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Procº nº 776/2003
3ª Secção Relator: Conselheiro Bravo Serra
1. Em 24 de Novembro de 2003 o relator proferiu decisão com o seguinte teor:
“1. Tendo o A., pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, requerido a suspensão de eficácia da deliberação tomada em 29 de Janeiro de 2003 pelo Conselho de Administração do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, que deferiu o pedido de transferência da Farmácia B. para a Rua
----------, nº -------, da freguesia de ----------, do concelho de
-------------, o Juiz daquele Tribunal, por sentença de 26 de Maio de 2003, já que entendeu que o requerente não alegou factos que pudessem ser subsumidos ao conceito de que da execução daquela deliberação lhe resultassem prejuízos de difícil reparação, veio a indeferir o pedido.
Não se conformando com o assim decidido recorreu o solicitante para o Tribunal Central Administrativo, o qual, por acórdão de 4 de Setembro de 2003, negou provimento ao recurso.
Deste aresto arguiu o impetrante a respectiva nulidade, dizendo, a dado passo, na peça processual consubstanciadora da arguição:
‘.................................................................................................................................................................................................................................................
2. Ora, nas alegações de recurso o recorrente fundamentou com outros argumentos o seu inconformismo com a sentença recorrida, para demonstrar o preenchimento do requisito p. na al. a) do artº [ ] 76º da LPTA.
3. Porém, o acórdão em apreço não atendeu a esses argumentos, designadamente, aos argumentos levados às conclusões 5ª, 6ª, 7ª e 8ª das suas alegações e desenvolvidas a págs. 6 a 12 das alegações.
4. Assim, no acórdão recorrido não se faz a mínima referência aos abundantes e relevantes argumentos invocados pelo recorrente, que se passam, de novo, a citar:
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5. O acórdão recorrido por omissão de pronúncia padece de nulidade, que se invoca, por violação do artº 20º da Constituição da República Portuguesa:
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6. O recorrente tem direito a uma tutela judicial efectiva, o direito a um processo baseado no princípio da fundamentação das decisões judiciais, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial.
Nestes termos
urge reconhecer a inconstitucionalidade da decisão e ser esta reformada de acordo e no respeito por tal juízo de inconstitucionalidade’.
Tendo o Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 16 de Outubro de 2003, indeferido a requerida arguição, veio o requerente desse aresto interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que fez ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, por seu intermédio intentando a apreciação da ‘inconstitucionalidade material da norma do artigo
668, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil, na interpretação dada no douto acórdão de que se recorre, suscitada em sede de recurso interposto’.
Tendo o recurso sido admitido por despacho prolatado em 6 de Novembro de 2003 pelo Juiz Relator do Tribunal Central Administrativo, foram os autos remetidos ao Tribunal Constitucional.
2. Porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, sendo certo que o despacho admissor não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº
76º da Lei nº 28/82), elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A daquela Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Como deflui do relato acima efectuado, pretende o ora recorrente submeter à censura deste órgão de administração de justiça a apreciação da desconformidade constitucional da norma ínsita na alínea d) do nº 1 do artº 668º do diploma adjectivo civil numa dada interpretação, que teria sido conferida pelo aresto sub iudicio, ou seja, pelo acórdão que indeferiu a arguição de nulidade assacada ao anterior acórdão de 4 de Setembro de 2003.
Ora, aquando da arguição, o impugnante, muito embora tivesse assacado ao mencionado acórdão de 4 de Setembro de 2003 um vício de nulidade, na medida em que o mesmo não teria atendido a argumentos brandidos pelo mesmo, não equacionou, de todo em todo, a questão da desconformidade com a Lei Fundamental de uma dimensão interpretativa do normativo supra referido e da qual resultasse que o não atendimento argumentativo invocado por um recorrente não redundaria na nulidade da proferenda decisão tomada pelo tribunal superior.
Antes o recorrente preferiu, na peça processual em que arguiu a nulidade, enveredar pelo caminho segundo o qual o acórdão de 4 de Setembro de
2003, ao, alegadamente, não atender à panóplia, ou a alguma da panóplia argumentativa que fora utilizada na alegação do recurso, violava, ele mesmo, o artº 20º do Diploma Básico.
Convir-se-á, assim, que não foi imputada à norma que ora se pretende ser objecto de análise por banda deste Tribunal, qualquer vício de desarmonia constitucional.
Postando-nos, como nos postamos, perante um recurso esteado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, mister era que, antes da prolação da decisão querida impugnar perante o Tribunal Constitucional, o recorrente tivesse suscitado a questão de inconstitucionalidade normativa reportada à norma da alínea d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, quer atendendo ao seu teor literal, quer a um qualquer seu sentido interpretativo, sendo que, para tanto, dispôs de oportunidade processual para o fazer.
Mas, como esse ónus não foi levado a efeito pelo impugnante, falece, in casu, um dos pressupostos daquele recurso.
Termos em que se não conhece do respectivo objecto, condenando-se o recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em seis unidades de conta”.
Da transcrita decisão reclamou o A. nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, tendo dito no requerimento corporizador da reclamação:
1. O ora reclamante interpôs recurso ao abrigo do artigo 280°, nº 1, alínea b) da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 70°, nº 1, alínea b) e
72°, nº 1, alínea b) ambos da Lei n° 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei n° 85/89 de 7 de Setembro e pela Lei nº l3-A de 26 de Fevereiro.
2. Pretendia ver apreciada a inconstitucionalidade material da norma do artigo
668°, nº 1, alínea d) do Código Processo Civil com a interpretação aplicada no douto acórdão de que se recorre, suscitada em sede de recurso interposto para o Tribunal Central Administrativo, por manifesta violação do artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
3. O artigo 668°, nº 1, alínea d) do CPP é claro quando dispõe que: É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.’ Não obstante,
- o acórdão em apreço não atendeu a este argumento, nem aos argumentos levados
às conclusões 5°, 6°, 7° e 8° das suas alegações e desenvolvidas a páginas 6 a
12 das alegações. Tomou apenas em consideração:
’No essencial do seu requerimento sustenta o recorrente que ’o receituário da Farmácia C. provém exclusivamente da Extensão do Centro de Saúde de D.’ e que ’a transferência da Farmácia B. para o local indicado absorverá toda a sua clientela, pondo em causa a sua sustentabilidade económica’, uma vez que os utentes daquele estabelecimento de saúde tenderão ’aviar-se logo ali, dispensando-se de outros atalhos’.
- Apesar de nas alegações de recurso o recorrente ter fundamentado com diversos argumentos o seu inconformismo com a sentença recorrida, para demonstrar o preenchimento do requisito previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 76° da LPTA.
4. Sendo que no acórdão recorrido não se faz a mínima referência aos abundantes e relevantes argumentos invocados pela recorrente, considera-se que o artigo
668°, nº 1, alínea d) não foi, constitucionalmente, interpretado à luz do artigo
20° da CRP .
5.O recorrente sustenta que tal dimensão normativa dos preceitos indicados viola o disposto no artigo 20° CRP .
6.Mais diz o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Fevereiro de 1991
(proc. n° 2532): ’A sentença ... é nula ... por absoluta falta de indicação e discriminação dos factos... - o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa ao não examinar tal questão é nulo nos termos da alínea d) do nº 1 do art. 668° do Código Processo civil (falta de pronúncia).
7.O mencionado artigo consagra a garantia de acesso ao direito e aos tribunais para tutela dos interesses legalmente protegidos. No que se refere à questão da constitucionalidade em apreciação, o tribunal terá sempre que respeitar a dimensão da garantia de acesso ao direito e assegurar às partes uma completa percepção do conteúdo das sentenças judiciais.
8.Verifica-se, assim, que a interpretação feita pelo STJ da norma em causa limita, não justificadamente, o direito de acesso aos tribunais. Trata-se, na verdade, da inviabilização do recurso a um mecanismo processual com uma finalidade singular e, por essa via, da denegação da única possibilidade legal de reacção contra um vício da decisão jurisdicional.
9.O direito deve ser visto de uma forma indissociável da realização da justiça e da efectivação de valores políticos, sociais e culturais, de forma a evitar acções e comportamentos dos poderes públicos irregulares ou até arbitrários.
10.Gomes Canotilho e Vital Moreira classificam o Estado de Direito como um Estado ’antropologicamente amigo’, com vista à defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solidariedade.
1l. Não se afigura que a mais importante das garantias, ou seja, a garantia de acesso à justiça (art. 20° CRP), esteja aqui assegurada. O Estado de direito requer um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito. A Constituição é enfática, ao estabelecer o princípio geral de garantia de acesso aos tribunais no seu n° 1 do artigo 20°. Este artigo abre, imediatamente, a via para um tribunal ... mas um tribunal que fundamente as suas decisões e se pronuncie sobre todas as alegações do recorrente. l2. Existindo, por tal motivo, uma notória utilidade no julgamento da interpretação da norma do art. 668°, nº 1, alínea d) do Código Processo Civil inconstitucional por violação do art.20°da CRP”.
Ouvidos sobre a reclamação, o Conselho de Administração do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento e a recorrida particular, E., não vieram a efectuar qualquer «pronúncia».
Cumpre decidir.
2. A reclamação ora em apreço não carreia minimamente qualquer corte de razões para pôr em causa a decisão impugnada.
Nesta, como se viu, não foi tomado conhecimento do objecto do recurso porque, antes do proferimento do acórdão lavrado em 16 de Outubro de 2003 pelo Tribunal Central Administrativo, o ora impugnante não suscitou a questão de inconstitucionalidade referente ao normativo precipitado na alínea d) do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, antes imputando ao anterior aresto cuja nulidade arguira o vício de desconformidade com o artigo
20º da Lei Fundamental.
E foi justamente esta circunstância que conduziu ao juízo decisório de não conhecimento do objecto do recurso, que se não vê atacada na reclamação em análise, que, como deflui da transcrição supra efectuada, não logra infirmar a asserção segundo a qual foi atacado, do ponto de vista da sua conformidade constitucional, o indicado normativo, sendo que a ora reclamante, inequivocamente, dispôs de oportunidade processual para tanto.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se o impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 12 de Fevereiro de 2004
Bravo Serra Gil Galvão
Luís Nunes de Almeida