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Processo n.º 351/03 Plenário Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. A., instaurou no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto processo de execução de sentença, devidamente identificado nos autos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 146º do Código de Processo e de Procedimento Tributário e no artigo 102º da Lei Geral Tributária. Para o efeito, alegou ter obtido ganho de causa nos autos de impugnação judicial que vieram a ser julgados pelo acórdão de 31 de Janeiro de 2001 do Supremo Tribunal Administrativo, que anulou o acto de liquidação de emolumentos do registo comercial, relativos a inscrição de uma emissão de obrigações, cobrada pela Conservatória do Registo Comercial do Porto; e que, portanto, lhe devia ser restituída a quantia de Esc. 90.012.000$00, acrescida de juros legais desde
25.10.95 até integral reembolso. Invocou ainda ter-se esgotado o prazo de execução espontânea sem que a Administração tivesse cumprido o julgado ou, sequer, tivesse respondido ao requerimento que apresentou solicitando esse cumprimento, nos termos do disposto no artigo 5º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho. Assim, concluiu pedindo que fosse declarada a inexistência de causa legítima de inexecução e que se determinasse ao Estado, através do Director-Geral dos Registos e do Notariado, o pagamento imediato do montante a restituir, acrescido dos juros de mora devidos. Na resposta de fls. 22, o Director-Geral dos Registos e do Notariado veio opor-se, dizendo, para o que agora interessa, o seguinte:
“2.º A Lei n.º 85/2001, de 04 de Agosto, que consubstancia a primeira alteração à Lei nº 30-C/2000, de 29 de Dezembro, «Orçamento do Estado para 2001», estabelece no artº 10.º, nº3, que “As tabelas emolumentares a aprovar nos termos do número anterior [alteração, ao abrigo de autorização legislativa, no sentido da conformação ao disposto na Directiva nº 69/335/CEE, do Conselho, de 17 de Julho, e adaptação das demais em conformidade com o princípio da proporcionalidade da taxa ao custo do serviço prestado] aplicam-se aos actos registrais e notariais cuja anterior liquidação emolumentar tenha sido anulada por sentença judicial transitada em julgado”.
E acrescenta, no nº 4 do mesmo artigo, definindo o conteúdo do dever de executar, que “No prazo de 30 dias, contados da entrada em vigor das tabelas previstas no nº 2, serão integralmente executadas as sentenças anulatórias dos actos de liquidação, mediante a restituição da quantia paga, deduzida do valor correspondente aos emolumentos devidos nos termos das novas tabelas, e da parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado.”
Deve, por conseguinte, reconhecer-se que – actualmente – não existe causa legítima de inexecução.
II – Conteúdo do dever de executar e prazo para o seu cumprimento.
3.º - O conteúdo do dever de executar e a restituição dos emolumentos liquidados resulta, como acima se referiu, do disposto no nº 4 do artº 10º da Lei nº 85/2001: restituição da quantia paga, deduzida do valor correspondente aos emolumentos devidos nos termos das novas tabelas, e da parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado.
4.º - A sentença apenas poderá ser executada quando entrarem em vigor as tabelas a que atrás se aludiu. Uma vez que estas estejam em vigor, deverá ser executada no prazo de 30 dias.”
A requerente, a fls. 28, veio insistir na inexistência de causa legítima de inexecução e afirmar que “qualquer alteração do valor a restituir à Requerente, em sede do presente processo de execução de sentença, implicaria necessariamente uma modificação do decidido no processo de impugnação e significaria o desrespeito por sentença transitada em julgado”.
Por sentença de 20 de Março de 2002, de fls. 77, foi declarada a inexistência de causa legítima de inexecução. O tribunal entendeu, então, que estava em causa uma questão “de extrema simplicidade, pois, nos termos do art. 6º n.º 5 [do Decreto-Lei n.º 256-A/77], quando a execução consistir no pagamento de quantia certa, não é invocável causa legítima de inexecução”. Explicitando em que consistia a execução, o tribunal observou que “o conteúdo do dever de executar não deriva do disposto no n.º 4 do art. 10º da Lei n.º
85/2001 mas do próprio trânsito em julgado da sentença em execução, quer por força de preceitos constitucionais [arts. 205º n.º 2 e 266º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (...), quer da lei ordinária (art. 95º da LPTA)”. Entendendo útil, no entanto, analisar a referência à Lei n.º 85/2001, o tribunal considerou que a apreciação das questões suscitadas pelo seu artigo 10º, n.ºs 3 e 4 “– designadamente ao nível da sua (in)constitucionalidade e da interpretação e aplicação das leis no tempo –, não cabe no âmbito deste processo mas apenas aquando (e na medida em que tal venha a acontecer) duma nova liquidação, competindo então ao tribunal a declaração de nulidade dos actos praticados em desconformidade com a sentença (cf. art. 9º n.º 2 do Dec-Lei n.º 256-A/77).” E, acrescentando ser inconstitucional uma lei que mande desrespeitar casos julgados, a sentença afirmou que “terá de qualificar-se como ilegal todo o acto administrativo de inexecução que só possa apoiar-se na aplicação retroactiva de normas adrede elaboradas”.
2. Pelo citado acórdão de 31 de Janeiro de 2001, o Supremo Tribunal Administrativo concedera provimento ao recurso interposto por A., da sentença proferida no Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto, que negara a anulação pretendida. Para o efeito, o Supremo Tribunal Administrativo pronunciou-se nos seguintes termos, no que agora interessa:
“No caso vertente está-se em presença de uma cobrança de emolumentos por inscrição no registo comercial de uma emissão de obrigações de uma sociedade anónima. Embora tal acórdão tenha sido proferido relativamente à Tabela de Emolumentos do Notariado, dele resulta claramente, como se refere no acórdão
25128 deste Supremo Tribunal Administrativo de 25.10.2000 que:
– não reveste carácter remuneratório, para efeitos do disposto no artigo 12.º, n.º1, alínea e), da Directiva 69/335/CEE, do Conselho, na redacção que lhe foi dada pela Directiva 85/303, uma imposição cujo montante aumenta directamente e sem limites na proporção do capital social subscrito;
– os emolumentos que são cobrados por funcionários públicos e são, em parte, entregues ao Estado para financiamento das missões deste, constituem uma imposição na acepção desta directiva;
– nos termos do artigo 10.º, alínea c), da Directiva, além do imposto sobre as entradas de capital, são proibidas as imposições devidas pelo registo ou por qualquer outra formalidade prévia ao exercício de uma actividade a que uma sociedade esteja sujeita em consequência da sua forma jurídica (ponto 24 daquele acórdão). A inscrição que originou a liquidação de emolumentos reporta-se a um aumento do activo da sociedade, sendo por isso proibida em relação a ela a cobrança de imposições que não tenham carácter remuneratório (artigos 4° nº1 alínea c) e 12° nº1 alínea e) da Directiva 69/335/CEE) e os emolumentos cobrados são calculados nos termos do artigo 1° nº 3 da Portaria n° 883/89 de 13 de Outubro, sem que haja limite máximo, constituindo os mesmos receita do Cofre dos Conservadores, Notários e Funcionários de Justiça inserido na Administração do Estado. Terá por isso de considerar-se ilegal a liquidação impugnada por incompatível com a Directiva referida, já que a jurisprudência do TJCE é vinculativa para os tribunais nacionais face à obrigatoriedade do reenvio por parte destes nos termos do artigo 234° (anterior artigo 177°) do Tratado de Roma. Embora o acórdão citado tenha sido proferido em outro processo e relativamente a outros emolumentos terá a sua decisão que ser transposta para o caso presente por serem idênticos os requisitos que concluíram pela incompatibilidade dos emolumentos possuidores de tais características com o direito comunitário. Terá pois de concluir-se que o acto impugnado sofre do vício de violação de lei pelo que deverá ser anulado, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela impugnante no seu recurso.
* Em conformidade com o exposto, acorda-se em conferência neste Supremo Tribunal Administrativo em:
- negar provimento ao recurso interposto pela Fazenda Pública;
- conceder provimento ao recurso da impugnante, revogar a sentença recorrida e, julgando procedente a impugnação, anular o acto impugnado, declarando serem devidos juros indemnizatórios sobre a quantia liquidada e paga desde a data do pagamento até à emissão da correspondente nota de crédito ( artigo 24° n.º1 do CPT). Sem custas”
3. Notificada da “nota discriminativa da quantia a restituir à impugnante”, constante de fls. 92, na qual se procede ao abatimento de uma “quantia devida pelo Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado”, no montante de €
112,00, bem como da quantia de € 25.995,83, a título de “participação emolumentar”, a impugnante, a fls. 101, veio solicitar a declaração de nulidade da dedução da quantia a título de “participação emolumentar”, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, e a requisição ao Conselho Superior de Magistratura de uma ordem de pagamento a seu favor no montante de € 25.995,83, de acordo com o preceituado no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 256-A/77. Respondendo, o Director-Geral dos Registos e do Notariado, a fls. 107, explicou que a referida nota discriminativa tinha sido elaborada com o objectivo de dar
“integral cumprimento” à decisão em execução e de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001: (...) poderá afirmar-se, salvo melhor entendimento, que a Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, consubstanciou a criação de duas taxas (o emolumento notarial e registral e a participação emolumentar) aplicáveis aos factos tributários gerados no passado, incidindo sobre o mesmo acto, no entanto, com os termos de incidência definidos pelo novo Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado. A dívida resultante dessa relação tributária é alvo de uma compensação ex lege determinada nos termos da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto. Assim sendo, essa compensação operar-se-á no momento da devolução da importância liquidada, e incidirá sobre esses montantes e sobre os demais acréscimos legais aplicáveis (juros indemnizatórios e moratórios, quando for caso disso), operando-se a posteriori e não no momento da liquidação inicial, o que lhe retira a eficácia retroactiva em sentido próprio.
(...) não existe, no entender da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado qualquer violação da matéria alvo de caso julgado.(...) Por outro lado, alega a recorrente que a dedução do montante correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e do notariado viola a Directiva n.º 69/335/CEE, relativa às operações de reunião de capitais requerendo a declaração de nulidade da dedução da quantia.
(...) A questão da natureza jurídica da participação emolumentar e a sua conformidade com a citada Directiva nunca foi discutida quer nos tribunais nacionais quer no Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias. Tal deriva, no entendimento da Direcção-Geral dos Registos e do Notariado, da natureza privada da mesma, correspondendo a uma remuneração, historicamente justificada pela origem privada da função, das actividades dos Conservadores e Notários, e que é da sua titularidade exclusiva, não revertendo para o Estado a título de receita pública”.
4. Por sentença de 14 de Fevereiro de 2003, constante de fls. 122 e seguintes, foram julgados inconstitucionais os n.ºs 3 e 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, por violação dos artigos 13º, 18º, n.º 3, e 205º, n.º 2 da Constituição, declarando-se a «nulidade da dedução da quantia a título de ‘participação emolumentar’», ao abrigo do disposto no artigo 9º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 256-A/77.
O Tribunal julgou nos seguintes termos:
«4.1.2.DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 10° N.º 3 E 4 DA Lei n.º 85/2001, de
04.08 De acordo com a posição da DGRN, a referida dedução a título de participação emolumentar não traduz incumprimento do estipulado na sentença exequenda uma vez que foi efectuada ao abrigo do art. 10° n.º 4 da lei n.º 85/2001, de 04.08, conjugado com o novo Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 322-A/2001, de 14.12. A sentença exequenda transitou em julgado, o que significa que não pode ser alterado o que nela se determinou. Assim o determina o art. 205° n.º 2 da Constituição da República Portuguesa
(CRP) – As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades Públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades – bem como a lei ordinária: Transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497° e seguintes (...) (art. 671° n.º 1 do CPC) e A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que se julga (...) (art. 673° do CPC), ou, São, designadamente, actos nulos
(...) os actos que ofendam os casos. julgados (art. 133° n.º 2 al. h) do CPA). O dever de executar não deriva do disposto no n.º 4 do art. 10° da lei n.º
85/2001 mas do próprio trânsito em julgado da sentença em execução, por força dos preceitos legais referidos e do art. 95° da LPT A. Contudo, o carácter de imutabilidade e indiscutibilidade do decidido por sentença transitada em julgado, assume contornos complexos no domínio do contencioso administrativo e tributário, como bem dá nota Freitas do Amaral na sua excelente obra, já referida [A execução das sentenças dos Tribunais Administrativos, 2ª edição, Coimbra]. Fazendo nossas as suas palavras, «A execução deverá pois entender-se que consiste na prática, pela Administração activa, dos actos jurídicos e operações materiais necessários à reintegração efectiva da ordem jurídica violada, mediante a reconstituição da situação que existiria, se o acto ilegal não tivesse sido praticado.». Nesta medida, dar execução integral à sentença proferida é algo de muito concreto: restituir à impugnante o montante nela determinado (hoje, o equivalente em euros), acrescido de juros indemnizatórios desde a data do pagamento pela impugnante. Só com o pagamento de tal quantia se dá cumprimento à sentença. Efectuado isso, nada impedia, como se referiu no ponto anterior, que a administração fiscal efectuasse nova liquidação, desde que respeitado o prazo de caducidade do respectivo direito e expurgado dos vícios anteriores. E, dado que o fundamento da anulação da liquidação anterior residia na desconformidade da lei com o direito comunitário, também nada impedia que na nova lei – Dec.-Lei nº 322-A/2001, de 04.12, que aprovou o novo Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado, no qual, assumidamente, já se efectuou a adaptação da tributação emolumentar à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias relativa à Directiva n.º 65/335/CEE – ou na Lei n.º
85/2001, de 04.08, se prescrevesse que esse Regulamento tivesse eficácia retroactiva, reportada ao momento que o legislador tivesse por mais conveniente. Tivesse sido essa a solução adoptada e, cremos, tudo estaria resolvido, pelo menos na grande maioria dos casos. Na verdade, com base nessa eficácia retroactiva já o facto tributário em causa nos autos poderia ser objecto de tributação (e correspondente liquidação) de acordo com as taxas prescritas no novo Regulamento. Neste aspecto, concordamos com a tese da DGRN: dado estarmos perante uma taxa e não um imposto, a concessão de eficácia retroactiva à nova lei não colidia com o preceituado no art. 103° n.º 3 da CRP. Percebe-se que não tenha sido essa a solução adoptada: em obediência ao princípio da legalidade, tal obrigaria a administração fiscal a revogar todas as liquidações efectuadas - mesmo aquelas que não tinham sido objecto de impugnação por parte dos contribuintes - e efectuar novas liquidações de acordo com o novo diploma, com as consequências gravíssimas que se adivinham ao nível do erário público e do Orçamento de Estado, para além da incapacidade de os serviços responderem a uma operação de tal envergadura. No entanto, se essas (possíveis) razões nos parecem atendíveis ao nível político-económico, o certo é que, no domínio do jurídico elas resultam inócuas pois aqui incumbe antes postular a actuação e as medidas legais pelo respeito pelas leis vigentes, designadamente a CRP. Preceitua o art. 10° n.º 3 e 4 da Lei n.º 85/2001, de 04.08:
(...) Desde logo, se se concorda que a concessão de eficácia retroactiva à nova lei não colide com o preceituado no art. 103° n.º 3 da CRP, já, por outro lado, se nos oferece que tal preceito violaria o princípio constitucional do carácter de generalidade e abstracção que devem revestir as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, plasmado no art. 18° n.º 3 da CRP: 'As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais” e, por via dele, o princípio da igualdade. A este propósito escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira: «Lei geral e abstracta deverá ser entendida, desde logo, como contrária a lei concreta, isto
é, como lei que vale para um número indeterminado de casos, requisito que estará preenchido quando, em virtude da concepção abstracta do pressuposto de facto, não se pode prever a quantos e quais os casos a que se aplicará. A exigência de generalidade e abstracção deverá ainda ser entendida como proibição de leis individuais; a vigência geral da lei refere-se não à situação do facto a regular mas ao círculo de destinatários da lei.» (destaques nossos). Ora, o círculo de destinatários a que se dirige o art. 10º n.º 2 e 3 da Lei n.º
85/2001, é perfeitamente identificável e quantificável e, nessa medida, traduz-se numa lei concreta, assim violando o art. 18° n.º 3 da CRP. Em consonância, temos, por via indirecta, a violação do princípio da igualdade: art.13° da CRP. Na verdade, a aplicação das novas tabelas traduz para os contribuintes um encargo económico muito menor com a tributação dos mesmos factos; ora, em conformidade com o art. 10° n.º 3, uma vez que as novas tabelas emolumentares são aplicáveis apenas aos actos registrais e notariais cuja anterior liquidação emolumentar tenha sido anulada por sentença judicial transitada em julgado, fica prejudicado todo um universo de cidadãos que, pelos mesmos factos, suportou um encargo fiscal muito superior, pela simples razão de não terem reagido contenciosamente! Por fim, tal preceito legal viola o princípio do respeito pelo caso julgado, também imperativo constitucional: art. 208° n.º 2 da CRP.
É sabido que o nosso direito adoptou a teoria da substanciação, da qual decorre que o âmbito do caso julgado é definido ou delimitado pe1a causa de pedir e pelo pedido. Os n.º 3 e 4 do referido art. 10° colidem frontalmente, a nosso ver, com o julgado na sentença em execução. Assim, a ora exequente invocou, no processo de impugnação, como causa de pedir, que a Tabela Emolumentar com base na qual foi efectuada a liquidação em causa, padecia de inconstitucionalidade (por violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da proibição dos excessos), e, por outro lado, violava a Directiva n.º 69/355/CEE. Foi no âmbito e com os limites impostos por essa causa de pedir (uma determinada Tabela Emolumentar) que o Tribunal julgou, tendo sido aquele último fundamento o que vingou e, por isso, se determinou a anulação da liquidação. Ora, o n.º 3 do art. 10°, na medida em que determina que As tabelas emolumentares a aprovar nos termos do número anterior aplicam-se aos actos registrais e notariais cuja anterior liquidação emolumentar tenha sido anulada por sentença judicial transitada em julgado, altera completamente tal causa de pedir pois estabelece que a Tabela Emolumentar a ter em conta na liquidação seja uma totalmente diferente daquela sobre a qual o Tribunal se debruçou e com base na qual decidiu. Já o n.º 4 do art. 10º colide também frontalmente com o âmbito do caso julgado ao nível do pedido. Na verdade, estatuindo-se aí que No prazo de 30 dias contados da entrada em vigor das tabelas previstas no n.º 2, serão integralmente executadas as sentenças anulatórias dos actos de liquidação, mediante a restituição da quantia paga, deduzida do valor correspondente aos emolumentos devidos nos termos das novas tabelas, e da parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado, acaba por se determinar que a quantia em dinheiro que na sentença se julgou, e determinou, dever ser entregue ao contribuinte seja muito menor. Fazendo aqui uso das palavras de Freitas do Amaral, bem como da doutrina e jurisprudência por si invocadas:
«Visa esta restrição pôr de parte os casos, mais frequentes do que à primeira vista pode parecer, em que após a anulação contenciosa de um acto ilegal a Administração consegue obter uma lei, ou resolve elaborar um regulamento, com o intuito de tornar legítima a situação decorrente do acto ilegal e de justificar, assim, a inexecução da sentença.
(...) Entre nós a dificuldade parece-nos fácil de resolver, uma vez que não pode deixar de entender-se, como demonstrou o Doutor CASTRO MENDES, que é inconstitucional qualquer preceito legal que intente tornar legítimo o desrespeito do caso julgado. Com efeito, na medida em que venha «mandar levar a aplicação da lei nova ao ponto de desrespeitar casos julgados (...), tal disposição é materialmente inconstitucional (...), não devendo os tribunais aplicá-la». O que o ilustre Autor extraía do § único do artigo 123º da Constituição de 1933 continua hoje a decorrer do n.º 2 do artigo 208º e do n.º 3 do artigo 282º da Constituição de 1976, pois «se a Constituição manda respeitar os casos julgados mesmo quando eles assentam em normas inconstitucionais, por maioria de razão se imporá tal respeito quando se não verifique tal situação» Daqui decorre, nomeadamente, que terá de qualificar-se como ilegal todo o acto administrativo de inexecução que só possa apoiar-se na aplicação retroactiva de normas adrede elaboradas.». Tudo visto, na consideração de que o art. 10° n.º 3 e 4 da Lei n.º 85/2001, de
04.08 é inconstitucional, por violação dos arts. 13°, 18° n.º 3 e 208° [205º] n.º 2 da CRP, incumbe a este Tribunal, em obediência ao art. 204° da mesma CRP, recusar a sua aplicação e, consequentemente, ao abrigo do art. 9° n.º 2 do Dec.-Lei n.º 256-A/77, de 17.06, declarar a nulidade da dedução da quantia a título de “participação emolumentar” efectuada segundo a “nota discriminativa” de fls. 92. DECISÃO
5. Em consequência do exposto:
- declara-se a nulidade da dedução da quantia a título de “participação emolumentar” efectuada segundo a “nota discriminativa” de fls. 92.
- após trânsito em julgado desta decisão, e decorrido que seja o prazo de 45 dias sem que esse pagamento integral se efectue, deverá tal facto ser comunicado pela exequente a este Tribunal, a fim de comunicar ao Conselho Superior da Magistratura no sentido de emitir ordem de pagamento, em conformidade com o art.
12° n.º 2 do Dec.-Lei n.º 256-A/77, de 17.06.
(...)»
5. Veio então o Ministério Público, a fls. 132, “nos termos dos artigos 70º, n.º 1, al. a), 72º , n.ºs 1, al. a), e 3, 75º e 75º-A da Lei n.º
28/82, de 15/XI, na redacção dada pela Lei n.º 85/89, de 7/IX, interpor recurso para o Tribunal Constitucional da sentença de fls. 122 e seguintes, em que foi recusada, por inconstitucionalidade, a aplicação dos n.ºs 3 e 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto”.
Admitido o recurso, as partes foram notificadas para alegar.
O Ministério Público apresentou as suas alegações, tendo concluído da seguinte forma:
“1º- O regime constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, traduz o estabelecimento de uma nova tributação sobre actos registrais e notariais, retroactivamente aplicável àqueles que hajam sido objecto de litígio, implicando a criação de um mecanismo de compensação ‘ex lege’ entre o crédito reconhecido judicialmente ao impugnante e o direito do Estado ao recebimento de tal nova taxa.
2º- A retroactividade de tal regime, aplicável a factos passados, não afronta o artigo 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (apenas aplicável no
âmbito da lei fiscal) nem o artigo 18º, n.º 3, da Constituição, já que não está em causa qualquer limitação retroactiva aos ‘direitos, liberdades e garantias’ elencados no Título II do Livro I da Constituição da República Portuguesa.
3º- A limitação de tal regime legal às situações litigiosas que hajam originado a prolação de sentença anulatória dos precedentes actos de liquidação não afronta o princípio da igualdade (já que os cidadãos que prescindiram de qualquer impugnação contenciosa de actos eventualmente ilegais não estão em situação equiparável aos que diligentemente fizeram valer em juízo os seus direitos), nem traduz a criação de uma lei concreta, dirigida a um círculo de destinatários individualmente determinado.
4º-Tal regime não afronta, por outro lado, o princípio da estabilidade do caso julgado material, já que apenas implica que um crédito novo do Estado, supervenientemente constituído (embora aplicável retroactivamente a situações passadas) seja objecto de uma compensação ‘ex lege’ com o crédito judicialmente reconhecido, do impugnante.
5º- Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
A recorrida apresentou igualmente alegações, com estas conclusões:
“1ª - A exigência da ‘participação emolumentar’ constitui uma flagrante violação do caso julgado, pois a sua imposição foi anulada pelo Tribunal por decisão transitada em julgado proferida no processo de impugnação n.º 66/95, que correu os respectivos termos pela 2ª Secção do 2º Juízo do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto;
2ª - O fundamento da anulação da liquidação, decidida no mencionado processo de impugnação, residiu na desconformidade da lei – Tabela de Emolumentos aprovada pela Portaria n.º 883/89, de 13 de Outubro – com o direito comunitário, designadamente com o disposto na Directiva 69/335/CEE;
3ª - A ‘participação emolumentar’ foi calculada nos termos da Tabela de Emolumentos aprovada pela Portaria n.º 883/89, pelo que a sua exigência infringe o âmbito do caso julgado, pois está a criar-se um tributo que comunga com o anterior do mesmíssimo vício;
4ª - A parte final do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, enferma de patente inconstitucionalidade, por violação do disposto do n.º 2 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa;
5ª - A ‘nova tributação’ sustentada pelo digno Magistrado do Ministério Público divide-se em duas partes: uma, resultante da aplicação do actual Regulamento Emolumentar dos Registos e Notariado (R.E.R.N.), publicado no Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro; outra, que repete uma parte da liquidação que já foi anulada e que foi calculada nos termos da Portaria n.º
883/89;
6ª - Em face da decisão judicial proferida no citado processo de impugnação n.º 66/95, apenas é legítima a exigência da quantia cobrada ao abrigo do actual R.E.R.N., visto que a tributação emolumentar efectuada nos termos dessa Tabela respeita o conteúdo daquela decisão;
7ª - A exigência da ‘participação emolumentar’ viola ainda o princípio constitucional da igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição da República, pois pelo mesmo serviço a A. é tributada de uma forma mais onerosa;
8ª - As quantias denominadas como ‘participação emolumentar’, retirada dos montantes cobrados a título de emolumentos, são receitas públicas;
9ª - Em sede de execução de julgados, competia à administração a restituição de tudo o que a A. pagou e do cômputo dos juros em relação a esse montante.”
6. Cumpre começar por fixar o objecto do recurso.
É o seguinte o texto das normas cuja apreciação pretende o Ministério Público (artigo 10º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto):
Artigo 10º Sistema de financiamento da justiça
(...).
3 – As tabelas emolumentares a aprovar nos termos do número anterior aplicam-se aos actos registrais e notariais cuja anterior liquidação emolumentar tenha sido anulada por sentença judicial transitada em julgado.
4 – No prazo de 30 dias, contados da entrada em vigor das tabelas previstas no n.º 2, serão integralmente executadas as sentenças anulatórias dos actos de liquidação, mediante a restituição da quantia paga, deduzida do valor correspondente aos emolumentos devidos nos termos das novas tabelas, e da parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários dos registos e notariado.
(...)
No entendimento da sentença recorrida, tais normas seriam inconstitucionais por violação dos artigos 13º, 18º, n.º 3 e 205º, n.º 2 da Constituição.
A verdade, todavia, é que, para alcançar a decisão agora sob recurso
– decisão que declara a nulidade da dedução somente na parte relativa à participação emolumentar – o tribunal recorrido apenas teve que afastar a aplicação de parte do n.º 4 do artigo 10º citado. Com efeito, ao não proceder a idêntica declaração de nulidade na parte correspondente aos emolumentos, o tribunal aplicou, quer o n.º 3 do mesmo artigo, quer parte do seu n.º 4 – aquela que manda deduzir o valor correspondente a esses emolumentos. Assim sendo, apenas integra o objecto do presente recurso a apreciação da norma constante do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, na parte em que determina que, na execução das sentenças anulatórias dos actos de liquidação, será deduzida, na restituição da quantia paga, a parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários do registo comercial.
7. Antes, todavia, de se proceder à apreciação do objecto do recurso, assim delimitado, há que fazer determinadas observações. Desde logo, em primeiro lugar, e ainda que a propósito da “inconstitucionalidade do art. 10º n.º 3 e 4 da Lei n.º 85/2001, de 04.08”, a sentença recorrida trata de questões que apenas respeitam, quer ao regime (de direito ordinário) de execução de sentenças anulatórias no contencioso tributário, regime que considera não respeitado pela lei nova, quer às regras aplicáveis aos actos de liquidação, que seriam contrariadas pela mesma lei. Ora tais questões estão, naturalmente, fora do âmbito possível de julgamento do presente recurso, porque se situam, apenas, no domínio do direito ordinário. Em segundo lugar, cumpre realçar que o montante correspondente à participação emolumentar foi efectivamente encontrado partindo da aplicação da tabela de emolumentos do registo comercial que tinha sido utilizada no acto de liquidação anulado, aprovada pela Portaria n.º 883/89, de 13 de Outubro. Era esta a tabela em vigor à data da liquidação; e não pode ter sido em função de outros valores que se determinou a “receita mensal líquida” a que se refere o n.º 1 do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 519-F/2/79, de 29 de Dezembro, com base na qual se calculou o montante da referida participação emolumentar. Esta verificação está, necessariamente, pressuposta no julgamento de inconstitucionalidade proferido pela sentença agora recorrida, assente na violação de caso julgado pela norma em apreciação.
8. Cumpre, então, passar à análise da questão de constitucionalidade. A sentença começa por considerar violado “o princípio constitucional do carácter de generalidade e abstracção que devem revestir as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, plasmado no art. 18º n.º 3 da CRP'. Não se vê – nem a sentença dá qualquer indicação –, todavia, que esteja em causa matéria relativa a direitos, liberdades e garantias, o que, desde logo, afasta esta possível causa de inconstitucionalidade.
9. A sentença recorrida afirma, seguidamente, que foi violado o princípio da igualdade porque “a aplicação das novas tabelas traduz para os contribuintes um encargo económico muito menor com a tributação dos mesmos factos”. Essa aplicação, determinada no n.º 3 do artigo 10º em causa, beneficiaria os seus destinatários por confronto com aqueles que, tendo procedido ao pagamento de emolumentos de acordo com as mesmas tabelas, suportaram “um encargo fiscal muito superior, pela simples razão de não terem reagido contenciosamente”. Sucede, porém, que, para além da manifesta inconsistência do argumento, ele não pode ser utilizado para justificar um julgamento de inconstitucionalidade da norma que está a ser apreciada neste recurso; apenas poderia ser dirigido contra a norma que, apesar de tudo, foi aplicada pela sentença, constante do n.º 3 do artigo 10º. Com efeito, não foram utilizadas para determinar a quantia a reter a título de participação emolumentar as referidas novas tabelas, mas sim a anterior (ou seja, a mesma que foi então aplicada aos contribuintes que não impugnaram contenciosamente os actos de liquidação). Sempre se diz, no entanto, que a legitimidade constitucional desta diferença de tratamento levou já o Tribunal, por diversas vezes, em casos em que lançou mão do mecanismo de restrição de efeitos previsto no artigo 282º, n.º 4, da Constituição, a ressalvar a situação de todos aqueles que houvessem entretanto contestado, em devido tempo, o pagamento de determinadas quantias exigidas pela norma declarada inconstitucional (neste sentido, cfr. o Acórdão n.º 76/88, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pp. 358-359; e ainda os Acórdãos n.º 96/2000 e n.º 437/2000, publicados no Diário da República, I-A Série, de 17 de Março de 2000 e 24 de Novembro de 2000, respectivamente).
A recorrida, por seu turno, aponta também a violação do princípio da igualdade, mas por diferente fundamento. Em seu entender, a aplicar-se a norma do artigo 10º, n.º 4, da Lei n.º 85/2001,
“a A. estaria a ser tributada de uma forma bastante mais onerosa do que um qualquer particular que recorra ao mesmo serviço público”. Segundo afirma, “de acordo com a Tabela Emolumentar aprovada pelo R.E.R.N., a outorga de uma escritura pública de aumento de capital social custa € 112,00”, enquanto “a A. deve suportar essa quantia acrescida de € 25.995,83, liquidada nos termos de uma Tabela que foi julgada ilegal”. A verdade, todavia, é que também não colhe esta alegada violação do princípio da igualdade, desde logo porque assenta na comparação de dois regimes sucessivos – o que foi estabelecido para o cálculo dos emolumentos pela tabela aprovada pela Portaria n.º 883/89 e o que resulta da tabela aprovada pelo Decreto-Lei n.º
332-A/2001, de 14 de Dezembro (que revogou a Portaria n.º 996/98, de 25 de Novembro, excepto no que respeita aos emolumentos pessoais, o que agora não releva, portaria essa que, por sua vez, havia substituído a tabela constante da Portaria n.º 883/89). Ora o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente que «o princípio da igualdade – que obriga a tratar por igual o que for essencialmente igual e a dar tratamento diferente ao que for essencialmente diferente –, enquanto princípio vinculativo da lei, apenas opera, em regra, sincronicamente. E isto, porque o legislador, em via de princípio, não tem por que manter as soluções jurídicas que alguma vez adoptou. A sua função caracteriza-se, justamente, pela liberdade de conformação e pela auto-revisibilidade. E, por isso, “salvo nos casos em que o legislador tenha de deixar intocados direitos entretanto adquiridos, não está ele obrigado a manter as soluções consagradas pela lei a cuja revisão procede”
[cf. o acórdão n.º 352/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 19º, páginas 549 e seguintes). Cf. também os Acórdãos nºs 34/86, 309/93, 563/96
(Acórdãos citados, volumes 7º, tomo 1, página 37, 24º, página 185, 33º, página
47, respectivamente), n.º 559/98 (...) [entretanto publicado no Diário da República, II série, de 12 de Novembro de 1998], e nºs 575/98 e 163/99 (Diário da República, II série, de 26 de Fevereiro de 1999 e 16 de Fevereiro de 2000, respectivamente)]» (Acórdão n.º 173/01, Diário da República, II série, de 7 de Junho de 2001). No mesmo sentido, podem ver-se por exemplo os Acórdãos n.ºs 207/94 e 640/95
(publicados no Diário da República, II série, respectivamente, de 13 de Julho de
1994 e de 20 de Janeiro de 1996) ou 29/00 e 478/03, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt. Não procede, assim, a alegada violação do princípio da igualdade.
10. Finalmente, a sentença recorrida julga inconstitucional a norma em apreciação por violação do “princípio do respeito pelo caso julgado, também imperativo constitucional: art. 208º [205º] n.º 2 da CRP'. Ora a verdade é que, ao mandar deduzir à quantia paga, naturalmente em função da tabela aplicável à respectiva liquidação, o montante correspondente à participação emolumentar, o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 implica necessariamente que, nesta parte, se mantenha a aplicação dessa tabela, não obstante ter sido anulada a liquidação por ilegalidade da mesma; e que este regime é definido para os casos em que a decisão de anulação, baseada nessa ilegalidade, adquiriu força de caso julgado. Assim, não parece que se possa duvidar de que a norma em apreciação regula – e regula apenas – situações julgadas definitivamente por sentença anulatória, e que contém um regime parcialmente incompatível com aquele julgamento. Não procede, pois, a alegação do Ministério Público, na parte relativa à compensação entre o montante anteriormente pago e aquele que corresponde à participação emolumentar. Com efeito, o Ministério Público afasta a violação de caso julgado com o fundamento de que “a força vinculativa do caso julgado não é minimamente afectada pela circunstância de – supervenientemente ao trânsito em julgado da sentença anulatória – ser efectuada uma nova e autónoma liquidação, baseada em lei ulteriormente editada (embora retroactivamente aplicável às situações litigiosas passadas)”. Ora, “a figura dos limites temporais do caso julgado” significaria, em seu entender, que só fica “naturalmente coberta pela indiscutibilidade do caso julgado a situação posterior a tal momento
‘estabilizador’ [“a prolação da decisão anulatória, em contencioso de anulação”] na medida em que se não invoque uma ‘alteração das circunstâncias’. (...) [N]uma situação com a configuração da dos autos, a sentença proferida no âmbito do processo de impugnação contenciosa reconheceu efectivamente ao impugnante o direito a haver do Estado determinado montante pecuniário enquanto decorrente da anulação de uma certa e concreta liquidação tributária; mas já não lhe reconhece esse crédito em termos absolutos, de modo a pô-lo necessariamente a coberto de uma alteração superveniente das circunstâncias de facto e de direito em que assentou a sentença condenatória – não violando o princípio da indiscutibilidade do caso julgado o facto de uma lei nova – editada pelo Parlamento – ter vindo, em momento ulterior à prolacção da sentença: - criar um novo tributo, retroactivamente aplicável a factos passados; - determinar que se proceda à conpensação ‘ex lege’ entre o montante de tal tributo novo e o crédito do impugnante sobre o Estado, subsequente à precedente anulação de um outro acto tributário”. A verdade, todavia, é que esta argumentação apenas procede quanto à aplicação do n.º 3 e da parte do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 que foi excluída do objecto do presente recurso, ou seja, quanto à compensação com o montante correspondente aos emolumentos devidos pelo acto praticado; não colhe no que toca à parte relativa à participação emolumentar. Como já se observou, para excluir da devolução este último montante, o n.º 4 citado – na parte relevante – não definiu nem remeteu para nenhum critério o cálculo de tal participação, o que significa que a sua execução implica necessariamente a manutenção da aplicação da tabela julgada ilegal pelo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Janeiro de 2001, por implicar “uma imposição cujo montante aumenta directamente e sem limites na proporção do capital subscrito”. Não houve, pois, qualquer alteração das circunstâncias, qualquer elemento novo, de facto ou de direito, posterior à anulação, que justifique o recurso, neste ponto, à teoria dos limites temporais do caso julgado. Em nada releva a afirmação de que houve uma nova liquidação; o que interessa é o critério de cálculo aplicado. Há, pois, que averiguar se, à luz da Constituição, é inconstitucional uma norma destinada, apenas, a afectar situações anteriormente definidas por decisão com força de caso julgado.
11. Sobre o alcance da garantia constitucional do caso julgado, assente, como se sabe, no princípio da segurança jurídica inerente ao Estado de Direito
(artigo 2º da Constituição), na especial força vinculativa das decisões dos tribunais (actual n.º 2 do artigo 205º) e no princípio da separação de poderes
(artigos 2º e 111º, n.º 1), bem como no n.º 3 do artigo 282º da Constituição, logo a Comissão Constitucional teve oportunidade de se pronunciar, entre outros, no seu Acórdão n.º 87, de 16 de Fevereiro de 1978 (in Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978, pp. 24 e seguintes). Para o efeito, a Comissão Constitucional veio distinguir “entre a garantia do caso julgado relativamente a decisões subsequentes, também concretas e individuais, de quaisquer órgãos, incluindo órgãos legislativos, e a garantia do caso julgado relativamente a leis gerais que, incidindo sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença, vão determinar a sua alterabilidade”. Quanto à primeira hipótese, “Nenhuma hesitação deve[ria] haver acerca da inconstitucionalidade de uma decisão política ou administrativa, até sob a forma de lei, que eventualmente pusesse em causa uma sentença com trânsito em julgado. A inconstitucionalidade resultaria do artigo 210º imediatamente [correspondente ao actual artigo 205º], do princípio da separação dos órgãos de soberania consagrado no artigo 114º, n.º 1, [correspondente ao actual artigo 111º] (de que a independência dos tribunais, nos termos do artigo 208º [correspondente ao artigo 203º], é corolário), e, quanto a leis individuais que afectassem certas e determinadas sentenças, dos [...] preceitos que apontam a generalidade como característica das normas jurídicas”. Já quanto à segunda, para a Comissão Constitucional, “o modo como o artigo 210º da Constituição [versão originária] se formou, os seus termos muito genéricos e até a sua epígrafe não justificam a conclusão [...] segundo a qual ele valeria também para leis em sentido material, no mesmo plano em que vale para quaisquer outros actos do Estado ou dos particulares”. Assim, “para além do disposto no artigo 210º da Constituição, não se encontra princípio constitucional que, só por si, impeça a lei geral [...] de se reflectir sobre quaisquer situações e relações, mesmo que haja sentença com trânsito em julgado”, e, por outro lado,
“a segurança não deve ser hipostasiada a ponto de obnubilar exigências de igualdade e de justiça que fluem da própria vida e que requerem uma acção constante desse mesmo Estado. O caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica”. E conclui que “uma lei geral, em princípio, não deverá afectar o caso julgado, salvo vontade contrária do legislador, apreciada em termos de interesses substanciais mais relevantes”. No acórdão n.º 103, também da Comissão Constitucional (Apêndice ao Diário da República de 29 de Dezembro de 1978), voltou a prevalecer a ideia de que o caso julgado não era um valor absoluto:
«[...] O problema de saber se o caso julgado pode ser afectado por lei retroactiva insere-se no problema mais geral de saber se, e em que medida, a Constituição admite leis retroactivas. A não ser para as leis penais (artigo 29.º), não se encontra na actual Constituição, bem como nas anteriores, à excepção da Carta Constitucional
(artigo 145.º, § 2.º), qualquer preceito expresso a tal respeito.
Daí que todos concordem que o princípio da não retroactividade das leis civis não encontre apoio na lei fundamental e não haja, por isso, obstáculo a que o legislador ordinário emita leis retroactivas desde que com essa retroactividade se não afectem outros princípios constitucionais, ressalva que, aliás, não é privativa das leis retroactivas (v.g. uma lei, retroactiva ou não, não pode violar direitos fundamentais do cidadão, a não ser nos limitados termos que a própria Constituição consinta).
É, porém, precisamente nesta série de leis retroactivas que é afirmado por uns e contestado por outros que um dos limites a tais leis é o constituído por aquelas situações que tenham sido definidas de modo inatacável por sentença transitada em julgado.
Entre nós, o princípio da intangibilidade tem sido extraído do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição (e, no domínio da Constituição de 1933, nos seus artigos 91.º, n.º 1, e 123.º, § 2.º, de teor semelhante), dizendo-se que, se a cessação de vigência de leis inconstitucionais, operando retroactivamente, encontra tal limite, o mesmo deve acontecer quando uma lei, sem esse ou outros vícios de legitimidade, é substituída por uma lei nova que retroaja a situações ou factos passados, por um argumento, portanto, de maioria de razão ou argumento a fortiori (ubi eadem est ratio legis eadem est dispositio).
Faz-se, assim, pelo menos, interpretação extensiva, se não mesmo analógica, do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição.
Não se debruçam, porém, os sequazes desta interpretação sobre a razão de ser deste último preceito (ou dos preceitos paralelos da Constituição anterior), postulando-se, pura e simplesmente, uma substancial identidade de razões para um caso e para outro.
(...)
Continua a pensar-se que o apregoado princípio da intangibilidade do caso julgado pela lei ordinária não tem consagração constitucional mesmo implícita, não passando de um princípio geral do direito a observar na interpretação e aplicação das leis, e que, por isso, se impõe ao intérprete, mas não ao legislador.
(...)
O segundo aspecto do problema das relações entre lei retroactiva e caso julgado – o da separação entre o poder legislativo e o judiciário (artigo
114.º da Constituição) de que são corolários ou desenvolvimentos o princípio da exclusiva sujeição dos tribunais à lei (e à Constituição, subentende-se) do artigo 208.º, bem como da obrigatoriedade e executoriedade das decisões perante as demais autoridades (artigo 210) – também não leva à solução defendida por alguns juristas, menos numerosos aqui, da intangibilidade constitucional do caso julgado pelo legislador ordinário.»
12. Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre o alcance da protecção constitucional do caso julgado, mantendo a orientação desenhada pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional. Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal observou por diversas vezes que decorre da Constituição a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a constituir caso julgado. Com efeito, no Acórdão n.º 352/86 (Diário da República, II série, de 4 de Julho de 1987), considerou “inerente às decisões judiciais insusceptíveis de recurso ordinário” a força de caso julgado, força essa que “se dev[e] arvorar em princípio constitucional implícito, como decorre, ainda, do art. 282º, n.º 3, da CRP'. No mesmo sentido, disse-se no Acórdão n.º 250/96 (in Diário da República, II Série, de 8 de Maio de 1996), que, “para que um Tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado”; (cfr., ainda, o Acórdão n.º 506/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1996).
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional continuou a afirmar que o caso julgado é um valor constitucionalmente tutelado, nomeadamente no seu Acórdão n.º 677/98 (Diário da República, II série, de 4 de Março de 1999): “É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica
(cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t.II, 3º ed., reimp., Coimbra, 1996, p.494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Garantia da Constituição, Coimbra, 1998, p. 257), se trata, sem dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.
Em terceiro lugar, reafirmou a ausência da consagração na Constituição de um princípio de intangibilidade absoluta do caso julgado:
«2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º - e, também, num princípio de separação de poderes - consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º - e no nº 2 do artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto constitucional.
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição.
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam 'ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável ao arguido'. Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável» (Acórdão n.º 644/98, Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1999). Por último, e em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tem reconhecido que, apesar de não ter valor absoluto a tutela constitucional do caso julgado, uma lei retroactiva não pode “atingir o caso julgado nos casos em que, segundo a Constituição, é proibida qualquer retroactividade, por intermédio de uma lei individual” (Luís Nunes de Almeida, Portugal, in Constitution et Sécurité Juridique, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, XV, 1999, p. 249 e segs.). É o que sucede, como se sabe, com as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (n.º3 do artigo 18º da Constituição), as leis penais incriminadoras (artigo 29º, n.º 1) ou (após a revisão constitucional de 1997) as leis que criam impostos (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 304/01, Diário da República, II série, de 9 de Novembro de 2009).
13. Assim apurada a orientação que tem vindo a ser seguida pelo Tribunal Constitucional, e que se considera de manter, há que a aplicar à norma em apreciação, que, diga-se desde já, não respeita a nenhuma das três áreas, acabadas de referir, em que é constitucionalmente proibida qualquer retroactividade. Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes se pronunciou no sentido de que os emolumentos notariais e registrais correspondem a taxas e não a impostos (cfr. Acórdãos n.ºs 115/02, Diário da República, II série, de 28 de Maio de 2002, 210/02 ou 306/02, os dois últimos disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt). Esta circunstância não garante, todavia, a legitimidade constitucional da norma em apreciação no presente recurso. É que o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º
85/2001, na parte que lhe respeita, e como se viu já, apenas se pretende aplicar a situações já definidas por sentença transitada em julgado; e o seu efeito traduz-se, também se viu já, em contrariar (parcialmente) a definição da relação controvertida resultante da decisão anulatória. Não cabe ao Tribunal Constitucional, no âmbito da apreciação deste recurso, pronunciar-se sobre a forma como deveria ou não ser executado o acórdão anulatório; a verdade, todavia, é que não pode deixar de observar que, ao determinar à Administração que deduza a quantia correspondente à participação emolumentar, o n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001 está a definir uma forma de execução “das sentenças anulatórias dos actos de liquidação” (n.º 4 citado) que implica que “a Administração [vá] praticar um acto idêntico com o(...) mesmo(...) vício(...) individualizado(...) e condenado(...) pelo juiz administrativo”, o que provocaria “nulidade, por ofensa do caso julgado” desse acto (VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa”, 4ª ed., Coimbra, 2003, p.
321-322). Não pode, pois, o Tribunal Constitucional deixar de concluir pela inconstitucionalidade da mesma norma, por violação dos referidos princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças, consagrados nos artigos 2º, 111º, n.º 1 e 205º, n.º 2, da Constituição.
14. Com efeito, e recordando a distinção, atrás transcrita, feita pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional, não se pode dizer que a norma em apreciação apenas vem regular tipos de situações nas quais se incluiriam, também
(isto é, além de outras), situações já definidas por sentença transitada em julgado; impede-o a circunstância de apenas se pretender aplicar a anulações já julgadas definitivamente e, logo, perfeitamente identificadas, contrariando
(parcialmente) a determinação judicial de restituição da quantia paga nos termos de uma tabela julgada ilegal. Resta, assim, concluir que a norma é inconstitucional, por violação, nos termos já enunciados, dos princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças dos tribunais, consagrados nos artigos 2º,
111º, n.º 1 e 205, n.º 2º da Constituição.
15. Aliás, mesmo que assim se não entenda, por se ver ainda na norma uma das “leis gerais que incid[em] sobre as situações materiais do tipo das que tenham sido objecto de sentença”, ocorreria igualmente inconstitucionalidade por não se encontrar justificada por um valor constitucionalmente mais relevante, pelo menos, do que o da segurança jurídica, proporcionada pelo caso julgado.
É que, por um lado, é exacto, como observa o Ministério Público, que a participação emolumentar integra a remuneração dos conservadores, constituindo uma parte variável do seu vencimento (artigos 52º e seguintes do Decreto-Lei n.º
519-F2/79, de 29 de Dezembro); e que o julgamento de inconstitucionalidade implica a imposição ao Estado do dever de restituir uma quantia que, entretanto, já foi entregue aos seus destinatários últimos. Por outro, no entanto, não podemos esquecer que a norma se aplica apenas aos casos em que foi interposto (oportunamente) recurso de anulação das liquidações.
Assim, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 2º, 111º, n.º 3 e 205º, n.º 2 da Constituição, a norma constante do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, na parte em que determina que, na execução das sentenças anulatórias dos actos de liquidação, será deduzida, na restituição da quantia paga, a parcela correspondente à participação emolumentar dos funcionários do registo comercial;
b) Negar provimento ao recurso.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2004
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Vítor Gomes Artur Maurício Rui Manuel Moura Ramos Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Carlos Pamplona de Oliveira Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria Helena Brito (vencida, nos termos da declaração de voto anexa)
Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração de voto junta) Gil Galvão (vencido, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto da Exª Senhora Conselheira Maria Helena Brito). Luís Nunes de Almeida
Declaração de voto
Votei vencida, por entender que a norma constante do n.º 4 do artigo
10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, não viola o disposto na Constituição.
São as seguintes, em síntese, as razões da minha discordância em relação à tese que obteve vencimento:
1. Sublinhe-se antes de mais que a decisão judicial cujo julgado o acórdão sustenta ter sido violado pela norma constante do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, é uma decisão proferida em contencioso administrativo-tributário de anulação de uma liquidação de emolumentos. O efeito jurídico cominatório de uma decisão desse tipo consiste em obrigar a administração “à plena reconstituição da legalidade do acto ou situação objecto do litígio” (tal como determina o artigo 100º da Lei Geral Tributária).
Ora, o caso julgado anulatório não impede que a lei intervenha, posteriormente à decisão judicial, para definir o critério normativo a observar no apuramento do montante da taxa devida pelo serviço já prestado e para determinar uma compensação de créditos, restituindo-se ao utilizador apenas a quantia, cobrada a mais, que puder ainda ser restituída. Não será então irrelevante saber se a administração está ou não em condições de fazer tal restituição, nomeadamente averiguando se aquela quantia cobrada a mais continua ou não a pertencer-lhe.
2. Dito isto, importa analisar o conteúdo e a finalidade da norma questionada no presente recurso.
2.1. A Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, veio alterar o Orçamento do Estado para 2001, aprovado pela Lei n.º 30-C/2000, de 29 de Dezembro.
As modificações introduzidas pelo artigo 10º da Lei n.º 85/2001 reportam-se ao “sistema de financiamento da justiça” e justificam-se pela necessidade de compatibilizar com o direito comunitário o regime de emolumentos, até então em vigor, aplicável aos actos registrais e notariais.
A fim de permitir a construção do novo sistema, a Assembleia da República concedeu ao Governo, através do artigo 10º, autorização legislativa para:
– alterar as tabelas emolumentares dos registos e notariado, de modo a adaptá-las ao disposto na Directiva n.º 69/335/CEE (n.º 2 do artigo 10º);
– substituir as tabelas emolumentares aplicáveis aos actos de registo e notariado por rubricas de imposto do selo (n.º 5 do artigo 10º).
Os diplomas aprovados no uso das referidas normas de autorização legislativa são, respectivamente, os Decretos-Leis n.ºs 322-A/2001 e 322-B/2001, de 14 de Dezembro (que entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2002).
2.2. Por outro lado, o artigo 10º da Lei n.º 85/2001 define o regime transitório a aplicar às liquidações dos emolumentos devidos pelos actos registrais e notariais que venham a ser praticados até à data da entrada em vigor do novo sistema.
Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 10º, “mantêm-se em vigor as tabelas emolumentares aplicáveis aos actos registrais e notariais aprovadas pela Portaria n.º 996/98, de 25 de Novembro ...”.
2.3. Finalmente, o questionado artigo 10º da Lei n.º 85/2001 inclui ainda normas que fixam um regime especial próprio (transitório) destinado a reger as liquidações emolumentares relativas a actos de registo e notariado cujas liquidações tenham sido anuladas por decisão judicial transitada em julgado
(n.ºs 3 e 4 do artigo 10º).
Este regime especial traduz-se no seguinte:
Em princípio, serão aplicáveis as tabelas emolumentares a aprovar nos termos da autorização legislativa constante do n.º 2 do artigo 10º – é o que dispõe o n.º 3 do artigo 10º.
Todavia o novo regime a aprovar nos termos da autorização legislativa constante do artigo 10º (dos n.ºs 2 e 5) não pode aplicar-se em globo às liquidações de actos anteriormente praticados, já que uma parte do novo regime se consubstancia em normas de natureza fiscal; com efeito, uma parte dos emolumentos (a parte correspondente à participação emolumentar dos funcionários) passará a ser cobrada como imposto de selo (cfr. o que se determina concretamente no n.º 5, alínea c).
Daí que, quanto às liquidações de emolumentos devidos pelos actos anteriormente praticados, seja também necessário distinguir entre o montante que corresponde a emolumento e o montante que corresponde a participação emolumentar dos funcionários do registo e notariado.
Assim, de acordo com o regime transitório aprovado para essas liquidações:
– o montante que corresponde a emolumento será calculado de acordo com as novas tabelas emolumentares a aprovar nos termos da autorização legislativa constante do n.º 2 do artigo 10º (as tabelas emolumentares que entretanto foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro);
– o montante que corresponde a participação emolumentar dos funcionários do registo e notariado continuará a ser calculado nos termos dos artigos 54º e seguintes do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro (n.º 4 do artigo 10º.).
Por último, determina-se a compensação (parcial) entre o montante do tributo assim calculado e o crédito do impugnante sobre o Estado, subsequente à anulação do anterior acto tributário (n.º 4 do artigo 10º).
3. O regime especial, transitório, instituído pelo artigo 10º quanto às liquidações de emolumentos relativas a actos anteriormente praticados, anuladas por sentença judicial transitada em julgado, não se afigura constitucionalmente desadequado, desrazoável ou desproporcionado, tendo em conta o objectivo que se propunha, de resolver o problema resultante da anulação das liquidações de emolumentos.
Na verdade, a meu ver, das anulações determinadas por sentença judicial não poderia resultar a devolução integral pura e simples das importâncias anteriormente pagas: primeiro, porque os actos tinham sido praticados e os registos encontravam-se efectuados; depois, porque uma parte de tais importâncias constituía receita própria dos conservadores e dos notários; essa parte, não sendo receita do Estado, não poderia ser devolvida pelo Estado em execução da sentença de anulação.
Não existe portanto a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, afirmada na sentença recorrida.
Por outro lado, estando em causa a cobrança de taxas e não de impostos relativamente a actos praticados no passado, a aplicação retroactiva que decorre da norma questionada não viola o artigo 103º, n.º 3, da Constituição
– como aliás também se reconhece no acórdão.
Finalmente, importa sublinhar que a solução encontrada pressupõe a existência de uma nova e autónoma liquidação, efectuada de acordo com o regime especial, transitório, instituído pelo artigo 10º da Lei n.º 85/2001, e um mecanismo de compensação (parcial) entre o montante do tributo assim calculado e o crédito do impugnante sobre o Estado, subsequente à anulação do anterior acto tributário (n.º 4 do citado artigo 10º), não implicando, portanto, nem a convalidação retroactiva de actos tributários anulados por decisão judicial definitiva, nem a manutenção de um critério de tributação proporcional e sem limites.
Em minha opinião, a Assembleia da República procurou um critério normativo susceptível de ser aplicado retroactivamente e de satisfazer os diversos interesses envolvidos, introduzindo ao mesmo tempo um factor de justiça e de igualdade, de modo a evitar uma situação em que, ao fim e ao cabo, ao contrário do que acontece em todos os outros casos de utilização de serviços de registo e notariado, o serviço prestado acabaria por não ter qualquer contrapartida em participação emolumentar.
Nessa medida, não vejo como pode a norma impugnada no presente recurso violar os princípios da segurança jurídica, da separação de poderes e da obrigatoriedade das sentenças dos tribunais. Maria Helena Brito
Declaração de voto
1 - Votei vencido por entender que a norma do n.º 4 do artigo 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto, não viola o disposto na Constituição sobre o respeito pelo caso julgado.
2 - A decisão judicial exequenda cujo julgado a requerente do processo de execução de sentença sustenta ter sido violado pelo legislador daquele preceito é uma decisão proferida em contencioso administrativo-tributário de anulação de uma liquidação de emolumentos de registo comercial. Ora, o efeito jurídico cominatório que uma decisão desse tipo transporta é o de obrigar a administração “à reconstituição plena da legalidade do acto ou situação objecto do litígio” (cfr. art. 100º da Lei Geral Tributária). Tratando-se de uma receita cobrada pela prestação de um serviço público de registo, ou seja, de uma receita que tem a natureza de taxa, como vem sendo reconhecido por este Tribunal Constitucional (cf., entre outros, os Acórdãos n.º 115/02, tirado em plenário, publicado no Diário da República II Série, de 28 de Maio de 2002, e 308/02, disponível em www.tribunal constitucional.pt/jurisprudência), desde logo, essa reconstituição não pode deixar de estar aberta ao pagamento do valor que o legislador possa vir a considerar como equivalente ao serviço utilizado, já que absolutamente nada obriga a que o particular utilizador de tais serviços haja de beneficiar dele a título gratuito pelos simples facto de ter impugnado a sua cobrança sob o fundamento de ser inválida a lei ao abrigo da qual o montante respectivo foi apurado.
A este propósito é caso de chamar à colação a sábia advertência de Mário Aroso de Almeida (Anulação de Actos Administrativos e Relações Jurídicas Emergentes, Coimbra, 2002, pp. 704): «Embora, como é sabido, a sentença anulatória compreenda um momento de accertamento no que se refere ao quadro da relação subjacente, a circunstância de o tribunal só atender, nessa sede, ao quadro que existia no momento em que o acto impugnado foi praticado implica que a sentença assente num accertamento temporalmente limitado, sem prejuízo de eventuais superveniências que possam ter surgido desde o momento em que o acto foi praticado e a que o tribunal já não atende.
A sentença de anulação não define “ o direito a aplicar incondicionadamente no futuro, mas aquele que teria devido ser aplicado a seu tempo pelo acto que, precisamente por o não ter aplicado, é anulado”, pelo que
“não tem nenhuma capacidade de fixar (para o futuro) o ponto de direito entre as partes, senão enquanto as regras da relação administrativa permaneçam imutadas no plano substantivo.». E o mesmo Autor, numa outra obra, acentua relativamente ao âmbito do caso julgado de decisão anulatória, em contencioso administrativo (Sobre a Autoridade do Caso Julgado das Sentenças de Anulação de Actos Administrativos, Coimbra,
1994, pp. 138/139): «Do enunciado exposto decorre o alcance negativo com que, neste plano, o caso julgado formado pela sentença se projecta sobre a ulterior actividade da Administração, impondo limites ao reexercício do poder ou condicionamentos ao modo pelo qual ele se processa - um efeito que decorre da sentença, mas que não define pela positiva o conteúdo da ulterior actuação administrativa, apenas contribuindo para a delimitar em função do modo como se projecta sobre as posições substantivas e sobre o poder manifestado, em termos de imposição de vinculações de conteúdo negativo».
O caso julgado anulatório não impede, assim, que o legislador intervenha posteriormente à decisão judicial para definir o critério normativo que há-de servir ao apuramento do montante da taxa devida pelo serviço já prestado e que efectue a compensação de créditos, restituindo ao utilizador apenas a diferença cobrada a mais que puder ainda ser restituída. Trata-se de uma situação em que se justifica, por natureza, o ius superveniens, de eficácia retroactiva, até para repor o equilíbrio de prestações e propiciar económica e financeiramente a manutenção dos serviços públicos que são do interesse geral de todos os cidadãos. Nesta perspectiva, o que utilizador do serviço público, munido de uma sentença anulatória do acto de liquidação da taxa, pode almejar é tão só que a nova taxa não seja cobrada mediante a aplicação de um idêntico critério normativo ou que a normatividade que seja aplicada seja idêntica à anteriormente rejeitada, por inválida, pelo tribunal. Por outro lado, não será irrelevante, ao que parece, para ajuizar do incumprimento do dever da administração de reconstituir a plena da legalidade do acto ou da situação objecto do litígio, a consideração da circunstância de saber se a administração está em condições de poder restituir o indevidamente cobrado ou se o não está, mormente por a quantia cobrada a mais não lhe ter ficado a pertencer mas a terceiros.
O que se verifica no caso sub judice? Segundo decorre do processo, o acto de liquidação da taxa pela utilização dos serviços públicos de notariado foi anulado por decisão judicial por se haver considerado que a Portaria n.º
883/89, de 13 de Outubro, ao abrigo da qual foi apurado o seu montante, violava o direito comunitário, maxime, a Directiva 69/33/CEE, na medida em que o seu montante aumentava sem limites na proporção do valor do acto objecto do acto notarial. O bloco de legalidade aplicado no acto anulado envolvia duas componentes financeiras diferentes, até em razão do seu destino económico, mas substantivamente indiferenciadas: um emolumento destinado à administração pela prestação do serviço público e uma prestação emolumentar dos funcionários do registos e notariado que era calculada nos termos dos arts. 54º e segs. do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro.
3 - A Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto veio, através do seu art.
10º, n.os 2 e 5, conceder autorização legislativa ao Governo para:
– alterar as tabelas emolumentares dos registos e notariado, de modo a adaptá-las ao disposto na Directiva n.º 69/335/CEE;
– substituir as tabelas emolumentares aplicáveis aos actos de registo e notariado por rubricas de imposto do selo.
Os diplomas relativos aos emolumentos aprovados no uso das referidas normas de autorização legislativa são, respectivamente, os Decretos-Leis n.ºs
322-A/2001 e 322-B/2001, de 14 de Dezembro (que entraram em vigor em 1 de Janeiro de 2002).
Por outro lado, o questionado artigo 10º da Lei n.º 85/2001 inclui ainda normas que fixam um regime especial próprio (transitório) destinado a reger as liquidações emolumentares relativas a actos de registo e notariado cujas liquidações tenham sido anuladas por decisão judicial transitada em julgado (n.ºs 3 e 4).
Tal regime especial desenvolve-se do seguinte modo:
Em princípio, e de acordo com o disposto no seu n.º 3, serão aplicáveis as tabelas emolumentares a aprovar nos termos da autorização legislativa conferida no n.º 2 do mesmo artigo.
Porém, o novo regime a aprovar nos termos da autorização legislativa referida não pode aplicar-se em globo às liquidações de actos anteriormente praticados, porquanto uma parte do novo regime se consubstancia em normas de natureza fiscal: na verdade, uma parte dos emolumentos (a correspondente à participação emolumentar dos funcionários) passará a ser cobrada como imposto de selo [cfr. o que se dispõe na alínea c) do n.º 5 do mesmo artigo].
Daí que, relativamente às liquidações de emolumentos que sejam devidos pelos actos anteriormente praticados, se tenha necessariamente de distinguir entre o montante que corresponde a emolumento e o montante que corresponde a participação emolumentar dos funcionários do registo e notariado. Deste modo, em face do regime transitório aprovado, essas liquidações serão efectuadas com obediência às seguintes regras:
– o montante correspondente a emolumento será calculado de acordo com as novas tabelas emolumentares a aprovar nos termos da autorização legislativa constante do n.º 2 do artigo 10º (as tabelas emolumentares que entretanto foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 322-A/2001, de 14 de Dezembro);
– o montante relativo a participação emolumentar dos funcionários do registo e notariado continuará a ser calculado nos termos dos artigos 54º e seguintes do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro (n.º 4 do artigo
10º.). Por fim estipula-se que se efectue a compensação (parcial) entre o montante do tributo assim calculado e o crédito do impugnante sobre o Estado, subsequente à anulação do anterior acto tributário (n.º 4 do artigo 10º).
4 - Decorre assim do exposto que o legislador tributou a utilização dos serviços públicos do registo/notariado mediante o uso de um critério misto: de um lado o valor correspondente à prestação do serviço público e do outro um imposto de valor correspondente à participação dos funcionários nas receitas dos actos notariais e registrais. Mas o legislador sentiu ainda a necessidade de tributar os actos notariais do passado, por razões de justiça e de obtenção de receitas para manter os serviços. Essa tributação apenas se impunha como necessária para os utilizadores que tivessem impugnado a cobrança das taxas liquidadas ao abrigo da lei anterior, dado as demais receitas pagas pelos utilizadores que não as impugnaram se terem por adquiridas de forma consolidada. Ora, na construção de um critério transitório de tributação retroactiva, o legislador não poderia deixar de ter em conta duas realidades diferentes: uma coisa era o valor cobrado pela administração a título de emolumento pela actividade pública prestada, receita essa de que a administração tinha tirado o respectivo proveito; outra coisa diferente era a quantia recebida como participação dos funcionários a título do seu trabalho na elaboração do acto registral/notarial e que lhes havia já sido entregue, não retirando desse valor a administração um proveito directo, e em cujo recebimento definitivo os mesmos funcionários não podiam deixar de ter uma expectativa juridicamente tutelada em termos correspondentes aos que ocorrem em outros regimes de prestação de trabalho. Estas circunstâncias são de molde a não considerar como constitucionalmente desadequado, desrazoável ou desproporcionado o critério de tributação elegido na perspectiva do respeito constitucionalmente devido também ao caso julgado, valor este que não tem a natureza de um direito absoluto, sendo portanto passível de restrições nos termos do art. 18º, n.os 2 e 3, da Constituição.
Mas, independentemente desta razão, verifica-se que o critério de tributação transitório não se identifica com o critério anterior, julgado ilegal, sob o ponto de vista de constituição do seu conteúdo normativo. Enquanto anteriormente se estava perante uma norma simples cujo conteúdo uno e indeferenciado se expressava no funcionamento de uma regra única de proporcionalidade sem limites sobre o valor do acto e cujos efeitos projectados se traduziam num resultado
único (emolumento+participação emolumentar), agora estamos perante uma norma complexa cujo conteúdo normativo se expressa numa parte em que a taxa
(correspondente propriamente ao emolumento devido pela utilização do serviço público de notariado) é totalmente alheia a qualquer regra de proporcionalidade
(cfr. arts. 11º e 20º do referido DL. n.º 322-A/2001) e numa outra parte, esta correspondente à remuneração do trabalho dos funcionários notariais
(participação emolumentar), adquirida por absorção, em que o resultado projectado se obtém mediante a aplicação do disposto nos artºs 54º e segs. do DL. n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro (n.º 4 do art. 10º da Lei n.º 85/2001, de 4 de Agosto). Assim sendo, é manifesto que é diversa no seu todo, pela sua composição, a regra material estabelecida supervenientemente e com base em cuja aplicação a administração procedeu ao apuramento do montante a restituir, em execução da sentença anulatória, dos emolumentos antes cobrados, não se vendo como seccionar, para efeitos de verificação da violação da regra do caso julgado, uma normatividade estabelecida em bloco. Note-se, aliás, que é o próprio legislador do referido art. 10º, n.º 4 da Lei n.º 85/2001 que afirma pretender executar integralmente as sentença anulatórias dos actos de liquidação. A afirmação de que o resultado normativo que deriva de tal preceito legal é precisamente o contrário - como é a tese do acórdão - carecia assim de fundamentação que conduzisse inequivocamente à conclusão da inconstitucionalidade, dado o princípio de presunção de constitucionalidade de que goza o preceito legal. Ora, essa demonstração inequívoca, salvo o devido respeito, não a conseguimos lobrigar nos fundamentos do acórdão. Como é evidente - embora esse aspecto seja estranho ao objecto possível do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, porque relativo ao acto administrativo de liquidação da taxa e à decisão judicial que conheceu da sua legalidade, em si próprios, e não ao critério legal aplicado a cujo âmbito se cinge o juízo passível de ser feito por este Tribunal Constitucional - não pode deixar, em actos de conteúdo pecuniário como são os actos de liquidação de uma taxa e de encontro de contas, nos termos do referido n.º 4 do art. 10º da Lei n.º 85/2001, de conduzir a uma zona de coincidência parcial de montantes entre o liquidado antes e o liquidado e apurado depois. Mas a existência de uma tal sobreposição de valores não demanda que ela advenha de uma aplicação de idênticas regras materiais de tributação.
Benjamim Rodrigues