 1º do Decreto-Lei n.º 263/92 aos arts. 6º, n.º 1, alínea c), e n.º 3, 8º, n.º 3, alínea c), e 39º, n.º 3, do CIRS, pelo art. 2º aos arts. 71º, n.º 2, alínea e), e 75º, n.º 6, do CIRC e pelo art. 3º ao art. 12º-A do Decreto-Lei n.º 42/91, de
22.01. atenta contra as expectativas dos seus destinatários bem como contra os princípios da protecção da segurança e da certeza constitucionalmente consagrados;
(...)
12ª Em face do exposto deve ser julgada inconstitucional a aplicação, nos termos em que o fazem as decisões proferidas no presente processo, dos arts. 6º, n.º 1, alínea c), 8º, n.º 2, e 91º do CIRS e art. 75º, n.º 4, do CIRC, bem como dos arts. 1º, 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24.11, por violação do disposto nos arts. 106º, n.º 2 e 18º, n.º 3, da Constituição da República, então em vigor, e actual art. 103º da mesma Lei. Termos em que, com o douto suprimento desse Venerando Tribunal Constitucional, deve ser julgada inconstitucional a interpretação e aplicação no concreto caso dos arts. 6º, n.º 1, alínea c), 8º, n.º 2, e 91º do CIRS e art. 75º, n.º 4, do CIRC, bem como dos arts. 1º, 2º e 3º do Decreto-Lei n.º 263/92, de 24.11., quando aplicada retroactivamente por violação do disposto nos arts. 106º, n.º 2, e 18º, n.º 3, da Constituição da República, então em vigor, e actual art. 103º, n.ºs. 2 e 3, da mesma Lei Fundamental, nos termos em que o fazem as sucessivas instâncias judiciais no processo sub judice, com as legais consequências como é da mais elementar Justiça.”
3. - Ora, tendo em conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de que é no requerimento de interposição que se delimita o objecto do recurso, não sendo lícito ao recorrente nas alegações alargar o seu âmbito, mas, tão só, restringir o seu objecto, terá de entender-se o recurso restrito às normas do citado Decreto-Lei n.º 263/92, de 24 de Novembro, na parte em que alteraram o Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e o Código do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, “quando interpretadas, como o foram pelo douto tribunal “a quo”, no sentido de que as mesmas têm natureza interpretativa e logo eficácia retroactiva”.
4. - Decorre, no entanto, da leitura do aresto recorrido que se pode entender que o complexo normativo sindicado não foi aplicado pelo tribunal a quo como ratio decidendi, uma vez que aderiu á fundamentação invocada no acórdão da 1ª instância que concluiu que “que segundo a lei em vigor ao tempo da verificação dos factos (1992), já a norma de incidência previa que as operações intermédias em causa determinassem a obrigação da liquidação de imposto, através do mecanismo da retenção na fonte”, e à jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, no mesmo sentido, que considera que as alterações introduzidas pelo diploma de 92 são entendidas como meras explicitações do regime legal em vigor. Ainda que assim não fosse, sempre se teria de concluir pela invocação de uma fundamentação alternativa, o que tornaria inútil o conhecimento da questão da constitucionalidade das normas do Decreto-Lei n.º 263/92, visto o âmbito do recurso não abranger as normas do CIRS e do CIRC na sua versão originária. Admite-se, em consequência, que o Tribunal Constitucional não conheça do recurso.
5. - A entender-se que o objecto do recurso abrange também a versão originária das normas em apreço efectivamente aplicadas, então é de admitir que o Tribunal venha igualmente a não conhecer do recurso. Com efeito, pode entender-se não constituir questão de constitucionalidade normativa, integrando fundamento para o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, o processo interpretativo utilizado no tribunal recorrido no preenchimento dos elementos definidores de um determinado tipo legal, em domínios em que vigora o princípio da legalidade: uma interpretação alegadamente extensiva ou análoga dos elementos do tipo, em matéria penal ou fiscal, e, bem assim, contraordenacional, será, nesta leitura, indissociável das circunstâncias de caso, sendo, por isso, de imputar o eventual vício de inconstitucionalidade,
à decisão judicial e não à norma aplicada (cfr., a propósito, os Acórdãos n.ºs.
674/99 e 358/2001, apenas publicado o primeiro, no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000).”
Apenas a recorrente se pronunciou, tendo sustentado , em síntese, o seguinte:
- Não é exacto que, em sede de alegações, tenha ampliado o objecto do recurso. Com o requerimento de interposição já pretendia ver sindicada a constitucionalidade da aplicação dos artigos do CIRS e do CIRC, quer na redacção anterior, quer na posterior à prevista nos artigos 1º, 2º e 3º do Decreto-Lei nº
263/92.
- Com efeito, a divergência entre a recorrente e o Tribunal a quo decorre do entendimento deste de que a redacção dada pelos artigos 1º, 2º e 3º do Decreto-Lei nº 263/92, designadamente aos artigos 6º, 8º, 10º e 39º do CIRS,
é meramente interpretativa em virtude da sujeição a IRS e IRC do rendimento consubstanciado no juro decorrido já se encontrar contida nas referidas normas na sua redacção originária e de a recorrente entender que a inclusão daquele rendimento nas normas de incidência objectiva só se verificou com o mencionado Decreto-Lei nº 263/92.
- Não é possível sindicar-se a constitucionalidade da aplicação retroactiva do DL nº 263/92, sem que se sindicasse, simultaneamente, a constitucionalidade da interpretação das normas do CIRS e do CIRC na sua versão originária e que aquele, alegadamente, vem interpretar.
- O que a recorrente alega é que o sentido propugnado pelas sucessivas instâncias judiciais não se encontrava compreendido nas normas interpretadas e que o juro decorrido só com a entrada em vigor do DL 263/92 passou a estar sujeito a IRS ou IRC, pelo que a tributação de rendimentos auferidos só poderia verificar-se mediante a aplicação retroactiva daquele diploma, pelo que as duas questões são indissociáveis.
- Por outro lado, não se invocou a inconstitucionalidade de qualquer decisão judicial, mas que as decisões das sucessivas instâncias judiciais determinavam a tributação do rendimento constituído pelo juro decorrido, por força, nomeadamente, do disposto nos artºs. 6º, nº 1 c), 10º, 8º.nº1 e 2 e 74º do CIRS e do art. 75º do CIRC, os quais compreendem já a redacção dada ao aos mesmos pelo art. 1º , 2º e 3º do Decreto-Lei nº 263/92, uma vez que este último tinha natureza interpretativa e se integrava na norma interpretada e que tal aplicação daquelas normas jurídicas concretas com o sentido normativo que lhes foi fixado era inconstitucional.
Cumpre decidir, começando pelas questões obstativas ao conhecimento do objecto do recurso.
2. O despacho do relator admite a possibilidade de o Tribunal não tomar conhecimento do objecto do recurso por duas ordens de razões:
- O complexo normativo sindicado, na delimitação contida no requerimento de interposição do recurso, não foi aplicado pelo tribunal a quo como ratio decidendi ou, quando muito, só foi considerado num plano de fundamentação alternativa;
- Se for considerado que o recurso tem a extensão proposta nas alegações da recorrente, o eventual vício de inconstitucionalidade não será de atribuir à norma mas à decisão judicial.
Vejamos, tendo presente esse despacho e as razões que a recorrente aduz para contrariar a decisão que ele prenuncia.
O recurso das decisões judiciais para o Tribunal Constitucional interpõe-se por meio de requerimento que, além do mais, deve conter a indicação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade se pretende que o Tribunal aprecie (artigo
75º-A da Lei nº 25/82, de 15 de Novembro). E o âmbito do recurso é restrito à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada (artigo 71º da mesma Lei nº 25/82).
Deste modo, o requerimento de interposição limita irremediavelmente o âmbito do recurso. Posteriormente, pode ser restringido, mas não ampliado (nº 3 do artigo
684º do CPC, ex vi do artigo 69º da LTC).
Esta conclusão, que não sofreria dúvidas sérias face ao regime geral do processo civil (cfr. artigo 69º da LTC), impõe-se, com uma evidência reforçada, perante o regime específico do recurso de fiscalização concreta. Ficariam destituídas de sentido as acrescidas exigências formais impostas ao requerimento de interposição pelo artigo 75º-A da LTC se o âmbito do recurso pudesse, posteriormente, ser ampliado a outras questões de constitucionalidade (ou ilegalidade).
Ora, no requerimento de fls. 203-205, com que interpôs o recurso para este Tribunal, a requerente refere expressamente : “As normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada são os artigos 1º, 2º e 3º do Decreto Lei nº 263/92, de 24.11, quando interpretadas, como o foram pelo tribunal a quo, no sentido de que as mesmas têm natureza interpretativa e logo eficácia retroactiva”.
Portanto, só o que respeita a estas normas (à sua “retroactividade”) pode ser discutida no presente recurso.
Aliás, não é exacto que as duas questões sejam, sub specie constitutionis, indissociáveis. Embora a seu propósito se possam convocar as mesmas normas ou princípios constitucionais, colocam problemas distintos e são susceptíveis de resposta autónoma. Uma, a questão identificada no requerimento de interposição, consiste em saber se a Constituição consente que o legislador edite leis interpretativas em matéria fiscal, nomeadamente com o efeito característico, vinculativo para o aplicador do direito (artigo 13º, nº 1, do Código Civil), de o sentido consagrado pela lei nova se integrar ab initio na lei interpretada (Sobre a problemática das leis interpretativas em matéria fiscal, vid. o Acórdão nº 172/00, publicado no Diário da República, II Série, de
25/10/2000). A outra, aquela a que se estendem as alegações, consiste em saber se um determinado sentido normativo é inconstitucional por ser produto de um processo hermenêutico colidente com normas ou princípios constitucionais (cfr. Acórdão nº 196/03, publicado no Diário da República, II Série, de 16/10/2003).
3. Fixado o âmbito do recurso em conformidade com o requerimento de interposição e analisada a decisão recorrida, verifica-se que a solução desta questão de inconstitucionalidade normativa não interfere com o resultado a que, quanto ao mérito da causa, chegou o Supremo Tribunal Administrativo.
Efectivamente, no acórdão recorrido começou por afirmar-se, por adesão à motivação da sentença de 1ª instância e com invocação da jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Administrativo acerca da questão, que a sujeição do juro decorrido a IRS e IRC já estava estabelecida no CIRS e no CIRC na redacção anterior à estabelecida pela intervenção legislativa consubstanciada no Decreto-Lei nº 263/92, de 24 de Novembro.
É útil, para identificar a ratio decidendi do acórdão recorrido, transcrever a seguinte passagem da sentença de 1ª instância, por aquele absorvida:
“Portanto, em face do mencionado, se forem pagos os juros decorridos, juntamente com o reembolso do capital na data em que o credor (alienante) o solicita, aqueles, não obstante não ter ainda ocorrido o vencimento do título, estão sujeitos a retenção na fonte no momento do reembolso. O mesmo se diga da situação em que o devedor, utilizando a faculdade que lhe é concedida pelo artº
1147, do C. Civil, proceder junto do credor ao pagamento antecipado do capital, satisfazendo, simultaneamente, os juros por inteiro. Em face do preceituado no citado artº 8º, nº 2, do C.I.R.S., pode concluir-se que a previsão no mesmo preceito consagrada abrange, não só a situação em que não exista estipulação expressa do vencimento de juros, mas também aquela em que, embora havendo uma data de vencimento estipulada, o reembolso do capital ocorre antes do mesmo vencimento e, juntamente com o capital, devem ser pagos os juros decorridos
(lembremo-nos que é lícito o recurso à interpretação extensiva das normas tributárias de incidência, apenas se proibindo em direito fiscal a aplicação analógica das mesmas). Em conclusão, os rendimentos correspondentes a “juros decorridos” estavam, ao tempo dos factos, compreendidos na norma de incidência no que se refere à sua qualificação como rendimentos de capitais e, no caso de a transmissão de um título de dívida ocorrer antes da data prevista para o seu vencimento ou amortização, tal facto constitui, do ponto de vista jurídico-fiscal, a antecipação do reembolso do capital mutuado e se, em conjunto com o capital, forem pagos rendimentos correspondentes a “juros decorridos”, nasce nesse momento a obrigação de imposto, nos termos do artº 8º, nº 2, do C.I.R.S. No caso “sub judice”, da análise da matéria de facto conclui-se que a impugnante procedeu à retenção do imposto incidente sobre o quantitativo de “juros decorridos”, na medida em que pagou aos alienantes, juntamente com o valor dos títulos, o montante equivalente ao juro corrido e ainda não vencido, calculado com base no período compreendido entre a data da emissão, primeira colocação ou endosso dos aludidos títulos e a data da transacção realizada, tendo por base o seu valor líquido encontrado após a dedução do montante relativo ao imposto hipoteticamente devido e retido através do mecanismo de retenção na fonte (cfr. nºs 2 e 3 da matéria de facto provada).
À data dos factos (1992), os pagamentos efectuados pelo impugnante integravam, portanto, a categoria de rendimentos de capitais, em qualquer das suas espécies, tais como se encontravam consagrados no artº 6, nº 1, al. c), do C.I.R.S., na redacção anterior ao aludido dec-lei 263/92, de 24/11, dado que o artº 1, deste diploma, reveste a natureza de norma interpretativa.”
E acrescenta o acórdão recorrido:
“Como se escreveu no citado Ac. de 3-5-2000, Rec. 24585 “um tal conjunto normativo configura o tipo legal de incidência do IRS sobre os rendimentos de capitais em termos estritamente económicos, em que o resultado económico é o elemento essencial, do que resultam ser abrangidos no âmbito da previsão legal todos os factos que o permitam atingir, sejam negócios directos, sejam negócios indirectos” pelo que “usando,, assim, a lei o conceito económico para definir o facto tributário, bastando-se com a colheita de rendimentos de aplicação de capitais por um sujeito passivo para que o preenchimento daquele seja satisfeito, excluindo a causa do percebimento dos mesmos da estrutura do tipo legal (os rendimentos ficam sujeitos a tributação, seja qual for a forma por que sejam auferidos, reza o art. 1º/2 do CIRS), optou por uma base tributária que tanto prevenia, irrelevando-a, a adopção pelos particulares de esquemas negociais com o fim indirecto de se subtraírem à tributação (em que cabem os negócios fiscalmente menos onerosos), como abstraia, tornando-as irrelevantes, de causas como as da hipótese em apreço, em que o juro decorrido não é pago pelo devedor mutuário, mas por um terceiro, adquirente do título da dívida”. Ainda conforme se escreveu no mesmo acórdão esta opção legislativa inscreve-se na intenção de prover à eficiência funcional do sistema fiscal, na linha da realização dos princípios as igualdade e generalidade tributária e capacidade contributiva, constitucionalmente consagrados nos artºs. 106º e 197º da CR. A interpretação a que se adere encontra apoio no princípio consagrado no artº 9º
3 do CCivil pois é de presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados quando, no preâmbulo do DL 263/92, de 24.11, refere que as alterações introduzidas no artº
6º do CIRS por esse diploma são explicitações ao quadro legal vigente no domínio da qualificação dos rendimentos obtidos nas transacções de títulos de dívida. Com efeito e como no referido acórdão se escreveu a pensar-se a norma de incidência em IRS e o respectivo facto tributário estruturados em função do resultado económico e não por referência a negócios jurídicos causais, desde a versão original do CIRS, ajuda a que as referências a outros títulos de crédito negociáveis, enquanto utilizados como tais (artº 6º 1 c) e fixações de aspectos temporais e quantitativos da liquidação do imposto em caso de transmissões dos ditos títulos (artº 6º 3), introduzidas pela redacção do diploma de 92, sejam entendidas como meras explicitações do regime legal em vigor e não como ampliações da base de incidência tributária de IRS. Concluímos, por isso, que os juros de títulos de dívida negociados em bolsa, decorridos antes do vencimento ou reembolso, pagos pelo adquirente ao alienante aquando da transacção efectuada, são rendimentos de capitais tributáveis e sujeitos a retenção na fonte no acto do pagamento quer por força do art. 1º, 6º
1 c) quer na versão anterior quer na posterior ao mencionado diploma de 1992.”
Em conclusão, a fundamentação do acórdão recorrido não deixa dúvida de que se chegou à solução da sujeição do juro decorrido ao imposto nos precisos termos da liquidação impugnada e, consequentemente, à improcedência da impugnação, face à leitura que se adoptava dos preceitos legais pertinentes, na redacção que eles tinham anteriormente à publicação do Decreto-Lei nº 263/92. A invocação do carácter interpretativo deste é um mero argumento de conforto relativamente à interpretação que já se tinha por boa antes dessa intervenção legislativa. O tribunal da causa não decidiu como decidiu por se considerar vinculado pela atribuição de natureza interpretativa à lei nova.
Assim, não pode conhecer-se do objecto do recurso, atendendo ao carácter instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e a que o complexo normativo sindicado, na delimitação contida no requerimento de interposição do recurso, não foi aplicado pelo tribunal a quo como ratio decidendi ou, quando muito, só foi considerado num plano de fundamentação alternativa. Qualquer que viesse a ser, a resposta do Tribunal Constitucional à questão colocada não teria virtualidade de alterar a decisão recorrida, com a fundamentação que nela ficou exposta.
4. Por tudo o exposto, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2004
Vítor Gomes Gil Galvão Bravo Serra Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Luís Nunes de Almeida